Ponto de vista de terceira pessoa
O dia da posse de Alessandro foi apenas mais um dia comum para Kira na BioCom. Ela continuava em sua função como agente de segurança da Corporação. Por trás dos bastidores, no entanto, era uma agente de campo — designada para invasões, missões de assassinato, resgates e operações de alto risco.
Era versátil, habilidosa em diversas áreas. Tinha liderança natural e um senso estratégico afiado. Sua inteligência era claramente acima da média. Mas havia um vazio dentro dela: Kira não possuía lembranças de quem havia sido um dia. Para ela, tudo começara quando conheceu Douglas Veleiro — o homem que a chamava de criação. Mas criada com qual propósito? Douglas frequentemente a chamava de deusa — deusa da guerra, deusa da morte, ou qualquer outra entidade poderosa. Para ele, Kira não era apenas humana. Era algo acima disso. Uma divindade entre mortais.
E, ainda que a mente não recordasse, o corpo lembrava. E como lembrava.
Foi um cheiro — sutil, quase imperceptível — que a paralisou por completo. Invadiu suas narinas e entorpeceu seus sentidos. Imediatamente, sua mente foi tomada por sombras sem forma. Não havia rostos, nem vozes. Apenas escuridão disforme. E, mesmo assim, algo naquela sensação parecia familiar. O cheiro guiava seu corpo, como se despertasse memórias enterradas muito além do alcance da razão.
— Kira, finalmente você chegou. Estávamos esperando por você — disse Douglas com o tom empolgado de sempre, abrindo a porta e conduzindo-a para o interior da sala.
Lá dentro, um homem estava sentado com imponência. Parecia um rei em seu trono, irradiando autoridade. Não havia forma mais precisa de descrevê-lo: dominava o ambiente com sua presença.
— Kira, este é o nosso novo vice-diretor, o Sr. Alessandro Andrioli. Alessandro, esta é Kira — sua nova segurança pessoal. Sua Onna-bugeisha. — O sorriso de Douglas era calculado e maquiavélico. Como se tivesse acabado de executar um movimento perfeito em um grande tabuleiro de xadrez. Um quase xeque-mate.
Kira se ajoelhou lentamente, pousando os dois joelhos no chão. Retirou a bainha da cintura e a colocou à sua frente, com precisão quase cerimonial. Então, curvou-se profundamente, encostando a testa sobre a lâmina. Um gesto silencioso e poderoso — de entrega, de lealdade absoluta. Naquele momento, entregava sua vida para servir ao seu novo Shogun.
Douglas observava a cena com o entusiasmo de um espectador ávido. Seus olhos não piscavam, fixos no momento que se desdobrava diante dele.
— Kira, pode se levantar. Agora, será minha protetora. Minha espada contra os inimigos — declarou Alessandro com uma satisfação estranha, quase íntima.
— Sim, senhor Alessandro. O senhor é agora meu Shogun, a quem devo obediência e sërvidão — respondeu Kira, erguendo-se lentamente e encarando-o nos olhos.
Seu olhar permanecia impassível, impenetrável. Nem mesmo Alessandro, com todo o seu instinto analítico e experiência, conseguia decifrar aqueles olhos. Eram profundos demais... ou talvez vazios demais. Se ainda existia alguma alma ali, ela estava trancada num lugar inalcançável.
A distância entre os corpos diminuiu. Alessandro deu mais alguns passos à frente, sem desviar o olhar. Estudava-a. Observava atentamente cada detalhe, como um colecionador diante de uma obra rara. E então, de novo, o perfume.
As narinas de Kira se dilataram e se contraíram, captando o cheiro no ar. Algo em sua fisiologia reagia de maneira autônoma. Incontrolável.
Alessandro pareceu perceber a mudança. Os olhos dela estavam levemente dilatados, a respiração irregular. A garganta seca. E o coração... pulsava como tambores de guerra, batendo uma marcha furiosa. E havia os tremores. Ele se lembrava deles.
— Estou muito satisfeito, Douglas. Kira agora é minha Onna-bugeisha — disse Alessandro com um brilho nos olhos, como se acabasse de conquistar um tesouro raro e precioso.
Enquanto isso, na mente de Kira, as palavras dele reverberavam com peso:
Minha... minha... minha...
Ponto de vista de Kira
Minha mente começa a lançar pensamentos numa velocidade insana. Sinto como se estivesse sendo sugada para dentro de uma espiral descendente, sem controle, sem freios.
De repente, estou sob a chuva. O céu noturno está carregado de nuvens, pesado, sufocante. Até mesmo as luzes da cidade perderam seu brilho habitual — tudo está opaco, desbotado, morto. Estou nua. Minha katana repousa firme em minha mão. Meu corpo assume uma postura combativa por instinto. Diante de mim, uma figura masculina. Assim que a vejo, meus joelhos quase cedem. Eu me curvo. Meu senhor...
Ele se vira na minha direção. Seus lábios se movem, mas nenhum som chega até mim. Nada. Nem mesmo um sussurro atravessa o véu espesso entre nós. A chuva começa a cair com mais força. O som das gotas martelando o chão engole tudo, abafando o mundo. A visibilidade se deteriora rapidamente. A figura à minha frente se desfaz em sombras borradas. Mas o cheiro permanece. Um cheiro que me invade — é familiar. É meu. Cheira a segurança... a conforto, a confiança. Mas também a paixão, incertezas, medo. Um misto de emoções tão intensas e conflitantes que me fazem perder o eixo. Estou caindo. Junto com a chuva. Sinto, mas não vejo.
Sons me alcançam como ecos distantes. Sirenes. Vozes. Tudo embaralhado. Minha visão continua turva. Estou no chão? Não sinto meu corpo. Não sei se ainda estou viva.
