Capítulo 4
Isadora narrando
A Ana Lúcia ficou ali comigo um tempão.
A conversa com ela sempre me distrai, me tira da cabeça. A gente riu, relembrou umas coisas do tempo da escola, falou m*l de umas vizinhas fofoqueiras… o tipo de papo que me fazia esquecer, nem que fosse por um instante, do peso que carrego todo dia.
Mais tarde quando deu fome, fiz só um macarrão com carne moída. Simples, mas ela comeu como se fosse a melhor coisa do mundo.
— Menina, se eu soubesse que tu ainda cozinhava assim, tinha voltado do meu pai antes! — ela disse, rindo com a boca cheia.
— Tu só veio pela comida, né? — brinquei, e ela me deu língua igual criança.
Depois de comer, voltamos pro mercadinho.
A tarde passou que nem vi. O sol batia direto na porta, deixando o chão quente e a loja iluminada.
Eu tava ali, no meu canto, como sempre.
— Boa tarde, Isa! — era dona Cida, pegando dois pães, um sabão em barra e uma garrafa de café.
— Boa tarde, dona Cida. Vai tudo no caderninho? — perguntei, já pegando a caneta.
— Por favor, filha. Dia de pagamento eu acerto. — ela respondeu, já indo embora com pressa.
Pouco depois, vieram dois meninos, suados do futebol na quadra.
— Tia, tem geladinho?
— Só de morango. — respondi, já pegando no freezer.
— É dois! — eles gritaram, quase se empurrando pra ver quem ia pegar primeiro.
— Calma, senão vai derreter antes de sair da porta. — falei, entregando os geladinhos com um sorrisinho.
A Ana só observava tudo, de canto, mexendo no celular. Ela adorava ver o vai e vem do morro, como se fosse um filme passando em tempo real.
— Tu é muito paciente. Eu já tinha mandado uns cinco tomar naquele lugar. — ela murmurou.
— Já me acostumei. Aqui, ou tu aprende a respirar fundo, ou pira.
No fim da tarde, veio um rapaz mais novo, acho que novato no corre, meio nervoso, pegando energético e chiclete.
— E aí, tudo certo? — perguntei.
— Tudo sim… é só isso. — ele respondeu, sem me encarar muito.
— Nove e cinquenta. — falei, recebendo o dinheiro e vendo ele sair rapidinho.
A Ana me olhou.
— Esse aí parece que viu fantasma.
—Ou viu a cara do chefe e tremeu. — respondi baixinho, lembrando do Guto sem querer.
Engoli em seco.
Por mais que eu fingisse estar tranquila, no fundo… eu ainda tava mexida.
E eu odiava essa sensação.
Quando já estava noite, a Ana Lúcia resolveu ir embora.
— Amanhã eu passo aqui de novo — ela disse, pegando a bolsinha e me dando um beijo na testa. — Tenta descansar um pouco, Isa. Tu vive pra esse mercadinho.
— Nem me fala — murmurei, sorrindo fraco. — Mas foi bom ter tu aqui hoje.
Ela saiu descendo a ladeira e eu fiquei ali parada por uns segundos, olhando o portão.
Depois respirei fundo, fechei a gaveta do caixa, desliguei a TV e fui fechar o mercadinho.
Peguei as muletas, que estavam encostadas na lateral do balcão. Eu até ando sem elas quando tô em casa, com calma… mas na rua ou de pé muito tempo, a perna pesa, lateja. A dor me lembra que tem coisa que nunca voltou pro lugar.
Tranquei a grade da frente, depois a porta interna. Fui apagando as luzes uma por uma.
A parte boa de morar nos fundos é que eu não preciso subir ladeira. Mas mesmo assim, aquele corredor até a porta da cozinha parece uma maratona no fim do dia.
Fui no passo lento, sentindo o cansaço no corpo.
Cheguei em casa e larguei as muletas encostadas na parede da cozinha.
Soltei um suspiro, tirei o tênis e fui mancando devagar até o quarto.
Fechei a porta e naquele momento… o silêncio me abraçou. Me despi sem pressa, sentindo cada parte do corpo reclamar. Fui pro banheiro, liguei o chuveiro e deixei a água cair nas costas, quente, como se tentasse lavar o peso do dia junto.
Fiquei ali um tempo, encostada na parede do azulejo, olhos fechados, tentando esquecer da dor…de tudo.
Quando saí, me enrolei na toalha e fui direto pro armário. Peguei meu pijama preferido, aquele de algodão claro com short folgado e blusa de alcinha. Era confortável, e só isso já fazia diferença. Vesti devagar, sentando na beira da cama. A perna doía.
Não como antes, mas ainda doía.
Deitei de lado, puxei o lençol até a cintura e fiquei olhando pro ventilador girando devagar no teto.
Tava quase pegando no sono quando ouvi duas batidinhas na porta. Baixas, cuidadosas.
E eu sabia, na hora, que era ele.
— Isa… sou eu. — a voz do Marcos veio abafada do outro lado.
— Entra, tá aberta. — falei baixinho, me ajeitando na cama.
Ele abriu devagar, botando só a cabeça pra dentro antes de entrar de vez.
— Vim ver se tu tá bem… cheguei faz uns minutos. Se tu precisar de qualquer coisa, é só falar, tá?
Assenti com a cabeça, e dei um sorrisinho fraco.
— Senta aqui. — pedi, batendo no colchão ao meu lado.
Marcos se aproximou e sentou na beirinha da cama. Ele tava com cara de cansado, mas os olhos… os olhos tinham aquele cuidado que só irmão de verdade tem. Aquele cuidado que protege em silêncio.
Fiquei olhando pra ele por uns segundos, e então peguei na mão dele. Segurei firme.
— Marcos… eu sei que tenho sido chata contigo.
Ele tentou interromper, mas eu continuei.
— Deixa eu falar, por favor.
Ele fez que sim, com os olhos baixos.
— Tu não merece isso. Não merece minha frieza, minha resistência. Eu sei que tu só quer me ver bem… que tu tá juntando grana, que se mata todo dia nessa vida por mim.
Meus olhos marejaram.
— Mas eu só quero que tu respeite minha decisão de não tentar mais. Eu não quero mais operar. Não quero mais passar por hospital, anestesia, esperança que sempre termina em frustração. Eu tô cansada, Marcos. Cansada de tentar ser outra coisa. Sou assim agora… e só quero paz.
Ele abaixou a cabeça. Ficou em silêncio por alguns segundos. Depois apertou minha mão de volta.
— Eu respeito, Isa. — ele disse com a voz baixa. — Eu só queria poder te devolver tudo que tu perdeu. Mas se tu diz que tá bem assim… eu vou parar de forçar.
Fechei os olhos, deixando uma lágrima escapar.
— Obrigada, mano.
Ele se inclinou e me deu um beijo na testa.
— Dorme bem, minha pequena. Qualquer coisa, eu tô na sala, vou ver um filme.
Assenti de novo, e ele saiu, fechando a porta devagar. Fiquei ali no escuro, abraçada na paz daquela conversa. E pela primeira vez em dias, consegui fechar os olhos sem sentir culpa.
Continua .....
Deixem bilhetinhos 📚