Capítulo 3
Guto narrando :
Tem coisa que a gente nasce pra ser. Outras, a vida obriga a virar. No meu caso, foi os dois.
Nasci e fui criado aqui no Vidigal.
Sempre vi de perto o corre, o movimento, a maldade… e também a falta. Meu pai? Nunca conheci. O desgraçado meteu o pé antes mesmo de eu nascer. Abandonou minha mãe grávida, com a barriga enorme e o coração mais ainda.
Minha mãe é a Dona Rosa. Rainha. Mulher de fibra. Costura desde novinha, agulha numa mão e dignidade na outra. Criou eu sozinha, no sacrifício, sem nunca baixar a cabeça pra ninguém. Hoje mora do lado da minha casa, e tudo que ela tem fui eu que dei.
Fogão, máquina de costura nova, armário cheio, remédio na hora, casa pintada, segurança…
Ninguém toca na Dona Rosa. Quem olhar torto pra ela, eu arranco o olho.
Mas a minha história não começou no topo, não.
Começou lá embaixo, carregando sacola pros outros e sendo chamado de “muleque”.
Entrei no movimento como vapor, com 13 anos. Fazia a entrega, corria da polícia, levava tapa na cara e engolia a revolta.
Tudo calado.
Observando.
Naquela época, o morro era comandado pelo Didi. Um merda. Traficante só no nome. Fazia patifaria, aliciava menor, matava por nada, estuprava mina escondido e ainda se achava o rei. Eu via tudo.
Engolia com raiva todo dia.
Só que chegou uma hora que não deu mais.
Ou eu matava… ou eu via ele continuar destruindo o que ainda restava do morro.
E eu matei.
Na hora, sem aviso.
Foi na cara, no meio da viela principal.
Ele não esperava. Tomou dois no peito e caiu no cimento. O povo congelou, ninguém nem respirou. Ali eu mostrei pra geral que o Guto não ia ser mais muleque de ninguém.
Ali eu assumi o comando.
Teve guerra depois? Teve.
Mas eu fui pra cima, bati de frente com quem fosse. Mandei embora quem tava na sujeira, botei ordem na favela. Hoje, quem mora no Vidigal sabe: aqui tem regra, tem comando, tem respeito. Quem erra, cai. Quem debocha, morre.
Mas mesmo mandando nessa p***a toda, eu continuo sendo o mesmo cara da ladeira.
Tatuado, boladão, mas fiel. Não tenho apego com ninguém. Não namoro, não me prendo. Mulher pra mim é passatempo. Nunca mais me iludi com sentimento depois daquela traíra que me fez de o****o quando eu tinha 20 anos. Namorei uma mina, a Kelly, eu amava ela e fazia de tudo pela mina, mas eu era só um vapor, é claro que ela me traiu e foi embora do morro com um playboy, cara cheio do dinheiro. Na época ela sumiu, eu fiquei louco atrás dela, e quando eu descobri ela já tinha metido o pé com ele. Foi melhor assim, porque se eu pegasse ela, eu matava na mesma.
Desde então, meu coração é fechado. Frio igual pedra. Só a Dona Rosa tem meu carinho. Só ela.
Minha quebrada me respeita, meus vapores me obedecem. Mas eu vivo sozinho.
No alto da minha casa, com minha arma no criado-mudo, minha geladeira cheia e minha mente sempre ligada.
Não confio em ninguém.
Até que hoje… Hoje eu entrei naquele mercadinho do lado da quadra. Tava com sede, queria uma cerveja. Mas não foi a cerveja ou a prateleira que me chamou atenção. Foi ela.
A mina por trás do balcão. Séria, com cara de quem já carregou o mundo nas costas e ainda levanta a cabeça. Isadora.
O nome combinava com o jeito. Mina gata demais, loira, olhos claros. Não sei como eu nunca vi ela por aí, se mora aqui e é irmã do Marcos, eu deveria conhecer.
Ela não me olhou com medo. Nem com bajulação. Me olhou como quem só queria que eu fosse mais um. E isso mexeu comigo.
Quando descobri que era irmã do Marcos, entendi porque nunca tinha visto. Marcos é meu truta, trampa pra mim faz um tempo em uma das bocas, tô até pensando em subir ele de cargo. Fiel, discreto. Nunca falou dela. Talvez por isso mesmo. Pra manter ela longe desse mundo. Não sei porque, mas eu fiquei intrigado demais com essa mina.
Eu cresci com o Léo, mano. Fiel a mim, tá ligado?
Desde muleque a gente se tromba no meio da ladeira. Jogava bola junto, fazia mandado pros outros, se escondia da sirene e rachava uma coxinha quando dava. Meu parceiro de verdade.
Quando eu assumi o morro, já coloquei ele de meu sub, sem nem pensar duas vezes.
Tem coisa que a gente não precisa questionar, e a lealdade do Léo é uma delas.
O cara já botou o corpo na frente por mim, já segurou bronca pesada, já foi o único a ficar de pé do meu lado quando a guerra estourou depois que eu matei o Didi.
É sangue no olho, sem tempo pra gracinha.
Ele cobra geral, segura os vapor, organiza o fluxo e mantém a quebrada no ritmo. Enquanto eu penso, ele executa. E é por isso que funciona.
Porque eu sou frio, e ele é fogo. E quando junta os dois… o morro respeita.
O Léo pode ser esquentado, mas é leal até o osso. E eu sei que, se um dia eu cair, ele segura meu nome na bala. Só que ele é atento.
Nada escapa. Se alguém fala merda, ele escuta.
Se tem traíra no meio, ele fareja.
E por isso mesmo, eu mantenho tudo certo com ele. Tudo claro. Porque confiança no morro é moeda rara. E traição… se paga com sangue.
Nós dois subimos juntos, e se um dia eu descer, vai ser ao lado dele. Mas enquanto isso não acontece, o comando é nosso. E aqui no Vidigal, quem fala mais alto… sou eu.
A boca tá girando bem. A gente tem três pontos fortes aqui no Vidigal, a da praça, a da laje azul e a da grota. Cada uma com sua função, cada uma com seu fluxo. Na da praça rola o varejo, é onde os vapor fica no pique, atendendo no radinho, sem parar. A da laje azul é mais pesada, onde entra o carregamento, passa o grosso. Tudo que chega de fora bate lá primeiro.
Já a da grota é a mais discreta. Ali é só fiel de confiança. Só vai quem tem nome, quem respeita.
Tudo no meu controle.
Eu sou o tipo de chefe que não dorme.
Acordo cedo, confiro tudo. Vejo quem chegou, quem faltou, quem tá vacilando. Se tiver vendendo fiado, eu corto. Se tiver usando, eu expulso. No meu morro não tem espaço pra nóia em posição de guerra. Vapor tem que tá ligeiro, com a mente no lugar. Erro custa caro.
E quando a semana fecha… tem o baile. Ah, o baile… É ali que a quebrada extravasa.
As mina se joga, os mano se exibe, a favela respira. Eu gosto de baile. Gosto de ver o povo sorrindo, dançando, vivendo.
Mesmo que seja só por uma noite.
Só que o baile também é teste. É ali que eu vejo quem é quem. Quem se perde na bebida, quem vacila na palavra, quem esquece que tá no jogo.
Eu fico no alto, observando tudo. Do camarote, com meu copo na mão, arma na cintura e os olhos varrendo cada canto.
É no baile que os fofoqueiro fala, que as invejosa olha torto, que os inimigo tenta se misturar.
Mas ninguém passa despercebido.
Porque aqui é Vidigal, p***a.
Continua .....
Deixem bilhetinhos 📚