Ponto de vista de Alessandro
O cômodo era abafado, úmido, com paredes revestidas de concreto cru. Um único ponto de luz, direto no rosto do prisioneiro, criava sombras longas atrás de mim. O homem à minha frente estava amarrado, com os braços estendidos para trás e os pulsos inchados pelas amarras plásticas. Sangue escorria do nariz e da boca, misturado com saliva e suor. O cheiro no ambiente era metálico, ácido.
Fiquei em silêncio. Observando.
— Sabe eu realmente detesto esse tipo de abordagem — disse, finalmente, com voz baixa. — Mas vocês sempre escolhem o caminho mais longo. Sempre acham que vão aguentar.
Peguei o alicate da mesa metálica. O clique do metal ao ser aberto fez o prisioneiro prender a respiração.
— Eu perguntei antes. Várias vezes. Quem deu a ordem. Qual o objetivo com Aurora? O que pretendem fazer com Kira?
O homem cuspiu no chão.
— Vai pro inferno…
Em silêncio, me agachei diante do prisioneiro, fixei meus olhos nos dele. O olhar era calmo. Clínico. Quase vazio. Então, sem eu dizer nada, segurei o dedo indicador do homem — e o estalido que veio depois ecoou como um tiro.
O grito foi alto, desesperado, rasgado.
— Isso é só o começo — disse a ele sem emoção. — Vão ser 206 ossos. E eu conheço todos eles. Inclusive os que quebram mais fácil.
A sessão prosseguiu. Cada pergunta sem resposta era um dedo deslocado, uma queimadura controlada, um soco certeiro na base do estômago. O prisioneiro resistiu por vinte minutos. Vinte longos minutos.
No vigésimo primeiro, com o rosto inchado e os olhos semicerrados, ele desabou:
— Aurora, ela tem um elo com Analisa, elas são irmãs — disse, com a voz falhando.
Alessandro franziu o cenho.
— A Vortoli quer usar Aurora para recuperar a posse de Analisa?
O homem fez um leve aceno com a cabeça. Estava desabando.
— Querem levá-la de volta, mas sob controle. Retorna-la para o coma e mantê-la como cobaia.
Fiquei em silêncio por alguns segundos. Meu cérebro fervia, tentando processar tudo o que acabara de ouvir. Vortoli... então era essa a ligação. Nós arrancamos Analisa das mãos deles — mas o que mais estava escondido debaixo dessa superfície? Quem mais estava envolvido?
Me inclinei um pouco para frente, a sombra do interrogatório pesando sobre o homem algemado diante de mim. Minhas palavras saíram controladas, mas havia tensão na minha voz, que tentei em vão disfarçar.
— E Kira? O que ela tem a ver com tudo isso? Eles iriam simplesmente eliminá-la?
Por um momento, o silêncio respondeu. Um segundo apenas — e então veio a gargalhada. Alta. Rasgada. Insana.
— Matar... eliminá-la?! — ele repetiu, quase engasgando de tanto rir. — Hahahaha... HAHAHA... aaaaah... HAHAAH Kira... Kira não morre...
O homem ria como se tivesse acabado de ouvir a maior piada do mundo. Mas havia algo sombrio naquela risada. Algo... real demais.
— Eu... eu podia levar só o núcleo dela, só isso! E... ela voltaria. Num tanque. Talvez mais fraca... mas voltaria... — ele balbuciava, os olhos arregalados como se visse algo que só ele era capaz de entender. — Mas o pior... o pior é que ela desperta. Ela sempre desperta. Ela... não morre. Nada a mata! Nem o fogo, que tudo consome... nem ácidos, nem radiação... O corpo dela só precisa de uma partícula... uma célula! UMA! Kira é... ela é...
— E Analisa? — cortei, minha voz agora mais firme.
Ele deu uma risada mais curta, quase um soluço de loucura.
— Analisa... é parecida. Mas ela... ela muda. Morre, sim. Mas muda. Decide. Escolhe. Pode habitar outro corpo, como se... como se trocasse de pele. Eles a querem. Todos eles. Porque ela pode viver dentro de Kira. Porque... esse é o verdadeiro projeto. O projeto G.E.N.E.S.I.S.
Sua voz tremeu ao pronunciar o nome como se falasse de um deus antigo:
— Genetic Entanglement and Neuro-Evolutionary Symbiotic Integration System.
(Sistema de Integração Simbiótica Neuroevolutiva e Entrelaçamento Genético).
Fiquei ali, olhando para ele, tentando compreender a extensão daquilo tudo. Quando Kira invadiu a Vortoli, ela deve ter acessado essas informações. Ela e sua equipe sabiam. Ela sabia.
Mas por que não me contou?
Desconfiança? Medo? Pröteção?
Ou pior: ela escolheu esconder.
Senti um nó apertar em minha garganta. Eu precisava perguntar. Olhar nos olhos dela e saber a verdade. Talvez ela não possa me contar ou talvez simplesmente não queira.
Mas a dúvida me queima por dentro.
E eu vou descobrir. Nem que eu precise arrancar a verdade de qualquer um que a esteja tentando esconder.
