Capítulo 1

1008 Words
Babilônia parecia respirar naquela noite. As luzes em tons de vermelho e roxo cortavam a penumbra como lâminas coloridas, refletindo nas paredes espelhadas, nos copos, nos olhos atentos de quem vivia à margem. A música vibrava tão forte que parecia subir pelas paredes, passar pelas pessoas e se misturar com o cheiro de álcool, perfume caro e pólvora velha. O bar estava lotado. Não que isso fosse novidade. O mundo do crime não descansava – e se tinha alguém que sabia disso melhor do que qualquer um, era Nerone. Ele observava tudo de longe, encostado em um dos pontos cegos da câmera de segurança do beco lateral, onde a porta reservada para os “especiais” ficava. Daquele ângulo, via parte da fila comum, os seguranças filtrando rostos, as expressões ansiosas, viciadas, arrogantes, nervosas. Via também aqueles que não enfrentavam fila: carros de vidro escuro, motoristas discretos, mulheres em saltos finos e homens vestidos demais para estarem apenas em um bar. A Babilônia era ponto de encontro. Válvula de escape. Território neutro que de neutro não tinha nada. E, naquela noite, era também palco. Quatro anos. Quatro anos desde que o caos tinha sido comprimido à força, empurrado para os cantos, reorganizado com sangue e sacrifício até atingir algo que se assemelhava a… paz. Ou, pelo menos, um acordo silencioso entre monstros. A Fênix estava mais forte do que nunca. Os herdeiros estavam treinando. Parcerias que pareciam impossíveis no passado tinham se consolidado. O submundo tinha aprendido a andar sem cambalear. E Nerone, mais do que ninguém, sabia que era justamente nesses momentos – de falsa calmaria – que a tempestade costumava se anunciar. Era a hora. Ele inspirou fundo, sentindo o ar pesado entrar pelos pulmões. O cheiro de lixo úmido misturado com fumaça de cigarro vinha do beco, misturando-se ao som abafado da batida vinda de dentro. Seus dedos deslizaram pela máscara que cobria todo o rosto, do nariz ao queixo, um modelo simples, escuro, sem símbolos. Não precisava de enfeites. O que assustava não era o acessório. Era o que ele representava. Colocou a máscara, ajeitou-a com um toque firme e conferiu o colete sob a jaqueta escura. As armas estavam no lugar – facas bem ajustadas nas laterais das coxas, pistola sob o braço, outra presa na parte de trás da calça, pequenos compartimentos com munição e outros itens que ele carregava mais por hábito do que por necessidade. Quando saiu da sombra, o corpo pareceu mudar com ele. A postura. O peso dos passos. O ar ao redor. Os dois seguranças na entrada reservada o notaram quase ao mesmo tempo. O primeiro abriu a boca, pronto pra mandar recuar, mas congelou no meio do movimento. O segundo arregalou os olhos, engolindo seco. A reação foi imediata. — Senhor… desculpa… a gente não viu… — o maior deles gaguejou, abrindo espaço tão rápido que quase tropeçou no próprio pé. — Não… não sabíamos que o senhor vinha hoje. O olhar deles deslizava pela máscara, pela roupa escura, pelas armas aparentes. Seytan. A figura era inconfundível. Aquele jeito de caminhar como se o mundo inteiro fosse dele e ele estivesse apenas de passagem. A sensação de que qualquer movimento errado poderia ser o último. Mas havia um detalhe. Aquele homem não era Seytan. Nerone não corrigiu o equívoco. Não era hora de explicações, aquele era o teste, saber se ele seria reconhecido. As máscaras existiam por um motivo – e o submundo tinha aprendido, desde cedo, que o símbolo às vezes valia mais do que a identidade. Ele apenas fez um aceno com a cabeça, passando pelos seguranças sem se dignar a encará-los por muito tempo. O suficiente para que eles sentissem o peso da presença dele e agradecessem, em silêncio, por ainda estarem vivos. Por dentro, a Babilônia era um organismo em plena atividade. Móveis de couro preto, mesas de vidro, luzes baixas, música grave. Garçons se esgueiravam entre as pessoas com bandejas equilibradas, mulheres dançavam em um espaço lateral elevado, alguns homens negociavam em cantos mais escuros, outros observavam, esperando o momento certo de se aproximar de alguém importante. Quando ele entrou, algo curioso aconteceu. Ninguém sabia ao certo quem tinha sido o primeiro a notá-lo. Talvez um garçom mais atento, talvez um informante infiltrado, talvez um dos clientes que vivia à caça de qualquer mudança no ambiente. Mas a energia do lugar mudou. Conversas diminuíram de volume. Alguns copos foram colocados na mesa com cuidado. Pessoas pararam no meio do caminho, como se tivessem batido em um muro invisível. Não foi um pânico espalhafatoso. Foi respeito. Foi medo silencioso. Os olhares acompanharam seus movimentos. Alguns se abaixavam, evitando contato visual direto. Outros seguiam o trajeto dele com fascínio e nervosismo, como quem observa um incêndio de longe. Ele passou pelo salão principal, ignorando propositalmente as figuras que tentavam se aproximar, testar uma saudação, medir o território. O costume de receber atenção como se fosse o centro do inferno não o impressionava mais. Aquele tipo de poder, o brilho que vinha do temor dos outros, já não o inebriava. Não como antes. Ele tinha aprendido a ficar acima daquilo. Ou, pelo menos, mais distante. Contornou o bar, passou pela porta lateral guardada por mais dois seguranças – que se aprumaram instantaneamente ao vê-lo – e entrou no corredor que levava às salas privadas, aos escritórios, aos lugares onde o submundo realmente acontecia. O bar era fachada. Era cenário. O verdadeiro jogo ficava ali. Cada passo soava pesado no piso de madeira. As paredes fechadas abafavam a música, deixando apenas um eco distante, como um lembrete de que, lá fora, o mundo continuava distraído. Quando chegou diante da porta do escritório principal, Nerone parou por um segundo. Era curioso como aquele lugar parecia o mesmo, mas não era. Memorizar detalhes era uma das coisas que ele fazia melhor – e ele lembrava. A posição exata da maçaneta, o brilho discreto do metal, o pequeno arranhão perto do rodapé, fruto de uma briga antiga. A madeira maciça que escondia segredos demais. Ele não bateu. Entrou.
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