6- Amigas

1509 Words
Capítulo 6 Isadora narrando : Acordei antes do despertador. Como sempre. O corpo ainda tava pesado, mas a cabeça já girava. Levantei devagar, sentindo aquela dorzinha na perna que já faz parte de mim. Fui até a cozinha e preparei o café. Deixei a cafeteira ligada, uma caneca limpa do lado, e saí pela porta dos fundos direto pro mercadinho. O sol ainda nem tinha aquecido a rua direito, mas eu já tava ali, puxando a grade e ajeitando as primeiras coisas da manhã. Organizei o pão na estufa, limpei o balcão com pano úmido e liguei a TV só pra fazer barulho. Ficar em silêncio às vezes é pior. Alguns minutos depois, ouvi o barulho da porta do corredor abrindo. Era o Marcos. Ele tava com cara de quem dormiu m*l, cabelo bagunçado, aquele andar apressado que já entrega o peso da rotina dele. Fez um sinal com a mão, levantando o queixo, e eu retribuí. Sem palavras, só aquele olhar de costume. Ele saiu, como sempre faz. Moto roncando rua acima. Voltei pro meu canto e tentei focar nas vendas. Dona Cida veio pegar pão, o menino da vila pediu fiado de novo, e eu fui indo… um cliente de cada vez. Tava ali distraída, limpando o vidro da estufa, quando ouvi o barulho familiar do carrinho de pão arrastando no chão da calçada. Era o seu Silvano, o padeiro. — Bom dia, Isa! — ele gritou lá da porta, com aquele sotaque carregado e o avental todo manchado de farinha. — Bom dia, seu Silvano. Pode entrar. Ele entrou bufando, como sempre, enxugando o suor da testa com o braço. — Hoje a fornada saiu tarde. Fogão velho deu trabalho, viu? Mas trouxe pão fresquinho, como sempre. — Tá ótimo. O pessoal já começa a perguntar cedo — respondi, pegando o saco de papel e ajeitando os pães na estufa. — E teu irmão? Já saiu? Assenti. — Foi trabalhar. Saiu cedo hoje. — Bom rapaz. Guerreiro. — ele comentou, ajeitando a alça do carrinho. — Cuida bem de ti. Sorri de leve, sem responder. Ele deu um tapinha no balcão e foi saindo. — Qualquer coisa, grita. Tô aqui na esquina. — Pode deixar. Obrigada, seu Silvano. Mal ele saiu, já começaram a chegar os primeiros clientes. Dona Cida voltou, dessa vez pra pegar leite. — Isa, separa aquele de saquinho, o mais barato, minha filha. O cartão só passa amanhã. Peguei sem nem perguntar. Já conhecia as dores da rua. Sabia que nem todo mundo pode escolher marca. Logo depois, vieram dois meninos uniformizados da escola, um querendo Trakinas, o outro pedindo chocolate. — Tem daquele chiclete azul, tia? — Acabou ontem. Chega só amanhã. — respondi, anotando mentalmente pra pedir mais. A manhã seguiu assim, no ritmo de sempre. Cliente entrando e saindo, cheiro de pão invadindo o ar, barulho da TV lá no fundo misturado com o zum-zum da rua. Eu tava ali atrás do balcão, anotando umas pendências no caderno de fiado, quando ouvi a voz que já vinha animada lá da porta: — Pode ir lavando a louça que hoje o rango é por minha conta! Levantei os olhos e lá estava ela, Ana Lúcia, toda empolgada, carregando duas sacolas do mercado e com um sorriso que parecia iluminar até os cantos escuros do mercadinho. — O que é isso, menina? — perguntei, rindo, já indo abrir a portinha lateral pra ela passar. — Trouxe as coisas pra fazer aquela lasanha que tu ama! — ela disse, balançando a sacola com orgulho. — Presunto, queijo, massa, molho, até um refri gelado pra acompanhar. Hoje tu não escapa! — Tu é maluca… — murmurei, mas com o sorriso escapando. — Vai fazer tudo isso assim, do nada? — Nada de do nada, Isa. Tu vive cansada, se mata aqui dentro desse mercadinho todo dia. Tu merece sentar e comer com gosto pelo menos uma vez na semana. Ela entrou, colocou as sacolas sobre o balcão e já foi abrindo, mostrando os ingredientes. — E outra… cozinhar me distrai, e ver tu comer até lamber o prato me dá orgulho de amiga boa de mão. — ela piscou, brincando. — Tu não existe, Ana. — falei baixinho, sentindo aquele calor bom no peito. Porque, mesmo nos dias mais nublados, ela sempre chegava com o sol. Enquanto ela separava as coisas e organizava o que ia levar lá pra cozinha, eu voltei a atender mais dois