Após finalizar com o homem, sigo para interrogar — ou ao menos tentar — outra pessoa. É agora ou nunca. Foram horas de tortura, mas já tenho o que precisava. Uma pena que tudo se resume a palavras. Palavras sussurradas entre gemidos, sorrisos quebrados e gargalhadas desconexas.
Mas o que ouvi, o que ele disse, minha mente não pára. Está a mil, queimando possibilidades.
Kira. Ela pode simplesmente contaminar pessoas com o parasita. Modificá-las a nível molecular. Transformá-las por dentro. E não falo só de adaptação ou cura. Falo de controle. De conversão.
Ela pode moldar gente como quem molda barro. Ela não precisa destruir ninguém. Só reescrever.
E então o Bi-o deixa de ser apenas um produto revolucionário. Torna-se uma proposta muito mais sombria — e complexa. Um plano de dominação silenciosa.
Ela infectaria milhares. Talvez milhões. E não qualquer um. Políticos. Sicários de elite. Celebridades. Nomes influentes em cada canto do mundo. Gente que poderia pagar pelo “pacote Bi-o”. Os magnatas. Os poderosos.
E, no centro de tudo, Kira. Rainha de um império biológico. Mãe de uma nova espécie.
Ela quer reescrever o mundo.
Quando finalmente a encontrei, o céu já estava tingido de laranja e púrpura, e o som da água do lago ao lado do campo de mini golfe parecia zombar do silêncio entre nós. Ela treinava sozinha, como sempre. A monokatana cortava o ar com violência contida. Cada movimento seu era um lembrete crüel do que ela era capaz de fazer — e de quanto eu não sabia mais se confiava nela.
Fiquei observando por alguns minutos, até não suportar mais a raiva queimando dentro do meu peito.
— Bonita cena — falei, alto o bastante para ser ouvido. — A guerreira solitária no pôr do sol. Pena que por trás de toda essa pose, ainda é só uma arma esperando ordens.
Ela parou. Ficou imóvel por um instante, como se calculasse o impacto das minhas palavras. Então girou levemente o rosto na minha direção. Nada no olhar. Nada no rosto. Essa frieza me rasgava por dentro.
— O que o Senhor quer? — perguntou, sem emoção.
— Eu vim procurar respostas — retruquei, me aproximando. — Mas talvez tenha vindo atrás de algo que não terei facilmente.
Ela abaixou a katana com lentidão, mas não a soltou. Eu continuei:
— Você se cala, esconde, disfarça. Me diz metade de verdades esperando que eu aceite como suficiente. Mas não é. Não mais.
— Eu não escondo, eu... — ela começou.
— Você esconde tudo, Kira! — cortei, duro. — O G.E.N.E.S.I.S., o seu envolvimento com o Projeto Berserk, a ligação com Analisa, você vive como se estivesse sempre no controle, como se não devesse nada a ninguém. Mas você deve. A mim.
Ela engoliu seco. Pela primeira vez, vacilou. Mas ainda assim tentou se manter firme.
— Alessandro, não é tão simples.
— Simples? — dei uma risada seca. — Você não entende, né? Você é a peça mais letal de toda essa guerra. Um monstro moldado pela ciência, um erro que deu certo. E mesmo assim age como se fosse uma mártir. Como se tivesse o luxo de guardar segredos!
Ela ficou em silêncio, mas seus olhos não desviavam dos meus. Então fui mais fundo. Mais crüel. Eu queria machucá-la. Não pela dor, mas pela verdade que ela teimava em esconder de mim.
— Sabe o que me irrita? É saber que você precisa de mim. Que me quer. Mas ainda assim me trata como descartável. Eu sou o único que poderia te proteger de tudo isso e mesmo assim você prefere se fechar, como se eu fosse uma ameaça.
Os olhos dela brilharam, mas ela não choraria. Kira não chora. Mas eu via o abismo por trás daquela máscara.
— Sem mim, Kira você é só uma ferramenta esperando o próximo dono. E a BioCom sabe disso. Eu sou a única coisa entre você e o colar de ferro que eles vão pôr no seu pescoço de novo.
Ela estremeceu. Um instante. Quase imperceptível. Mas eu vi.
— Você é propriedade deles. Eles querem experimentar em você, eu tentei mudar isso. Mas você faz questão de me lembrar que no fim das contas você ainda pertence a eles. Porque escolhe o silêncio. Porque prefere o controle à confiança.
Ela deu um passo em minha direção, olhos baixos, voz falha:
— Eu não quero que pense assim, eu só não queria que se envolvesse e fosse caçado ou machucado.
— Já fui machucado — respondi, frio. — E foi você quem o fez. Mas agora acabou. Você voltará a trabalhar na BioCom, não apenas nas missões como tem sido, irá trabalhar todos os dias, como segurança.
— Mas e meus projetos? Tudo que preciso fazer? Você...
Nem esperei ela terminar, ela fez uma escolha. Entao eu a deixei ali. Imóvel, à beira do lago, com a katana nas mãos e um vazio nos olhos.
E mesmo quando virei as costas, cada parte de mim gritava para voltar, tocá-la, ouvi-la dizer qualquer coisa que me trouxesse de volta. Mas não voltei.
Porque agora eu precisava saber sobre tudo o que fosse necessário, unir as informações e descobrir o que era real ou não.