Ponto de vista de Kira
Entro na sala de Alessandro sem hesitar, entregando-lhe o relatório, os chips contendo os projetos e os dossiês detalhados que a Dra. Chambers compilou sobre os criminosos ligados a Dentuço e à Cidade da Sucata. Nomes de políticos, chefes de famílias mafiosas, líderes de gangues e corporativos poderosos desfilam pelo papel como uma teia de podridão. A lista parece interminável.
Ele recebe os documentos em silêncio, folheando algumas páginas sem pressa. Quando finalmente ergue os olhos para mim, há algo estranho em seu olhar. Algo que me faz hesitar por um instante. Mas ele apenas me dispensa com um aceno contido.
Viro-me para sair, e então vejo sua secretária. Aurora. O nome surge na minha mente quase automaticamente. Meus olhos ficam presos nela por um instante mais longo do que deveriam. Algo nela desperta uma sensação incômoda — uma familiaridade que não consigo explicar. Ela me encara de volta e sorri, um sorriso amplo, talvez excessivamente entusiasmado. Depois, avança em minha direção rápido demais.
— Eu queria te convidar para almoçar! Você aceita? Eu pago! — A empolgação em sua voz é genuína, quase infantil.
Poderia recusar. Mas já passa do meio-dia, e meu estômago protesta silenciosamente. Apenas dou de ombros e aceito. Para minha surpresa, ela praticamente pula de alegria, os olhos brilhando como se tivesse acabado de ganhar um prêmio.
— Ótimo! Mas… onde você gosta de comer?
A pergunta me atinge como um soco inesperado. Paro no meio do corredor. Meu olhar se perde por um instante. Onde eu gosto de comer? A verdade é amarga e ridiculamente simples: nunca pensei nisso antes. Desde que me entendo por gente, sempre comi no refeitório da BioCom. E quando estive na Cidade da Sucata… bem, comida não foi exatamente a experiência mais agradável por lá.
Fico em silêncio tempo demais. E Aurora percebe.
Logo me recomponho. Afinal, o passado? Ele não importa. Nunca importou. Ergo o queixo, cruzo os braços e, com um leve sorriso desafiador, lanço as palavras no ar:
— Me surpreenda.
Aurora sorri. Um sorriso bobo, quase infantil, daqueles que fazem as pessoas parecerem ingênuas demais para este mundo. Por um instante, me pego pensando… será que a tal irmã dela também era assim? Tão tola? Tão cheia de vida?
Mas antes que essa ideia se firme em minha mente, ela agarra meu braço. O toque é leve, mas insistente, como se temesse que eu pudesse desaparecer. Tenta me puxar. Meu corpo enrijece por um instante, reflexo automático, mas não há perigo aqui. Não há ameaça. Então, suspiro e cedo. Acompanho seu ritmo.
— Vamos até um restaurante que eu adoro… por causa do sorvete! — diz, com uma animação tão exagerada que quase me faz rir.
Arqueio a sobrancelha.
— Quem diabos vai a um restaurante por causa de sorvete? — pergunto, distraída. Meu tom sai seco, sem que eu perceba. — Não era mais fácil ir direto a uma sorveteria?
Ela ri. Um riso claro, sincero, como se minha pergunta fosse absurda.
— A comida lá também é boa. Muito boa. Mas o sorvete… ah, o sorvete é incrível!
E então ela continua.
— Você é muito alta, Kira… e muito bonita também… forte… tão forte…
Ela fala sem parar, como se quisesse preencher cada silêncio. E, por algum motivo, não me incomoda. Pelo contrário. Seu tom é familiar. Confortável.
Meus olhos seguem seus gestos, a forma como suas mãos se movem enquanto fala, a energia inquieta em cada passo. Há algo nela que me soa certo, algo que me prende sem que eu saiba exatamente o motivo.
Talvez seja o jeito que ela me olha.
Como se me conhecesse há muito tempo.
E, por alguma razão, isso não me desagrada.
Chegamos ao tal restaurante, ela finalmente parou de falar e vamos até uma mesa, aparentemente uma que ela sempre senta, pois ela traça o caminho sem pestanejar.
Sentamos uma de frente para a outra. O menu m*l chega à mesa e já faço meu pedido — praticamente todo o cardápio. Aurora arregala os olhos, hesitante, como se tentasse calcular o prejuízo.
— Não se preocupe — digo, inclinando-me um pouco para frente, a voz firme, mas descontraída. — Você não precisa pagar o meu almoço. Mas eu preciso comer pelo menos dois quilos de carne, quinhentas gramas de arroz, um quilo de verduras e legumes.
Ela me encara, boquiaberta. Eu seguro a risada. O choque estampado no rosto dela é uma das coisas mais engraçadas que vi hoje.
Mas ela logo se recompõe, franzindo as sobrancelhas como quem toma uma decisão irrevogável.
— Nem pensar. Eu te convidei.
O tom não deixa espaço para discussão. Ela está decidida. Mas eu também sei ser teimosa. Cruzo os braços e arqueio a sobrancelha, deixando um sorriso provocador surgir.
— Então paga pelo menos o seu tão incrível sorvete. — O sarcasmo é evidente, e o embaraço volta ao rosto dela.
