- AURORA: A SECRETÁRIA

1652 Words
Ponto de vista de Aurora Meus pais morreram. Pelo menos é o que dizem. Foi um acidente — ou pelo menos assim foi registrado. Minha mãe estava grávida, e minha irmã mais nova também estava no carro. Dizem que foi uma colisão violenta, algo repentino, brutal... suspeito... muito suspeito. Nunca encontraram os corpos. Nenhum vestígio claro, nenhum sinal conclusivo. Apenas destroços e suposições. As autoridades disseram que a explosão foi intensa demais, que era impossível sobreviver. Mas como aceitar uma perda sem provas? Como seguir em frente sem um corpo para enterrar? A vida virou de cabeça para baixo. Eu havia começado a faculdade, cheia de planos e expectativas. Tive que trancar tudo. Agora precisava cuidar de mim... e da minha irmã — a única coisa concreta que me restou. Fiz um curso técnico, algo rápido, direto. Aproveitei o fato de já estar no terceiro semestre da faculdade para buscar alguma oportunidade, e consegui um estágio. Foi assim que entrei na Cibercom, uma das empresas de tecnologia mais avançadas da cidade de Manaus. Está em ascensão. A primeira vez que o vi foi hoje. E apesar de trabalhar aqui há três meses ele nunca havia aparecido nos setores em que estive. Quando ele entrou na sala, foi como se o tempo tivesse desacelerado. Me apaixonei ali, na hora. Ele parecia perfeito. A pele levemente bronzeada, os cabelos lisos e impecavelmente penteados, os olhos cromados que brilhavam em um tom prateado metálico, frios e hipnotizantes. Usava um terno cinza claro sob uma camiseta cinza escura, e uma gravata com listras alternadas em tons de cinza. Os sapatos pretos polidos, combinando com o cinto e as abotoaduras prateadas, completavam o visual sofisticado. Douglas Veleiro é o tipo de homem que entra em um ambiente e o domina sem dizer uma palavra. Um homem bonito, elegante, sensual. E ao que dizem, completamente inacessível. Não tem ninguém. Nunca teve. E parece não querer ter. Ainda assim... depois de hoje, ele não sai da minha cabeça. E eu não consigo deixar de sentir que, de alguma forma, nossas histórias estão destinadas a se cruzar. Nos aproximamos, e acabei confidenciando a ele partes do meu passado — a morte dos meus pais, a doença da minha irmã, e também algumas lembranças boas. Ele demonstrou um interesse genuíno, mas quando perguntou mais sobre a minha irmã, senti um leve ciúme. Tentei racionalizar, pensando que o interesse dele era apenas pela doença rara que ela enfrentava. E assim aconteceu: minha irmã e Douglas acabaram se encontrando. Eu estava presente, mas, estranhamente, me senti como uma coadjuvante naquela cena. Toda a atenção dele foi direcionada a ela. Douglas foi gentil, atencioso, e demonstrou um interesse incomum. Para minha surpresa, ele lhe ofereceu um estágio na empresa. Amanda aceitou de imediato — ela já vinha buscando independência financeira e essa era uma oportunidade de ouro. O que me deixou ainda mais desconcertada foi a velocidade com que tudo aconteceu. Em pouco tempo, Amanda foi promovida a secretária pessoal de Douglas. Na época, Douglas estava no meio de uma fusão importante com uma empresa chamada BioBuilder. Da união dessas duas surgiria a BioCom. Ele e um antigo amigo dos tempos de faculdade pareciam compartilhar interesses estratégicos e resolveram unir forças para algo muito maior. No dia da festa da fusão entre as empresas, Alessandro Andrioli apareceu. Fomos recepcioná-lo no terraço. Ele era, sem dúvida, um homem bonito — charmoso, bem-apessoado, aquele tipo que sabe do próprio efeito. Mas, para ser honesta, logo de cara o achei um tanto bobo. Fez piada com meu nome assim que foi apresentado. Um comentário qualquer, que não achei tão engraçado, mas minha irmã... ela quase explodiu de tanto rir. Gargalhava como se estivesse encantada. Fiquei sem graça, completamente deslocada, como se tivesse virado invisível. Eles pareciam existir em outro plano, um onde só os dois habitavam. Trocaram olhares intensos, sorrisos cúmplices... senti que havia algo ali. Algo forte e inevitável. Minha irmã, mesmo tendo apenas quatorze anos, sempre foi precoce. Sagaz, segura, audaciosa. Logo ela e Alessandro estavam envolvidos. Era nítido. Os toques, os olhares prolongados, os sorrisos que se demoravam demais. E eu? Fiquei ali, assistindo tudo acontecer, engolindo meu incômodo em silêncio. Foi nesse período que notei uma mudança drástica em Douglas. Ele, que sempre fora reservado, tornou-se ainda mais fechado. O semblante endureceu, o bom humor desapareceu, e sua presença passou a carregar uma tensão constante. Tornou-se introspectivo, sério, quase sombrio. Havia algo naquele triângulo silencioso — entre mim, minha irmã e ele — que havia se rompido. E embora ninguém dissesse uma palavra, as mudanças estavam gravadas no ar, pesando sobre nós como uma sombra inevitável. Nos dias que se seguiram, algo dentro de mim começou a se contorcer. Eu tentava me convencer de que aquilo era apenas um desconforto passageiro, uma bobagem nascida do ciúme bobo de irmã mais