Capítulo 2 – O Veneno com Cheiro de Flor

1182 Words
Daren Tem gente que chega no morro e é só mais um vulto. Vem, atrapalha, some. Outras chegam chamando atenção demais, querendo consertar o que nunca entenderam. E tem os que aparecem… e, mesmo sem dizer nada, mudam o ar. Como se a presença já fosse um aviso. Um prenúncio. Ela era assim. Vi quando desceu da van, apertando a mochila contra o peito como se fosse um escudo. Cabelo preso num coque frouxo, roupas simples, mas com um perfume de fora. Estranha demais pra passar despercebida. Frágil demais pra durar aqui. "Mais uma iludida", pensei. Mas aí ela olhou em volta. Não com nojo. Nem com pena. Com atenção. Esse tipo é o mais perigoso. Encostado na moto, traguei o cigarro com calma. Os olhos acompanhavam cada passo dela como se meu instinto soubesse que aquilo era mais que curiosidade. Era alerta. E meu instinto nunca erra. — A novinha da saúde — murmurou Xandão, um dos meus. — Ouvi dizer que veio do projeto da faculdade. — É. E tá metida demais pra quem não sabe onde tá pisando — respondi sem tirar os olhos dela. A mulher parou na frente da ONG e cumprimentou umas crianças. Sorriu. Um sorriso leve, limpo. Quase fora de lugar ali. Me incomodou. Talvez porque eu soubesse que, se ela sorrisse pra mim daquele jeito, eu ia querer arrancar aquele sorriso… ou guardar. De repente, ela virou o rosto. Me viu. O olhar prendeu no meu, por mais tempo do que devia. A maioria desvia. Ela não. Júlia, a coordenadora, apareceu do lado dela, falando rápido, tensa. Devia estar explicando quem eu era. E mesmo assim, a enfermeirinha não demonstrou medo. Tinha alguma coisa nos olhos dela que me fez franzir a testa. Não era só coragem. Era ignorância. Ou loucura. Porque aqui, mulher como ela é flor no meio da guerra. Pode ser bonita. Pode perfumar. Mas no final… apodrece. Passei o resto da tarde fingindo que cuidava de outros assuntos. Reunião com os meninos da contenção, troca de olhares com os olheiros, ligação com o fornecedor. Mas minha cabeça… estava presa na imagem daquela mulher entrando e saindo da ONG como se aquilo fosse normal. Como se não tivesse morte nas esquinas, silêncio nos becos e sangue nos olhos de quem anda ali. No fim do dia, pedi pro moleque que ronda perto da ONG vigiar ela. — Só observar — falei. — Qualquer coisa fora do normal, me avisa. Mas não encosta. Entendeu? Ele assentiu, ligeiro. — Ela vai dar trabalho? — ele perguntou. — Não sei. Mas quero saber antes de todo mundo se ela der. Naquela noite, subi pro alto da laje onde costumo ficar quando quero pensar. O morro aos meus pés, o céu nublado e os sons da madrugada se misturando com os meus pensamentos. E no meio de tudo, ela. Eva. Nome de santa. De tentação. De início de queda. E eu já tinha caído uma vez na vida. Nunca mais. Fui criado aqui. Vi meu pai levar um tiro na cara aos nove anos. Minha mãe sumiu depois, ninguém sabe se fugiu ou foi queimada. Cresci entre armas, silêncios e escolhas podres. Eu não nasci monstro. Mas o morro me ensinou que, se eu não fosse, seria engolido. Hoje sou o trono. E o trono não se sustenta com ternura. Então por que aquela mulher me desconcentrava? Dois dias depois, ela apareceu de novo. Mesma mochila, outro sorriso. Ajeitando curativos, dando orientações pra mãe de uma criança, tentando convencer um adolescente a fazer um exame. Iludida. Mas eficiente. À noite, quando fui receber a carga nova, o clima pesou. Um dos meus correios foi interceptado por miliciano no trajeto. Tivemos que refazer a rota e resolver no grito. E no sangue. Resolvi agir. No terceiro dia, entrei na ONG. A reação foi imediata. Os que estavam no local congelaram. Júlia empalideceu. Mas Eva… Eva me encarou. Um susto nos olhos, sim. Mas também firmeza. A porta bateu atrás de mim. O silêncio era cortante. — O que você quer aqui? — ela perguntou, com uma voz que tentava não tremer. — Isso é jeito de falar com quem te protege sem você nem saber? Ela arregalou os olhos. — Eu não pedi sua proteção. — E mesmo assim tem. Porque você é burra demais pra entender o tamanho do perigo que corre andando por aqui achando que dá pra salvar o mundo com curativo. Ela deu um passo pra frente. — Eu sei o que estou fazendo. Me aproximei. Devagar. Olhos nos olhos. — Não, você não sabe. Mas vai aprender. E rápido. Ela engoliu seco. E mesmo assim, não desviou. — Você sempre entra nos lugares como um deus? — Não. Só quando o lugar é meu. E aqui… é. Não sei explicar o que foi aquele momento. Talvez o embate. Talvez o desafio. Mas alguma coisa nela me atiçava de um jeito que nenhuma mulher tinha feito. As do morro me obedecem, me veneram, me temem. As de fora me desejam, depois fogem. Mas Eva… Eva me irritava. E me atraía por isso. Depois disso, comecei a aparecer mais. Fingia que passava só pra conferir os meninos. Mas era por ela. Pegava ela conversando com as mães, limpando feridas, fazendo planilhas à mão porque não tinha computador decente. E às vezes… sorrindo pra uma criança. Um sorriso tão fora do meu mundo que me fazia querer arrebentar qualquer um que ameaçasse apagar aquilo. Incluindo eu mesmo. *** Uma noite, recebi a notícia de que um grupo rival estava sondando o limite da nossa área. Fui pessoalmente resolver. Emboscada. Dois dos meus caíram. Consegui sair, mas com sangue nos braços. Subi o morro cambaleando. Podia ir pra uma das casas seguras. Mas meus pés me levaram direto pra ONG. Júlia quis chamar o socorro. Mandei calar a boca. E Eva… Eva me viu. — Você tá sangrando! — Percebe rápido — murmurei. Ela me fez sentar. Tremeu ao rasgar a camisa, mas continuou. Lavou o ferimento, costurou com as mãos firmes. E chorou baixinho quando viu o estrago. — Por que você vive assim? — Porque eu não tive escolha. — Sempre tem. — Você teve. E mesmo assim veio parar aqui. Ela parou. Os olhos marejados. As mãos ainda nos pontos. — Talvez porque eu também esteja tentando me salvar — ela sussurrou. Aquilo me destruiu por dentro. Porque soou real. E perigoso. Naquela noite, não aconteceu nada físico. Mas algo mudou entre nós. Passei a sonhar com ela. Com o cheiro dela. Com os olhos. Com o toque. Passei a ficar mais violento com os outros. Mais impaciente. Mais… instável. Porque ela era a única coisa que eu não podia controlar. E isso me enlouquecia. Decidi uma coisa: se ela ia continuar ali, então seria do meu jeito. Segura. Vigiada. E talvez… marcada. Mas Eva era como veneno: doce, silencioso… e fatal. E eu, que sempre soube domar qualquer fera, estava prestes a descobrir que algumas flores nascem pra derrubar reis. E que o trono… é o lugar mais solitário do mundo.
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