Por um segundo, parece que vai protestar, mas acaba suspirando e assentindo.
— Fechado.
A refeição segue tranquila. Comemos em um silêncio confortável, Aurora vez ou outra lançando comentários sobre a comida ou o restaurante. Eu apenas aceno, ocupada em ingerir a quantidade absurda de comida que meu corpo exige.
Quando estamos quase terminando o sorvete — e admito, é bom mesmo —, algo no ambiente muda.
Minha atenção é capturada por uma presença que se destaca no recinto.
Xiaomei.
Ela se senta entre mim e Aurora, sua postura impecável e o aroma sofisticado de seu perfume de grife imediatamente a torna a figura central da sala. Sua presença é dominante, o sorriso calculado e frio, mas algo no ar ainda sugere que ela está buscando mais do que apenas uma conversa.
— Então, bonequinha, o que faz aqui com a ex-cunhada de Alessandro? Pegando dicas de como conquistar O homem?
Ela ri, mas a risada não chega a ser engraçada. Ela está apenas tentando nos provocar. Ignoramos, mas o silêncio parece incomodá-la ainda mais.
— Vai pegar dicas com uma virgem? — Ela não disfarça a crueldade em suas palavras. — Que nunca sequer conseguiu conquistar o próprio chefe?
O tom dela é implacável, mas algo dentro de mim começa a ferver. Ela continua, sem se importar, atraindo mais olhares ao redor, mas isso não importa.
— Você não sabe, Kira, mas a Aurora é louca por Douglas. O problema é que Douglas queria mesmo era a Amanda. Mas sabe como é… a Amanda gostava do Alessandro. Ou talvez… fosse só uma vädia. Diziam as más línguas que Douglas pegava a Amanda também e ela…
Minha paciência se esgota.
Em um movimento tão rápido quanto um pensamento, minha katana está rente ao pescoço de Xiaomei. Ela tenta disfarçar a surpresa, mas vejo o pânico se espalhando por seus olhos. Seu corpo fica rígido, a respiração falha enquanto ela começa a perceber que a brincadeira acabou.
O medo toma conta dela como uma onda, e seus olhos encontram os meus. O brilho da lâmina reflete nos meus olhos, e ela tenta manter a compostura, mas não consegue. Ela tenta segurar, mas não consegue.
Então, sem mais aviso, ela se urina. O cheiro de medo a domina, e, finalmente, ela desmaia, caída como uma boneca sem vida, um corpo inútil no chão.
O silêncio que segue é quase insuportável. Mas quando olho para Aurora, vejo algo totalmente diferente da reação que eu esperava. Seus olhos brilham com orgulho, e um sorriso de satisfação se espalha por seu rosto. Ela está extasiada, quase como se tivesse presenciado uma grande conquista. A cena a fascinou de uma maneira quase... selvagem.
Aurora se aproxima com um sorriso sutil, sem dizer uma palavra. Ela não precisa. O olhar de aprovação que me lança diz tudo.
— Vamos. Vamos pagar a conta. Deixa-a aí.
Caminho até o garçom que estava cuidando do serviço, e ele me entrega a conta. Sem hesitar, pago tudo — incluindo o tal sorvete que, apesar de ser exageradamente caro, agora parece insignificante. Aurora está tão perdida em seus próprios pensamentos que nem percebe quando nos levantamos para sair. Ela parece flutuar, como se estivesse em outro mundo, distante de tudo ao seu redor. Sem dizer uma palavra, ela segue até a sua mesa, e eu a acompanho.
Tenho tempo o suficiente para notar Douglas saindo da sala de Alessandro. Ele me vê imediatamente e seu olhar é penetrante, inquisidor. O peso em seu olhar é quase tangível, mas faço questão de fingir que não percebo. A expressão dele é dura, carregada, mas ao se aproximar, seu tom muda, como se estivesse tentando esconder algo.
— Kira, mais uma vez, perfeita. Magnânima. Linda como sempre — diz ele, a voz suave, mas carregada de luxúria.
Ele puxa minha mão, e a beija com suavidade.
Do canto da sala, vejo Alessandro observando a cena, os olhos estreitados em algo entre raiva e ciúmes. Ele mantém o olhar fixo, os músculos do rosto tensos, claramente incomodado, mas permanece em silêncio.
Quando me aproximo da porta da sala de Alessandro para me posicionar, ele me interrompe com uma frieza que não disfarça a autoridade em suas palavras.
— Kira, hoje você pode tirar o dia. Não precisarei dos seus serviços como segurança. Como ficou muito tempo ausente, substituí você por outro agente.
As palavras dele ressoam em minha mente como uma bofetada. Um frio cortante percorre meu corpo, e, por um momento, algo dentro de mim se parte, quebrando em pedaços que eu não sei como juntar. Mas não deixo que nada disso transpareça. O impacto pode ser profundo, mas eu não permito que ele veja nem um vestígio da dor.
Simplesmente, dou um curto e respeitoso cumprimento — uma leve e controlada curva, sem palavras, sem emoção. O gesto é automático, o silêncio pesado, e me retiro sem mais nem menos. Guardando dentro de mim tudo o que não posso dizer.