Capítulo 5
Marcos narrando:
Tem coisa que a gente nunca esquece.
Nunca. A cena daquele dia tá cravada na minha memória como faca.
Eu tinha 16 anos. Trabalhava num bar aqui perto, lavando copo, servindo cerveja, correndo pra lá e pra cá. Era domingo, lembro como se fosse agora. Meus pais iam visitar a vó com a Isadora. Me chamaram pra ir, mas eu falei que ia fazer hora extra. Queria guardar uma grana, ajudar nas contas… fazer minha parte.
E foi isso que me salvou.
Ou… me condenou.
Porque enquanto eu tava atrás do balcão, suado e sorrindo, meus pais tavam morrendo dentro de um carro. E a minha irmã, tava sendo esmagada pelo destino.
Quando me ligaram, eu achei que era trote.
Depois, tudo virou borrão. Hospital, sirene, choro, corpo coberto por lençol branco, e a Isa, entre a vida e a morte. Ela ficou dias desacordada por dias.
E eu ali, do lado, segurando a mão dela e implorando pra Deus não me tirar ela também.
Eu falava o tempo todo: Fica, Isa… fica por mim.
E ela ficou. Mas nunca mais foi a mesma.
Nem ela… nem eu.
Eu enterrei meu pai com a mão tremendo.
Enterrei minha mãe com o coração quebrado.
Mas continuei de pé. Porque a Isadora ainda tava ali. E precisava de mim.
Desde então, virei irmão, pai, mãe, tudo o que ela precisava. A minha avó ajudou por um tempo, até a tristeza levar ela também. Aí ficou só eu e Isa.
Dois sobreviventes. Ver ela se arrastando com dor, desanimada, desistindo, me dilacera por dentro. E eu sei que às vezes pego pesado, forço, fico insistindo nessa cirurgia.
Mas é porque eu não aceito ver ela se esconder, se apagar, se sentir menos do que é. Minha irmã é a melhor pessoa que conheço.
A mais forte. A mais guerreira. E se for pra morrer tentando dar uma vida melhor pra ela, então que seja.
Mas hoje, quando ela segurou minha mão e falou tudo aquilo… Eu entendi que ela tá cansada.
E por mais que doa… eu preciso respeitar.
Porque o amor também é saber recuar.
É saber cuidar em silêncio.
Isa é tudo que eu tenho.
E se ela diz que tá bem assim… Então eu vou continuar lutando por ela. Mesmo que seja só pra manter esse sorriso raro que aparece de vez em quando. Porque ver ela viva é o que me mantém vivo também.
Eu trabalho pro dono do morro já tem alguns anos. Não sou vapor novo, não. Tô na boca central, na contenção, faço o que tiver que fazer.
Se for pra resolver na conversa, eu resolvo. Se for no grito ou no aço, eu também vou.
Mando a real: sou um faz-tudo.
E faço com sangue no olho, porque não tô ali por status, por ouro, por mulher. Tô ali por ela.
Pela Isa, ela é meu motivo.
Quando ela tava no hospital, ainda nova, fizeram a primeira cirurgia pelo SUS. Foi o que deu pra fazer. A médica falou que ajudou, mas não corrigiu tudo. Essa segunda que ela precisa agora, é só no particular. Custa caro. O orçamento gira em torno de oitenta mil reais.
Oitenta mil.
Pra mim, que vim do nada, isso é como se fosse um milhão. Mas eu nunca desisti.
Nesse tempo, consegui juntar trinta e um mil.
Dinheiro suado, juntado no corre, virando noite na contenção, pegando entrega pesada, fazendo bico de tudo. Teve vez que fui pra outro morro fazer acerto, fazer coleta, como os chefes chamam, mas na real, era assalto.
E eu fui. Fui porque precisava.
Porque enquanto os outros trampam por tênis, por cordão, por fuzil novo, eu trampo pela cirurgia da minha irmã.
Fora isso, ainda tinha que pagar fisioterapia, transporte, remédio, consulta com psicóloga,
Cada passo dela custava mais do que eu podia, mas eu dava um jeito.
Só que agora. Já tem quase um mês que ela não quer mais fazer nada. Parou com a fisio. Largou a psicóloga. Não quer nem ouvir falar de médico.
Se tranca no mercadinho, sorri pela metade e diz que tá bem. Mas eu conheço ela e eu vejo no olho dela que ela tá machucada, só que não quer mais lutar, ela tá cansada.
E isso me mata. Porque eu tô lutando por nós dois. Carregando tudo nas costas, suando sangue pra tentar consertar uma vida que quebrou quando a gente perdeu pai e mãe.
Às vezes, eu fico pensando…
Será que eu tô forçando demais?
Será que ela só quer ser como é agora?
Mas aí eu lembro do sorriso dela antes do acidente. Lembro da forma que ela dançava, que falava da faculdade, do sonho de ser professora.
E eu juro… eu só queria dar tudo de volta pra ela.
Mesmo que eu não possa trazer nossos pais.
Mesmo que eu me perca no meio do caminho.
