Ponto de vista de Aurora
Talvez seja uma medida de precaução. Talvez Alessandro queira garantir sua segurança pessoal — e, nesse ponto, ninguém seria mais eficiente do que Kira. É impossível ignorar o que ela representa: uma presença intimidadora, precisa... e, se for necessário, letal. A simples menção de que ela virá e acompanhada de uma equipe inteira de segurança apenas reforça a relevância política e estratégica desse evento. Não é só mais uma reunião de interesses, é uma disputa de poderes em escala nacional.
Ainda assim, sinto um inesperado alívio ao saber que ela estará por perto. Kira me inquieta, mas também me traz uma estranha sensação de pröteção. Eles chegam hoje. E, por mais que eu tente manter a racionalidade, não consigo evitar a ansiedade.
Quero vê-la. Quero entender como ela está. Ela ficou um tempo fora, desaparecida, sem deixar rastros. Ninguém sabia exatamente o que estava fazendo, e o fato de Douglas ter sumido na mesma época só tornou tudo ainda mais nebuloso. Alessandro estava à beira do colapso, controlando a própria fúria com esforço visível. Será que ele descobriu quem ela realmente é?
Não há mais dúvidas para mim: Kira é Amanda. Isso é uma certeza que carrego com um peso estranho como se a verdade, mesmo sendo libertadora, fosse também uma ferida aberta.
O problema agora gira em torno de Analisa. As semanas que se passaram foram preenchidas por longas madrugadas vasculhando arquivos, cruzando dados, revisando registros que jamais deveriam ter existido. Teresa e eu mergulhamos fundo no projeto que roubaram na Europa, e nos detalhes sombrios que cercam Analisa. Havia informações que ela própria carregava, memórias fragmentadas, indícios de manipulação genética, protocolos de pesquisa que beiram o absurdo ético.
Quanto mais leio, mais percebo o quão distorcido tudo isso é. Nada é simples. Nada é só o que parece.
E no meio desse labirinto de verdades desconexas, tudo o que eu queria era abraçar minhas irmãs e voltar no tempo. Antes da dor. Antes dos desaparecimentos. Antes de as transformarem em peças de um jogo que ninguém aqui deveria estar jogando.
Estou no aeroporto, observando as pessoas ao redor, quando os vejo chegando. Kira e Alessandro. Juntos, lado a lado, compõem uma imagem quase irreal — um casal que beira a perfeição. Por um instante, me perco em pensamentos, apenas os admirando. A beleza fria de Kira contrasta com a elegância natural de Alessandro. Há algo na forma como caminham juntos que prende o olhar.
Quando eles se aproximam, Alessandro não perde tempo com formalidades. Fala direto, com aquele tom tranquilo, como quem quer deixar as coisas claras desde o início:
— Aurora, a Kira está aqui não apenas a trabalho. Ela também precisa aprender a lidar com um pouco de burocracia.
Ele sorri suavemente, quase como quem se diverte com a ideia. Kira, por outro lado, permanece séria, impassível. Não esboça qualquer reação.
Não consigo evitar o pensamento que me invade: Será que ela sente algo por ele?
Ela nunca demonstra. Nada. Nenhum sinal, nenhum gesto de afeto. É quase absurdo o quanto ela se mantém distante, emocionalmente isolada. E ainda assim... há algo ali.
Observo melhor. O olhar de Kira está fixo em Alessandro, mas não é um olhar apaixonado. É um olhar atento, meticuloso. Um tipo de vigilância silenciosa, como se ela estivesse o protegendo com os olhos. Uma sentinela em constante alerta. Cuidado absoluto.
Ela varre o ambiente ao redor, analisa rostos, posturas, ângulos de aproximação. É como se, para ela, qualquer sinal de vulnerabilidade emocional fosse uma distração perigosa — um risco que ela não está disposta a correr.
E então eu entendo.
Ela não demonstra afeto, não por ausência de sentimento, mas porque precisa manter o controle. Para não falhar. Para não se permitir baixar a guarda.
Vamos de veículo de impulso vetorial até o hotel. Alessandro reservou para ele e Kira a suíte presidencial no Hotel Nacional. Eu ficarei em uma suíte no andar abaixo. Ele nem tenta disfarçar o interesse e o fascínio que sente por Kira. Mas eu sou sua cunhada ou ex-cunhada. Tanto faz agora.
Aproveito o momento em que Kira se distrai e vai ao banheiro para me aproximar dele e conversar.
— Alessandro, você esqueceu minha irmã Amanda? — pergunto sem rodeios.
Ele me encara por um segundo, sério, e responde com um tom firme:
— Aurora, sei que era minha cunhada, irmã de minha noiva. Mas minha vida pessooal não lhe diz respeito. o tom dele de ríspido muda rapidamente para curioso
— Mas o que te deu para perguntar isso agora?
