- CIDADE DA SUCATA: GUERRA PARTE III

1830 Words
Ponto de vista de terceira pessoa Estamos dentro de um bairro nobre, algo entre classe média alta e alta. O asfalto cobre todas as vias, os meio-fios são pintados, e algumas casas possuem jardins bem cuidados, muros altos e cercas elétricas. O cheiro da terra molhada da chuva ainda paira no ar, misturando-se com a névoa da madrugada. Kira caminha com passos firmes, os olhos sempre atentos ao ambiente ao redor. Seu tom de voz é tranquilo, sem pressa, mas carregado de uma certeza inabalável. — Vamos precisar de um meio de transporte. Já são uma hora e quarenta e quatro minutos, e a madrugada está enevoada por conta da chuva. Ela pausa por um instante, franzindo levemente a testa ao sentir algo. Seu olhar se torna mais afiado, e um sorriso seco surge em seus lábios. — E como não há nada tão rüim que não possa piorar… A frase vem carregada de sarcasmo. Kira não precisa ver para saber. As vibrações no solo denunciam — um comboio inteiro se aproxima em velocidade. Seus sentidos treinados captam os padrões do deslocamento: veículos pesados, múltiplos pneus cortando o asfalto, a sincronia de motores que rosnavam em conjunto. Segundos depois, os faróis cortam a neblina. Vários jipes passam à frente deles, revelando um cenário que não surpreende Kira. O que vê são rostos tomados pela euforia do quase triunfo. Gritos de comemoração ecoam pela rua, misturados a uivos selvagens, xingamentos e gargalhadas histéricas. Homens e mulheres, embriagados pela adrenalina da suposta vitória, fazem gestos obscenos, batem nos chassis dos veículos e vibram como se o desfecho já estivesse selado. Mas Kira sabe bem: não se deve comemorar o ovo antes que ele saia do räbo da galinha. Bem ou mäl, nossa carona chegou, pensa Kira. Só falta atravessar este bairro para alcançar o centro e, enfim, o tal Castelo. Os ocupantes do jipe são uma mistura peculiar. No banco do passageiro, uma garota que parece saída de um daqueles desenhos asiáticos: cabelos azul-escuro com reflexos azul-claro, pele clara, olhos negros puxados. Pequena e magra, mas com uma postura atenta. O motorista é um homem nëgro de cabelos longos presos em dreads, tatuagens espalhadas pelos braços e olhos cibernéticos de um tom claro e intenso. No banco de trás, um sujeito de pele levemente bronzeada, músculos bem definidos e um rosto quadrado demais para ser natural, adornado por um cavanhaque impecavelmente trabalhado. Ele exala confiança—ou talvez apenas arrogância. Tudo certo. Precisamos de dois lugares, e são exatamente os que estão vagos. Kira sobe sem hesitar, seguida por Killey. A garota é a primeira a se pronunciar: — Sou Rosita. O motorista segue a deixa, sem cerimônia: — Clive. Por fim, o metido a Don Juan—que, aliás, não para de lançar olhares e fazer expressões exageradas tentando chamar a atenção de Kira—se apresenta: — Fernando. Kira responde com um leve aceno de cabeça, mantendo-se impassível. Um som seco na lataria do jipe anuncia a partida. Clive solta um grito eufórico, quase como um brado de guerra, e pisa fundo. O veículo corta becos e vielas em alta velocidade. A paisagem passa como um borrão até que o barulho de explosões e tiros invade a cabine. Então, no horizonte, um veículo de impulso vetorial cruza a linha de visão, lançado pelos ares antes de despencar desgovernado. O jipe desvia bruscamente. O caminho se abre para um descampado grande—talvez um antigo campo de futebol. E então, eles aparecem. Três veículos de impulso vetorial voam baixo, ágeis e letais. Assim que nos detectam, um deles mergulha em um rasante direto contra nós. Dois outros veículos aliados estão próximos, e o tiroteio explode. As rajadas cruzam o campo. Um dos veículos inimigos é alvejado e perde o controle, tombando e se arrastando pelo gramado até parar como um pedaço de metal retorcido. Outro tenta ganhar altitude, mas um disparo certeiro atinge sua base, desestabilizando-o. O último, percebendo o perigo, tenta uma manobra evasiva. Mas gira rápido demais, ficando de lado, vulnerável. A força centrífuga o expõe. O primeiro impacto vem de um míssil, que destrói suas hélices de estabilização. O segundo tiro entra pela janela aberta e detona no interior da cabine. O veículo começa a despencar, rodopiando descontroladamente, enquanto destroços em chamas caem pelo campo, e estamos no meio de uma chuva de fogo e metal. O problema é que os destroços vêm como balas—fragmentos de metal incandescentes lançados em todas as direções. Um dos estilhaços, uma hélice giratória ainda pegando fogo, atravessa o para-brisa do jipe. A cena é hörrível. O impacto perfura o crânio de Clive, a lâmina metálica entrando bem entre seus olhos. O motorista sequer tem tempo de gritar. Seu corpo se projeta para trás, espasmos involuntários sacudindo seus membros antes de perder a vida ali, no banco que ocupava segundos antes. O caos não para. O veículo inimigo que tentou subir, mas teve a base destruída, agora derrama combustível aos litros. O líquido inflamável se espalha pelo ar, pegando fogo no meio da queda. O brilho alaranjado reflete no olhar desesperado de Rosita. E então, o inevitável. A carcaça em chamas despenca sobre ela. O grito da garota é de puro terror. Ela se debate, a carne se fundindo ao metal conforme o calor derrete ambos. O cheiro de carne queimada invade o ar, uma fumaça densa e nëgra sobe em espirais. Fernando está em choque. Seus olhos percorrem a cena sem conseguir processar o