Porque enquanto eu tiver fôlego. Eu vou tentar salvar ela.
Acordei com o celular despertando sem dó.
Sete da manhã batendo na tela e eu com a cara toda amassada. O corpo até pedia mais cinco minutos, mas a cabeça já gritava: levanta, vagabundo, o corre não espera.
Joguei as pernas pra fora da cama e fui direto pro banheiro, sem pensar muito. Abri o chuveiro no gelado mesmo. A água bateu nas costas feito tapa. Me estremeceu inteiro, mas serviu pra acordar de vez.
Lavei o rosto, escovei os dentes, me olhei rápido no espelho. Cara fechada, olheira fundando, mas o olhar ainda firme. Voltei pro quarto e fui me arrumando no automático. Vesti o short largo, camiseta preta, boné virado pra trás e um tendi preto. Peguei a pochete, coloquei o rádio dentro, junto com o meu baseado, o isqueiro, a graninha que sobrou de ontem, minha arma e meu celular e pronto. Já era hora de bater ponto na contenção.
Saí do quarto puxando a porta devagar e desci as escadas da casa com a coluna meio torta, sentindo o peso do dia antes mesmo dele começar. Mas foi só chegar na cozinha que o cheiro me pegou. Café.
Senti na hora. Forte, fresco, cheiro de lar.
A cafeteira ainda tava quente, e ao lado da garrafa tinha uma caneca limpa esperando.
Ela já tava no mercadinho. Mas antes de sair, passou ali, preparou o café, deixou tudo no jeito.
Sorri de leve, peguei a caneca, servi o café e dei o primeiro gole ali mesmo, em pé, encostado no batente da porta.
Dei mais um gole, respirei fundo e falei baixo, só pra mim:
— Mais um dia…
E fui, porque o corre não espera.
E eu ainda tenho muito pra fazer por ela.
Passei no mercadinho antes de subir pro corre.
Ela já tava lá, toda na dela, ajeitando as prateleiras, com o cabelo preso e aquele olhar meio distante que ela sempre tem de manhã.
Fiz um sinal com a mão, só levantando o queixo, e ela retribuiu com um aceno leve.
Nem precisei falar nada.
Peguei minha moto, subi direto pra boca. O calçamento ainda tava molhado do sereno da madrugada, mas o sol já começava a esquentar.
Cheguei na boca, estacionei na frente da laje. E mesmo cedo, já tinha umas p*****a plantada por ali, rindo alto, de short curto e olho vivo.
— E aí, Marcos — falou a Bela, uma das que eu pego de vez em quando. Chegou perto, rebolando, como sempre.
— Fala, Bela. Tão cedo assim? Tu não dorme, não, p***a? — falei, passando por ela com um sorriso de canto.
— Tô com saudade, hein… — ela soltou, jogando charme.
— E eu tô sem tempo. — respondi seco, já entrando pela porta lateral da boca.
Subi dois degraus e quando fui abrir a porta da salinha, dei de cara com o Guto saindo.
— E aí, Marcos. — ele falou, com aquela voz grave.
— Fala, chefe. Firmeza?
— De boa. Queria trocar uma ideia contigo. — ele disse, me encarando com aquele olhar que parece ler a gente por dentro.
Só concordei com a cabeça e entrei atrás dele, porta fechando devagar.
— Pode falar — soltei, encostando na parede, com os braços cruzados.
Ele não enrolou.
— Não sabia que tu tinha irmã. — mandou direto, me olhando nos olhos.
Na hora eu congelei por dentro. Mas disfarcei.
— E por que cê tinha que saber? — soltei no reflexo, meio ríspido.
Ele riu de leve, mas o olhar continuava sério.
— Talvez porque eu sou o dono do morro e gosto de saber de tudo que acontece aqui. Tu nunca falou dela.
— Não falo porque não gosto de misturar as coisas. A Isadora não é desse mundo que a gente vive. Ela é diferente. Então eu prefiro que ela fique de fora. — respondi, firme, olhando de volta.
Ele deu um leve aceno com a cabeça.
— Já entendi. — falou curto, depois se recostou na cadeira. — Mas o assunto não é ela.
Fez uma pausa, me olhando de cima a baixo.
— Eu quero falar de outro bagulho contigo. — mandou.
— Pode falar. — falei, firme, mas com o coração acelerando.
— Tô querendo tu de chefe da segurança. Já tem um tempo que tô de olho no teu trampo, e gostei do que vi. Tu é discreto, leal, faz o que tem que ser feito. Então se tu quiser, o cargo é teu.
Fiquei sem reação por uns segundos.
Era coisa grande.
Era outro patamar.
— Claro que eu quero, pô! — soltei na hora, quase sem acreditar. — Preciso da grana mesmo… isso vai ajudar muito.
Ele sorriu de canto, levantando da cadeira.
— Então já começa hoje. Só troca uma ideia com o Léo, que ele vai te explicar tudo.
— Tamo junto, chefe. — falei, engolindo seco.
Saí da sala com a mente a mil. Feliz pra c*****o.
Continua ....
Deixem bilhetinhos 📚