— Notei como você olha para a Kira — digo, sem esconder o incômodo. — Sinto que está interessado nela.
Ele não hesita. Respira fundo, me encara com firmeza.
— E se eu estiver? Em que isso te diz respeito? Vai me ameaçar como o Douglas fez?
Isso me surpreendeu. Eu não sabia que Douglas e Alessandro estavam em um clima de hostilidade, mas imagino que tenha algo a ver com Kira. Um aperto no peito me faz perceber que a história está se repetindo. Amanda, no passado... e agora, Kira. Eu não posso deixar isso acontecer de novo.
Decido que vou convidar Kira para passear no parque esta noite. Dizem que o parque da cidade é enorme, e muitas pessoas vão até lá à noite para caminhar. É isso. Preciso de proximidade. Preciso conquistá-la. Ajudar para que, desta vez, a história siga por outro caminho.
— Não estou te ameaçando. Você sabe que gosto de você, Alessandro, e torço para que seja feliz. Se acha que será feliz com ela... então, lhe desejo boa sorte. — Falo cada palavra com sinceridade e carinho. Alessandro nos ajudou muito em momentos difíceis, e sou grata por isso.
Kira sai do banheiro nesse instante. Nos encara por um segundo, sem dizer uma palavra, e segue direto para fora da sala. Eu e Alessandro trocamos um olhar silencioso.
— Vou para a cobertura, Aurora — ele diz, como se sentisse a necessidade de me avisar.
— Claro. Vai jantar no quarto ou pretende sair? — pergunto, procurando espaço para me aproximar de Kira.
— Vou jantar no hotel. No meu quarto. Com a Kira. — Ele levanta ligeiramente o tom ao pronunciar o nome dela. Mas eu entendi o recado. O recado foi claro.
Dou um sorriso meio sem graça. Lá se foram meus planos de sair com ela.
— Ok — respondo, com um tom resoluto e tranquilo. — Vou comer no meu quarto também, então.
Ele sorri e se retira.
Fico parada por mais um tempo, sozinha ali, sentindo o silêncio pesar. Meu coração bate acelerado, não só por tudo o que Alessandro disse, mas porque agora tenho certeza, Kira é Amanda. Minha irmã. A mulher que todos acreditam ter morrido naquele maldito atentado.
Mas ela está viva. E está aqui. Bem diante de mim. Só que não se lembra de quem é. Não se lembra de mim.
Respiro fundo, lutando contra as lágrimas que ameaçam cair. Eu preciso manter a calma. Ela não pode saber, não agora. Não assim. Se forçar uma lembrança, posso afastá-la. Preciso me aproximar de Kira com paciência, com cuidado. Conquistá-la aos poucos. Fazer com que ela sinta, mesmo sem saber por quê, que pode confiar em mim.
Pego o celular e mando uma mensagem curta:
"Kira, sei que você vai jantar com Alessandro, mas se após o jantar estiver livre, queria te convidar para conhecer o parque da cidade. Dizem que à noite é lindo. Me avise."
Envio a mensagem antes que minha coragem fuja. Logo em seguida, deixo o celular de lado e me jogo na cama sentindo um peso em meus ombros.
Fecho os olhos e me permito lembrar. Do sorriso de Amanda, de sua risada quando eu a fazia cócegas, do jeito que ela defendia Alessandro como se fosse um cavaleiro encantado. Eu era a irmã mais velha, mas ela sempre me dava uns sermões. Quando descobrimos sobre a doença, foi hörrível:
FLASHBACK
Uma condição autoimune rara. O médico falava com termos técnicos, frios, objetivos, mas eu só ouvia o som do mundo se desfazendo ao meu redor. Amanda segurava minha mão com força. Ela sempre foi mais corajosa que eu.
— "Acho que ganhei uma desculpa perfeita pra você me paparicar por um tempo", ela brincou, com aquele sorriso säfado que sempre usava quando queria me fazer rir.
— "Não tem graça, Amanda."
— "Claro que tem. Se for pra viver menos, vou viver bem melhor. E você vai me ajudar com isso."
Seu corpo definhando aos poucos.
Eu lembro das injeções, das internações, da dieta rígida, das medicações que a deixavam fraca, pálida, mas ela nunca reclamava. Ela só perguntava se Alessandro viria visitá-la. Ele sempre vinha. Levava flores, filmes antigos, livros com anotações engraçadas nas margens.
FIM DO FLASHBACK
E agora preciso novamente estar ao seu lado, mesmo que ela não se lembre. Mesmo que ela me olhe como uma estranha. Mesmo que o coração dela não esteja ciente da família que tá aqui ao lado dela.
Quando abro os olhos, sinto uma determinação nova tomar conta de mim. Não importa quanto tempo leve. Eu vou reconquistar minha irmã. Eu vou trazê-la de volta.
Nem que para isso eu precise aprender a conviver com uma Amanda que não se lembra de ser Amanda.