Greco
Cálculo frio. É assim que as melhores ideias nascem. Nem do coração, nem do impulso — do quadro-branco mental onde eu risco custos, riscos e retorno. A boate apareceu na minha cabeça como uma planta baixa: corredores, luzes, gente dançando e dinheiro correndo de volta pra minha mão. Depois que pensei, não consegui mais “despensar”. E quando uma ideia decide morar na minha cabeça, ela paga aluguel com lucro.
— A gente vai ver como os ricos pecam — digo ao Pipa, já com o capacete na mão. — Quem quer vender noite, aprende com quem compra o dia seguinte.
Descemos pra cidade. Primeiro, Lapa: cheiro de cerveja velha, fachada histórica, som embolado. Eu observo o fluxo, a porta giratória de desejos baratos. Não é isso que eu quero. Eu quero luxo clandestino, perigo com perfume caro.
— Aqui é volume, chefe — comenta o Russo. — Muito corpo, pouco ticket.
— Eu não quero massa, quero alvo — respondo. — O tipo que paga pra esquecer o nome e lembrar o meu.
Seguimos pra Copacabana. Um clube de rooftop: hostess de sorriso treinado, corredores que separam VIP de mortal. Bato o olho no desenho do bar, na distância entre a cabine do DJ e a escada de emergência, na câmera discreta no canto que não pega o caixa. Um gerente vem cumprimentar, reconhece meu “apelido de asfalto”. Conversa mole, copo caro.
— Ponto cego ali — sussurro ao Pipa, sem mover a boca. — Dá pra passar um pacote do tamanho de uma consciência limpa.
Ele ri. — Cê vai montar uma escola?
— Universidade.
Última parada: Ipanema, casa menor, iluminação estudada, som que vibra no osso sem estourar o ouvido. Anoto mentalmente: isolamento acústico, painéis de espuma de alta densidade, subgrave que balança corpo e segredo. E uma coisa a mais: o corredor do banheiro tem um “S” que quebra linha de visão. Não é capricho de arquiteto — é ciência do pecado.
Voltamos pro morro com a noite puxando as sombras pra perto. Convoco reunião no meu “escritório”: mesa marcada de cigarro, ventilador barulhento, quatro homens que apostariam a vida por mim e dois que aprenderam que eu cobro juros pra ensinar.
— Vamos falar da boate — começo, abrindo um caderno. — Layout: entrada “oficial” pela oficina do Guto. Portão de ferro, rolo meia-altura, câmera na rua. Entrada real é pelos fundos, corredor em “L”, porta corta-fogo, leitor de pulso. Quem não tem pulso, não entra.
— Chefe, playboy no morro dá problema — o Nariga reclama, coçando o nariz que justifica o apelido. — Vai chover viatura.
— Vai chover dinheiro primeiro — digo sem levantar a voz. — “Arrego” a gente paga pra quem é de pagar. E quem subir sem convite desce sem fôlego. A regra é simples: ninguém entra armado, todo mundo sai em silêncio.
Pipa, sempre prático, aponta com a caneta. — Staff fiel?
— Portaria com a Barroca e o Índio. Ninguém passa por eles nem com senha do céu. Bar na mão do China e da Deise — dois que não bebem trabalhando e não contam dose errada nem em sonho. Caixa com a tia Zuleide, que escreve melhor que juíza e tem mão leve pra dar troco. Segurança de pista com o Cássio e o Monge. O Monge ora com a mão em cima da pistola. — Viro a página. — DJ a gente pega um que já goste de sumir, mas que apareça no som. Nada de estrela. Luz com o Bento, que faz milagre com gambiarra e não explode nada desde 2019.
Alguns riem, o ar alivia um centímetro.
— E o nome? — Russo pergunta.
Penso no que vi, no que quero, no que eu sou quando a cidade dorme. — Madrugada. Quem entrar vai saber que o dono da noite tem rosto.
Silêncio de concordo, discordo, mas não ouso. Continuo:
— Decoração: nada de espelho barato. Concreto aparente, linhas limpas, neon nos pontos certos. Um corredor com as paredes pintadas de preto fosco, teto baixo pra criar tensão. A pista abre como quem tira um véu. Camarotes com cortina pesada — quem paga, escolhe ser visto ou não. Banheiro limpo, espelho bom. Se a pessoa quer se desfazer, que se olhe primeiro. — Fecho o caderno. — Saída de emergência com trava magnética e alarme mudo conectado no rádio do Pipa. Se a polícia subir, a casa vira igreja com a velocidade de um amém.
— E a droga? — pergunta o Nariga, direto. — Vai ser liberada?
Olho pra ele como quem mede um caixão.
— A droga é mercadoria de luxo. Não é rodoviária. Nada de bandeja passando. Catálogo discreto, entrega discreta, cliente discreto. Quem piscar errado, dorme no frescor do chão.
Quando a reunião termina, três ligações me esperam. Primeiro, fornecedor de bebida: contrato por fora, nota por dentro, margem oculta entre a garrafa e o brinde. Depois, um decorador que deve favores. A voz sai manhosa, mas o preço cai quando eu lembro que favor, na minha contabilidade, vira dívida pública. Por fim, Carvalho — o PM que finge não me conhecer quando tá de farda e exagera na amizade quando a farda cai no cabide.
— Greco, cê sabe como é. A vizinhança reclama.
— A vizinhança vai dançar. E você vai dormir. — Dou a faixa de valores. — Não liga pra mim. Liga pro barulho do dinheiro.
No caminho de volta, sinto aquela coceira na nuca que avisa: tem olho demais pra pouca sombra. Uma moto aparece duas vezes nas esquinas onde não costuma aparecer. Dou o toque. Pipa diminui, eu sinalizo com a mão, Russo cai pra direita. Na terceira esquina, o moleque tenta cortar caminho. O Índio já tá lá. Ele segura o garoto pelo casaco como quem segura vento.
— Quem mandou? — pergunto, calmo.
— Ninguém, ninguém… Eu só… eu só tava gravando, chefe. — Ele mostra o celular, tela aberta no bloco de notas com duas palavras: “boate — Greco”.
Eu sorrio sem dente.
— Curiosidade é bonita até no gato. O problema é quando some o gato, sobra o arranhão. — Tomo o celular, apago, devolvo. — Leva um recado: a festa só começa quando eu bater palma. Até lá, quem respirar alto me dá alergia.
Soltamos o moleque. Meu medo não é menino curioso — é quem usa menino. E alguém está perguntando de mim.
De madrugada, vou ver o espaço. Antigo galpão de material de construção, bom pé-direito, a poucos becos de uma viela que cospe pro asfalto. Caminho com a lanterna, marcando mentalmente as demolições. Aqui derruba, ali reforça, ali sobe mezanino. A luz do meu celular varre um canto e encontra algo que eu não deixei ali: uma vela apagada e um copo virado pra baixo, desses de boteco. Embaixo do copo, um bilhete curto, sem assinatura: “Quem abre as portas da noite não escolhe quem entra.”
Fico olhando o bilhete como quem encara uma cobra quieta. Não é ameaça explícita — é educação com lâmina na manga. Eu gosto de faca bem-afiada, desde que seja a minha.
— Alguém tá cavando atalho pra minha cabeça — digo pro silêncio.
Aperto o papel, guardo no bolso. Volto o foco pro que interessa. Coloco fita no chão pra marcar pista, bar, camarins. Faço três riscos no canto mais escuro: um túnel de serviço, estreito, camuflado por prateleiras falsas, que deságua numa casa vizinha com fachada de igreja evangélica fechada — ironia planejada. Esboço uma plataforma de luz no teto, uma “lua” de metal e LED pendurada por cabos que aguentam mais que promessa de político.
— Vai ficar bonito — eu mesmo admiro. E perigoso. Perigoso é meu sobrenome.
Apago a lanterna. Fico um tempo no escuro, ouvindo o morro respirar. A cidade lá embaixo brilha como um anzol. A Rocinha, aqui em cima, sorri com dente de ouro e fome de rei. Quando saio, a porta range e, por um segundo, sinto o cheiro agridoce de perfume caro — um rastro curtíssimo, fantasma de alguém que não é daqui.
Eu sorrio no escuro.
— A Madrugada vai abrir — sussurrou. — E quem vier, vai aprender meu nome.
Do beco, dois estalos secos cortam o ar, tão próximos que a madeira da porta treme. Eu me encosto na parede, a mão indo sozinha pra arma. Lá embaixo, uma moto acelera e some. Pipa aparece correndo, sem fôlego:
— Chefe… acharam a gente primeiro.
Eu guardo o sorriso. A noite me escolheu também. E eu não costumo recusar convite.