clientes, mas com um sorriso sincero no rosto. Nem todo mundo tem sorte de ter uma amiga assim. Quando deu meio-dia, desliguei a TV, guardei o caderno de fiado e fechei a grade do mercadinho. Peguei minha muleta, que já tava encostada atrás do balcão, e fui pra parte dos fundos de casa. A cada passo, a dor dava um aviso, mas eu já tava acostumada a ignorar. O cheiro da lasanha invadia tudo. Molho, queijo, orégano… coisa boa de verdade. Só de respirar, o estômago roncou. — Tô sentindo cheiro de comida de vó — falei, entrando na cozinha. Ana Lúcia tava de avental, tirando a lasanha do forno com todo o cuidado do mundo, como se tivesse carregando ouro. — Fica quieta e senta aí, madame. Só vou montar a mesa e já te sirvo. — Tá se achando, hein? — provoquei, rindo. — Não é todo dia que tu tem chef particular. Aproveita — ela rebateu. Me sentei devagar, ajeitando a muleta do lado da cadeira. Fiquei ali observando ela organizar os pratos e o copo com refri gelado. Era nessas horas que eu sentia um pedacinho de normalidade. — E aí… — ela começou, sentando na minha frente. — Que dia tu vai pra fisioterapia de novo? A pergunta bateu seco. Suspirei fundo antes de responder. — Não vou mais. — disse, sem rodeio, pegando o garfo. Ela franziu a testa, me encarando. — Como assim não vai mais, Isa? — Tava dando muito gasto pro Marcos, e pra ser bem sincera, não tava adiantando de nada. Eu fico naquela sala cheia de gente me olhando torto, fazendo exercício que só me cansa e me deixa com mais dor. Eu tô cansada, Ana. Ela largou o garfo devagar no prato, me olhando com firmeza. — Tu não pode desistir de ti, Isa. Não faz isso. Tu passou por tanta coisa, sobreviveu, e agora vai parar? — Eu não tô parando… — falei baixo. — Só tô aceitando que essa sou eu agora. Ela balançou a cabeça, com os olhos marejando. — Tu não é só isso. Tu é muito mais. Eu te conheço. E eu sei que, por dentro, tu ainda quer lutar, só tá cansada. E tudo bem. Mas não deixa a dor decidir por ti. Fiquei em silêncio. Porque parte de mim sabia que ela tava certa. Mas outra parte, só queria descansar. Depois de alguns minutos em silêncio, a Ana Lúcia soltou, do nada, como quem muda de assunto só pra aliviar o clima: — Ah… esqueci de te contar. Hoje vai ter pagode lá na lanchonete do outro lado da quadra. Vai começar depois das sete. Levantei o olhar pra ela, desconfiada. — E? Ela abriu um sorrisinho, toda esperta. — E que tu vai comigo, ué. Soltei uma risada seca, sem graça. — Tu só pode tá brincando, né? — Tô falando sério, Isa. Já falei com a Lorena também, ela vai. Bora sair um pouco, dançar, rir, ver gente. Cê tá precisando, amiga. — Não vou, Ana. Nem insiste. — falei, me levantando pra pegar mais refri. — Imagina eu lá, mancando no meio de todo mundo, todo mundo olhando, cochichando, não sou obrigada. — E desde quando tu liga pro que os outros pensam? — ela retrucou, cruzando os braços. — Desde que todo mundo resolveu me olhar como se eu fosse um problema ambulante. — falei mais alto do que devia. — Eu não quero me expor. Só quero paz. Ela ia responder, mas na mesma hora a porta da frente abriu e o barulho da moto sendo desligada lá fora denunciou. Marcos entrou, largando o boné no sofá e vindo direto pra cozinha, ouvindo só o final da conversa. — Paz nada, Isa. — ele falou, se encostando no batente da porta. — Tu tem que sair, viver tua vida. Tu não morreu, p***a. Fiquei em silêncio, sem saber o que responder. — Tu tem que parar de se esconder — ele continuou, vindo até a mesa. — Não é tua perna que define quem tu é. Tu ainda respira, tu ainda sonha. Então vive. Pelo menos tenta. — Cês tão combinando agora, é? — perguntei, meio irritada. Ana deu risada. — Eu só tô tentando te lembrar quem tu é. Marcos me olhou firme, mas com carinho. — Só vai. Se tu não gostar, volta. Mas pelo menos tenta, Isa. Fiquei ali, olhando pros dois, engolindo o nó na garganta. Parte de mim queria gritar não. Mas a outra… A outra queria tanto sair um pouco da sombra. Continua ..... Deixem bilhetinhos 📚
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