— Amanda... Amanda, meu amor, fica comigo, por favor, não me deixa... — a voz de um homem atravessa meus tímpanos como uma lâmina, afiada pela dor. A escuridão me consome. E tudo o que resta... é o frio.
Pisco algumas vezes, tentando reencontrar o foco. Meus olhos vagam ao redor, e noto que sou observada — olhares atentos me examinam. Sem hesitar, curvo-me com delicadeza.
— Estarei ao lado de sua porta sempre que precisar, senhor Alessandro — digo, minha voz firme, controlada.
Em seguida, me viro e caminho até o ponto designado, posicionando-me com precisão.
Consulto o relógio de relance. Apenas alguns segundos se passaram e, no entanto, dentro de mim, vivi um longo momento.
Agora, em silêncio, mantenho-me de pé, imóvel, ao lado da porta. Em guarda. Alerta. Como uma sombra discreta e letal — pronta para agir, pronta para servir.
Ponto de vista de terceira pessoa
Enquanto isso, dentro da sala envidraçada no alto do prédio, dois homens de negócios discutiam estratégias, com olhares incisivos e palavras medidas. Nos principais meios de comunicação, os noticiários exibiam manchetes alarmantes: as ações da Pegasus Med estavam em queda livre, arrastando investidores ao pânico.
O telefone do vice-diretor vibrou sobre a mesa. Alessandro Andrioli atendeu com frieza calculada.
— Alô, Alessandro Andrioli falando.
Do outro lado da linha, a voz exaltada de um executivo tentava disfarçar o desespero com agressividade.
— Temos provas, senhor Alessandro, de que sua agente foi a responsável por invadir nossas instalações, roubar os projetos e destruir nosso escritório!
O tom elevado denunciava o descontrole do interlocutor. Alessandro manteve a compostura.
— Se realmente têm provas, recomendo que procurem a Câmara dos Magistrados e solicitem uma audiência formal. Não me liguem com ameaças vazias.
— Exijo uma reunião com o senhor para tratarmos deste assunto! — insistiu o homem, tentando parecer firme, mas sua impaciência era evidente.
— E quem é o senhor mesmo para me exigir alguma coisa? — Alessandro retrucou com desdém, o tom carregado de ironia.
— Acredito que podemos chegar a um entendimento. Temos informações valiosas que poderiam...
Alessandro o interrompeu antes que concluísse:
— E o que o faz pensar que você possui algo que eu já não saiba? Ou, pior ainda, que eu precise de você?
Sua arrogância era deliberada, meticulosamente calculada para desestabilizar.
— Tenho os acordos, os projetos e localizações estratégicas. Na verdade, já temos equipes realizando reconhecimento. Vocês precisam de mim, não o contrário.
A respiração entrecortada do outro lado da linha revelou que Alessandro havia atingido seu objetivo: minar a confiança do homem, sem sequer elevar o tom.
— E... em que o senhor Alessandro poderia nos ajudar? — indagou o executivo, agora com um fio de esperança na voz.
— A Pegasus Med perdeu credibilidade. O prédio foi destruído, os projetos vazaram, e cientistas e acionistas estão abandonando a corporação — continuou, quase como uma confissão de derrota.
Alessandro manteve a expressão austera e decidida.
— Podemos propor uma fusão entre a Pegasus Med e a BioCom. Ela será absorvida. Afinal, vocês ainda têm contratos que devem ser honrados, especialmente com a Elitech Corporation.
O silêncio tomou conta da sala. Douglas, sentado ao lado de Alessandro, observava atentamente, tentando decifrar os rumos da negociação.
— Alessandro... você quer propor uma fusão com uma corporação falida? — perguntou Douglas, cético, embora começasse a perceber a lógica por trás da estratégia.
— Com o valor das ações em baixa, podemos adquirir lotes inteiros, tomar controle acionário e nos tornarmos majoritários. Reconstruiremos o complexo, reativaremos os laboratórios e finalizaremos os estudos dos projetos em andamento...
As engrenagens políticas e econômicas giravam em silêncio, alimentadas pela queda de alguns e a ambição fria de um estrategista.
Após mais algumas horas de ligações, negociações e análises detalhadas, os termos de um novo contrato foram finalmente encaminhados ao departamento jurídico da empresa para validação e formalização.
Kira permaneceu em sua posição, firme e atenta. Não se via como uma simples funcionária da BioCom — sua lealdade ultrapassava os limites contratuais.
Não demorou muito até que as portas da sala de reuniões se abriram. Alessandro e Douglas saíram com expressões discretas, mas claramente satisfeitas, deixando transparecer o sucesso da negociação.
Alessandro se aproximou de Kira acompanhado de Douglas. Seus olhos a percorreram com atenção calculada, como se a analisasse por completo — não apenas em postura, mas também em presença.
— Boa noite, Kira. Espero que esteja preparada, dentro de uma semana, você será enviada para uma missão muito especial. Muito mesmo — declarou Alessandro com o olhar ainda cravado no rosto dela.
Douglas, porém, interrompeu com um tom mais direto e uma ponta de intimïdade:
— Kira, você está dispensada por hoje. Venha comigo até minha residência. Temos algo especial a fazer em comemoração — disse ele, lançando um olhar enviesado em direção a Alessandro, como quem desafia sem palavras.
Alessandro não respondeu. Seguiu seu caminho, mergulhado em pensamentos densos. Ao chegar ao veículo, virou-se uma última vez para encarar Kira. O gesto foi breve, mas carregado de algo difícil de nomear — talvez dúvida, possessividade ou apenas desconforto.
Sem mais delongas, entrou em seu carro e partiu em silêncio rumo à sua cobertura, carregando consigo uma inquietação que não soube explicar.