velha. Mas não era. Era mais profundo. Era como se algo estivesse sendo arrancado de mim, em silêncio. Amanda parecia mais viva do que nunca. Desabrochando como uma flor sob o olhar de Alessandro. Ele a admirava, isso era óbvio, e ela… bem, ela se deixava admirar com um brilho nos olhos que eu não via há tempos. Eles trocavam mensagens, risadinhas, piadas internas. Tornaram-se inseparáveis, e eu… uma sombra. Douglas, por sua vez, mergulhou ainda mais em seu próprio abismo. O vi diversas vezes parado no terraço, encarando o horizonte com aquele olhar perdido. A ausência de palavras entre nós virou regra. Quando trocávamos olhares, havia algo não dito — algo pesado, espesso. Como se ele soubesse que algo escapava de suas mãos, mas não pudesse impedir. Uma noite, cruzei com ele nos corredores da empresa. Estávamos sozinhos. Ele parou diante de mim, mas não disse nada. Apenas me olhou. Havia mágoa em seu olhar, e talvez... um traço de decepção. Ou teria sido ciúme? — Você está bem? — perguntei, num tom mais íntimo do que deveria. Ele desviou o olhar, respirou fundo e respondeu seco: — Tudo certo. Só um pouco cansado. Mas eu sabia que não era só cansaço. Era dor. Era orgulho ferido. E talvez fosse algo mais — algo que, por alguma razão, ele não conseguia dizer. Naquela noite, me perguntei se, em algum momento, eu tinha sido mais do que uma funcionária para ele. Mais do que um nome em sua planilha de RH. Se algum dia, mesmo por um breve instante, ele me olhou do jeito que olhava para Amanda agora. Mas a resposta nunca veio. E o silêncio entre nós só fez crescer. Amanda já tinha dezessete anos. Estava linda, mas frágil. Sua saúde, cada vez mais debilitada, era uma sombra constante sobre a alegria que ela tanto tentava preservar. As crises vinham sem avisar, tirando dela a força, o brilho e levando junto os momentos felizes que tentava viver ao lado de Alessandro. Mesmo assim, ele nunca se afastava. Alessandro estava sempre lá — incansável, dedicado, amoroso. Cuidava dela com um zelo que ia além do esperado, como se cada segundo com Amanda fosse precioso demais para ser desperdiçado. Ele a carregava nos braços quando necessário, permanecia noites em claro, suportava os piores surtos com paciência e doçura. Era como se seu amor por ela aumentasse a cada recaída, a cada fraqueza. Mas Amanda. Amanda se culpava. Toda vez que uma crise a derrubava, ela o afastava. Rompia com ele com palavras firmes, mesmo que o olhar traísse a dor que sentia por fazê-lo. Sempre dizia as mesmas coisas: — Você merece alguém melhor... Alguém saudável. Eu só atrapalho sua vida. Não sou suficiente pra você... E ele, por mais que tentasse convencê-la do contrário, não conseguia. Ela erguia muros ao redor do próprio coração, convencida de que o amor dele era maior do que ela podia retribuir — maior do que sua frágil existência podia suportar. Era um ciclo crüel, doloroso e silenciosamente desesperador. Alessandro se dedicava de corpo e alma a encontrar a cura para a minha irmã. Descobri que Douglas também estava envolvido nisso, o que me surpreendeu. Nos últimos dois meses, ele e Amanda passaram a se encontrar com frequência. Ouvi dizer, inclusive, que ela chegou a dormir na casa dele. Não sei exatamente o que está acontecendo entre os dois, mas quando Alessandro descobriu, ficou completamente fora de si. Perdeu o controle. Partiu para cima do amigo e os dois acabaram se agredindo. A briga foi fëia, violenta, intensa. No calor do momento — ou talvez para marcar território — Alessandro pediu Amanda em casamento. E ela aceitou. Sem hesitar. O impacto disso em Douglas foi visível. Ele ficou transtornado, como se o chão tivesse sido arrancado debaixo dos pés dele. Seus olhos, antes frios e calculistas, agora pareciam carregados de algo que eu não conseguia decifrar. Era raiva? Dor? Traição? Alguns dias depois, ouvi uma ligação estranha de Douglas. Ele falava baixo, quase sussurrando, mas consegui captar o suficiente: passava a alguém uma localização e um horário. Quando liguei os pontos, percebi que se tratava do dia e do local do casamento de Amanda e Alessandro — o terraço da empresa. Meu primeiro pensamento foi ingênuo: talvez estivesse combinando de ir ao casamento com alguém. Ou, quem sabe, contratando um serviço de transporte. Douglas não costuma pilotar em ocasiões pessoais. Mas a desconfiança ficou martelando em minha cabeça. Algo naquela ligação soava errado. Frio demais. Calculado demais. Coincidência ou não, o dia do casamento chegou. Talvez para afastar de vez os ciúmes que corroíam Alessandro, ele e Amanda decidiram apressar a cerimônia. A data foi marcada para exatamente um mês após a briga — em dezembro. No dia marcado, todos estavam prontos. O terraço estava agitado, com as equipes organizando os embarques rumo à igreja. Combinamos de nos encontrar lá, tudo parecia correr bem. Os veículos de impulso vetorial foram partindo, um a um. O último... foi o de Amanda e Alessandro. E então aconteceu. O atentado.
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