horror ao redor. O chão, iluminado pelo fogo, parece um inferno vivo. O calor é sufocante. Então, o instinto de sobrevivência assume o controle. Ele se joga para fora do jipe e dispara em desespero, correndo o mais rápido que pode para fugir da zona de impacto. Killey tenta seguir, mas no ímpeto de pular, tropeça no próprio pé. Seu corpo perde o equilíbrio e ele despenca para frente, sem controle. Kira analisa a situação num instante. Dessa vez, não há apoio para o gancho. O jipe está desgovernado, a trajetória caótica. O mundo ao redor se torna um turbilhão de chamas, destroços caindo como chuva mortal. Líquidos inflamáveis jorram em labaredas imprevisíveis. Pedaços de fuselagem, metal retorcido, grama arrancada pelo impacto e até pedras são arremessadas pelo ar. Ela aperta os dentes, se posiciona e espera o impacto. O impacto a lança vários metros para frente. Kira sente o ar sendo arrancado dos pulmões, mas usa o próprio movimento a seu favor, torcendo o corpo no ar. Seus olhos já traçam um objetivo—um dos jipes ainda intactos e em movimento, a poucos metros dali. No instante certo, ela dispara o gancho. O cabo se estica, a âncora se prende firme no reboque. O puxão é violento, seu corpo é arrastado pelo chão áspero. Ela sente a armadura se desgastar ainda mais contra a superfície, mas se mantém imóvel. Se tentasse se levantar, a força contrária da inércia poderia prejudicar o jipe, freando-o ou até danificando o reboque. Não pode se dar ao luxo de errar. Então, simplesmente se deixa levar. O fogo e os destroços ficam para trás. As chamas refletem nos olhos dela enquanto o jipe finalmente cruza a zona de impacto. O calor diminui. O chão estabiliza. Quando sente que é seguro, Kira solta o cabo e se ergue. Sua armadura está quase completamente destruída. Placas de blindagem lascadas, partes inteiras arrancadas pelo atrito. A pele dela, embora reforçada por tramas de polímeros construídos por nanoides, não saiu ilesa—há arranhões e cortes finos, alguns já começando a ser reparados pela regeneração acelerada. Pequenos nanoides se movimentam na superfície das feridas, reconstruindo a camada sintética aos poucos. Ela respira fundo. Ainda não acabou. Com os olhos afiados, procura por Killey e Fernando. O jipe estacionado alguns metros à frente aguarda. Este é o ponto de encontro. Em questão de minutos, outros veículos começam a chegar—motos rugindo entre as ruínas, tanques blindados abrindo caminho com seu peso bruto, picapes carregadas de combatentes armados. Muitos. Entre eles, Kira avista Killey. Seus olhares se cruzam por um breve momento. Nenhuma palavra é necessária. Ambos sabem que estão cada vez mais perto do objetivo. Este campo aberto marca a transição entre os bairros periféricos e o centro da Cidade da Sucata, onde o Castelo se ergue como um símbolo de poder. Mas não há tempo para reflexões. O visor de Kira vibra com uma nova mensagem. SMS de Jair O Leão. Os olhos dela correm rapidamente pelo texto. Emboscada no campo. A informação mäl termina de ser processada quando um brilho metálico corta o céu. Um míssil. Grande. Rápido. Letal. O instinto assume o controle. Ela grita para que todos se protejam. Mas já é tarde. O impacto ocorre no centro do campo. E então, o inferno se solta. Explosão de um mini artefato nuclear A detonação libera uma onda de energia térmica e radiação que incinera tudo num raio imediato de dezenas de metros. O solo é vaporizado, a terra se liquefaz por um instante antes de ser lançada para o alto em uma erupção de cinzas e fogo. A onda de choque se expande em um raio devastador, comprimindo o ar à frente e gerando um deslocamento brutal que lança veículos, corpos e destroços em todas as direções. As estruturas blindadas dos tanques são retorcidas como papel, as picapes e motos são arremessadas como brinquedos. No ponto de impacto, tudo que estava ali simplesmente deixa de existir—reduzido a átomos pelo calor extremo, que ultrapassa milhares de graus Celsius. A nuvem de poeira e fogo sobe em um formato característico, mas reduzida em escala por se tratar de um artefato de baixa potência. Mesmo assim, o efeito é avassalador. A radiação inicial, liberada em um clarão intenso, carboniza tudo exposto. O pulso eletromagnético frita sistemas eletrônicos, apagando monitores, desativando armas inteligentes, tornando inúteis as comunicações. A segunda onda de choque, mais lenta, espalha os restos incandescentes, chamas e ventos tóxicos por toda a região. Kira sente a onda de choque se aproximar. Ela precisa reagir. Mas seu corpo não responde. As pernas travam. O braço mecânico fica inerte. O processador neural continua funcionando—graças à pröteção contra PEM—mas os comandos não chegam ao restante do corpo. Ela está paralisada, impotente, vendo a onda de fogo se aproximar, consumindo tudo em seu caminho. O desespero toma conta. Sem outra opção, ela age de maneira brutal e instintiva. Com o braço esquerdo—seu braço de carne—ela segura o direito, o mecânico, e o arranca com um puxão violento. Os circuitos rompem, faíscas explodem, fluidos sintéticos jorram como sangue. A dor é sufocante, mas não há tempo para senti-la. Com os músculos trêmulos e a visão escurecendo, ela ativa o gancho manualmente. O cabo dispara e se prende a um dos carros sendo lançados pela onda de choque. No instante seguinte, ela é puxada para longe, arrastada pelo veículo em pleno ar. A escuridão a envolve.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD