Capítulo 1 – O Trono da Rocinha
Greco
Tem gente que acha que manda na Rocinha só porque carrega um fuzil ou espalha uns reais por aí. Besteira. Quem comanda esse lugar não é quem grita mais alto, mas quem sabe ouvir os sussurros das vielas — e transformar cada cochicho em moeda, cada medo em poder. Eu, Greco, sou o dono dos becos, das esquinas e dos segredos que essa favela esconde. Não porque eu quis. Foi a vida que me empurrou pro trono, com mais tapa do que abraço, e eu aprendi a sorrir com a boca e mostrar os dentes com a alma.
O dia ainda nem clareou direito e eu já tô de pé. O rádio chiando no canto, cheiro de café queimado vindo da cozinha improvisada no barraco ao lado. Minha “sala” é só uma mesa de madeira, velha, com marcas de cigarro, e uma janela sem vidro de onde enxergo metade do morro. Daqui, eu vejo quem sobe, quem desce, quem tá devendo e quem acha que vai me enganar.
Minha primeira audiência do dia é com Leandro, um moleque que acha que pode ganhar dinheiro fácil vendendo droga na entrada da viela da Padaria sem passar por mim. Ele entra todo suado, camisa furada, tentando esconder o medo. Se é esperto, aprende logo que aqui não existe esperteza sem pagar o preço.
— Tu sabe por que tá aqui, né, Leandro? — pergunto, apoiando o cotovelo na mesa, os dedos tamborilando de leve.
Ele engole seco. — Sei sim, chefe. Não vai mais acontecer, juro.
Dou risada, mas sem humor. — Jura? Eu já ouvi tanto “juro” aqui que dava pra abrir igreja. — A galera que me acompanha ri, mas eu não desvio o olhar dele. — Se repetir, tu não vai ter nem tempo de jurar.
Leandro balança a cabeça, olhos grudados no chão. Deixo ele ir, só pra mostrar que a misericórdia, quando vem, é só minha. Sou o único que decide quem vive tranquilo e quem dorme olhando por cima do ombro.
O morro acorda comigo. O som das motos, o vai-e-vem de crianças, o grito das mães chamando pro café. Cada rosto que passa carrega uma dívida comigo: seja de respeito, seja de medo. Gosto disso. Gosto do poder de saber que cada passo aqui é medido pelo que eu permito.
Meu braço-direito, Pipa, entra sorrindo, já sabendo que a manhã vai ser longa.
— Chefe, o g**o quer falar contigo. Problema no galpão de baixo. Parece que tão roubando carga de novo.
Faço um gesto pra ele trazer o tal g**o. Enquanto isso, acendo um cigarro, olho pela janela. No fundo, penso em como a paz nesse lugar é tão frágil quanto o fio de eletricidade que passa cortando o céu cinzento da Rocinha. Uma faísca errada, e tudo vira caos. Talvez por isso eu nunca durma direito. No trono, o sono sempre é leve — e o sonho, se existe, sempre acaba antes de começar.
O g**o entra tenso, fala da carga de eletrônico sumindo na madrugada. Alguém anda querendo brincar de Robin Hood por aqui. Mando investigar, deixo claro que não admito “justiça” que não passe pelo meu carimbo. Justiça, aqui, só tem uma lei: a minha.
Quando o sol finalmente aparece, já resolvi metade dos problemas. Recebi caixa de mercadoria, reparti porcentagem dos lucros, dei conselho pra uma mãe desesperada com o filho viciado. Sim, até isso eu faço — porque poder mesmo é saber quando usar a mão pesada e quando vestir o rosto de salvador. Aqui, eu sou demônio e anjo, tudo junto e misturado.
No intervalo, Pipa me pergunta:
— Greco, tu nunca pensou em sair dessa vida? Morar em lugar que não precise dormir com a pistola do lado?
Dou risada, aquela de quem já viu mais bala do que beijo.
— E perder esse clima de montanha-russa todo dia? Cê tá maluco, Pipa. Eu saio daqui só de caixão — e, com sorte, num bem bonito.
O dia passa, gente vai e vem, as contas fecham — quase sempre. Às vezes, falta um trocado, sobra um cadáver. A vida é assim: feita de troco miúdo e dívidas grandes demais pra serem pagas.
De tarde, caminho pelo alto do morro. O cheiro de churrasco, o barulho de música r**m nos radinhos, molecada jogando bola descalça. Sento no terraço, olho o asfalto lá embaixo, o Rio brilhando distante. Bato um papo com um dos meus “gerentes”, o Russo — ironia do destino, já que o cara tem nome de estrangeiro, mas nunca saiu da Rocinha. Ele fala sobre os bailes funk, sobre o quanto o povo tá gastando nas festas clandestinas, e eu começo a juntar as peças na cabeça.
— E se a gente abrisse um negócio de verdade, hein? — comento, quase pra mim mesmo. — Uma casa… dessas que ninguém esquece. Boate, bar, coisa fina. Mas aqui dentro, na favela.
Russo arqueia a sobrancelha, meio desacreditado.
— Aqui dentro, chefe? Vai dar certo, não?
Dou de ombros. — Quem manda sou eu, não sou? O povo quer diversão. Se for no meu território, o lucro fica em casa. E quem quiser festa… vai ter que pedir minha bênção.
A ideia fica martelando na minha mente o resto do dia. Imagino as luzes, o som, gente bonita circulando, bebidas caras misturadas com cachaça da melhor. O negócio não seria só festa. Seria vitrine. Seria armadilha. Seria trampolim pra lavar dinheiro e trazer a elite aqui — de noite, escondidos, porque ninguém resiste a um perigo com glamour.
Enquanto anoitece, subo de novo pro meu escritório. A Rocinha se transforma à noite. O perigo se esconde, mas o desejo de viver explode em cada esquina. Sento na minha cadeira, apoio os pés na mesa. Daqui, vejo as luzes acendendo nos barracos, o céu se tornando um manto de carvão salpicado de estrelas teimosas.
Pego o celular, rodo os contatos, mentalizando quem pode me ajudar a tirar a ideia do papel. Vou precisar de alguém diferente, alguém que entenda do jogo noturno, que saiba se misturar com qualquer tipo de cliente. Mas, por enquanto, a noite é só minha.
Me levanto, caminho até o terraço, acendo outro cigarro. A lua cheia parece mais próxima hoje — redonda, brilhante, dona da noite, assim como eu. Sorrio, meio cansado, meio orgulhoso. O trono da Rocinha nunca é confortável, mas é o único lugar onde minha alma não sente frio.
Ouço um barulho estranho vindo do beco de baixo. Dois tiros curtos, secos. Sinal de que alguém não pagou o que devia — ou que, quem sabe, um novo inimigo anda testando meus limites. Não me movo. Não agora. O poder não está em correr atrás de problema, mas em fazer o problema vir até mim.
Respiro fundo, sentindo o peso do morro sobre os ombros e o gosto amargo da ambição na boca. Amanhã, talvez, eu comece a transformar a minha ideia em realidade. Hoje, só observo, como o rei que precisa saber esperar antes de atacar. E, enquanto a madrugada avança, deixo que a sombra da boate cresça na minha cabeça — junto com a certeza de que, nesse lugar, diversão e morte dançam juntas, esperando só a minha ordem pra começar a festa.
O trono é meu. Pelo menos por mais uma noite.