Capítulo 05

1759 Words
Debora narrando Eu não me reconhecia mais como mulher solteira. Aliás… agora, como mãe solteira. E isso tinha um peso diferente, muito mais denso do que eu imaginava. Era como se eu estivesse aprendendo a andar de novo com sapatos que não me serviam mais, tentando me encaixar em um corpo e uma identidade que eu não sabia mais onde tinham se perdido. Depois de tantos anos vivendo uma realidade completamente diferente da do morro, uma vida de condomínio, roupas sociais, reuniões, festas de família com gente que achava que favela era só um lugar que passava na TV, voltar pro Jacarezinho me fazia sentir como se eu tivesse desaprendido a ser eu. E eu amava isso aqui. Amo. Amo cada viela, cada som, cada cheiro, cada caos. Mas me sentia como uma estranha na própria casa. Foi nesse clima que eu comecei a revirar minhas coisas. Sacolas, bolsas, mala… tudo jogado de qualquer jeito. Minhas roupas estavam divididas entre malas apertadas e sacos de lixo porque na pressa de sair de casa, (daquela casa, diga-se de passagem), não deu pra ter o luxo de organizar nada. E, pra piorar, eu não achava nada. Nem uma roupa que me fizesse sentir minimamente confortável. Um vestido leve? Um macacão discreto? Uma saia que não mostrasse metade da b***a e, ao mesmo tempo, não me deixasse parecendo a chefe do RH da firma? Nada. Nada. Foi então que Mariana gritou do outro lado do quarto, como se tivesse descoberto petróleo. — ACHEI! Achei, achei, achei! Eu tomei até um susto, me virando pra ela com cara de assustada e completamente perdida. — Achou o quê, louca?! — A roupa, mulher! OLHA ISSO! Vai ficar maravilhosa! Ela levanta uma sainha que eu juro que nem lembrava mais que existia. Curtíssima. Daquelas que com um vento mais forte a gente dá um spoiler da calcinha. E junto com ela, um corset vermelho de amarrar nas costas, sensual até dizer chega. Eu arregalei os olhos. — Que isso, Mariana? De onde tu tirou isso?! — Do fundo do baú da gostosona aqui, né? TU VAI VESTIR ISSO! Eu segurei o corset nas mãos e a lembrança veio como um soco no estômago. Eu tinha comprado aquilo pra um jantar com o Renato. Coloquei com uma calça branca de linho e um salto dourado. Me achei linda, poderosa. Mas ele… detonou. Disse que eu estava vulgar, me chamou de p*****a pra baixo, falou que não ia sair comigo com “a mulher dele parecendo uma qualquer”. Doeu. Na hora eu troquei de roupa, engoli o choro e fomos. Mas nunca mais vesti o corset. Na verdade, nunca mais me vi com aquela força de novo. Eu olhava pra roupa na mão como se fosse uma peça de outra vida. — Ai, amiga… não. Não vou com isso não. Tá doida. Vou com esse short aqui, ó. De alfaiataria. E essa blusinha social aqui. Tá ótimo. — TU NÃO VAI COM ESSA ROUPA NEM FODENDO. Cadê teus saltos? Ela se agacha na mala, começa a fuçar e puxa um salto dourado de tiras finas, poderoso, que eu já quase tinha esquecido. — Pronto. Botei o look. Saia curta, corset vermelho e salto dourado. Pronto. Vai ter que abrir rodinha no pagode pra passar. TU VAI FICAR UMA DELÍCIA. Não vai ter quem aguente. — Tu tá pirando, Mariana. Eu não consigo me ver nessa roupa. Eu não sou mais essa mulher, pô. — eu falo com ela que revira os olhos com tédio — Vai tomar banho. Lava essa xereca, passa um creminho de morango, faz uma esfoliação nessa alma e vambora. Vai que alguém resolve atuar aí hoje. — ela fala toda toda e começou a rir. E eu ri junto, gargalhei de verdade pela primeira vez em dias. — Tá maluca, minha filha? Ninguém vai atuar aqui tão cedo. Já te falei que eu tô em celibato. — Tu tá em celibato até ver uma piroca grossa diferente na tua frente. Aí tu vai ver o que é celibato. Eu gargalhei mais ainda. Tive até que me sentar na cama, de tanto que me dobrava de rir com essa mulher surtada. — Garota, sai daqui. Vai pra tua casa pegar tua roupa e volta logo pra gente ir pro pagode. Pelo amor de Deus. Ela saiu ainda rindo alto, toda debochada, falando que se eu não me arrumasse, ela ia invadir o pagode com o corset por cima da roupa dela, só pra me obrigar a usar. E eu fiquei ali… parada. Com a roupa na mão. Ainda não conseguindo me ver naquela imagem. Naquele personagem que um dia fui. Parecia uma loucura, uma grande loucura. Mas ao mesmo tempo… me deu vontade. Talvez eu não precise voltar a ser quem eu era, mas talvez seja a hora de descobrir quem eu posso ser agora. E quem sabe essa saia curta e esse corset vermelho sejam só o começo. Talvez a Débora de salto, com a alma ferida e o coração em frangalhos, ainda saiba dançar. E talvez… só talvez… ela ainda saiba incendiar uma favela inteira só com a presença. Eu fui tomar outro banho. Não porque eu estivesse suada, ou porque precisasse. Era mais por ritual mesmo. Por mim. Pra refrescar o corpo e, principalmente, tentar organizar tudo o que tava fervendo por dentro. Eu já tinha tomado banho mais cedo, mas naquele momento, eu precisava de outro tipo de banho. Um banho de recomeço. De renascimento. Não lavei o cabelo — ele já estava limpo, cheiroso e macio. Só bati uma escova com o secador, deixei ele liso com as pontas levemente onduladas, do jeitinho que eu gosto. E, modéstia à parte, meu cabelo tava um espetáculo. Gigante, brilhoso, vivo. Era como se ele refletisse uma parte de mim que eu ainda não reconhecia, mas que tava ali, pulsando. Enquanto ainda tava enrolada na toalha, fui ajeitando ele na frente do espelho, com calma, com carinho. Como há muito tempo eu não fazia comigo mesma. Depois disso, comecei a maquiagem. E não era qualquer maquiagem. Era A maquiagem. Bem feita, bem marcada, olho poderoso, pele impecável. Eu caprichei como se fosse pra um evento de gala. Na real, era. Era o evento mais importante da minha vida: o reencontro comigo mesma. Usei os melhores produtos, os que eu guardava pra ocasiões especiais. Apliquei meus cordões finos de ouro, delicados, que sempre fizeram parte de mim. Meus anéis, minhas pulseiras. Tudo muito meu. Tudo muito eu. E no dedo da aliança… nada. Absolutamente nada. Aquele dedo agora era símbolo de liberdade. De independência. De resgate. E, principalmente, de uma promessa: nunca mais. Nunca mais eu aceito viver sob o teto de um homem. Nunca mais me coloco no lugar de submissão. Nunca mais eu me anulo pra caber nos moldes de ninguém. A única aliança que eu vou honrar daqui pra frente é com os meus filhos. E com a minha mãe. Hoje eu posso esquecer um pouco de tudo. Meu nome, minha dor, meu luto. Hoje é sábado. E esse final de semana é meu. Só meu. Porque segunda-feira, quando eu entrar naquela concessionária e encarar aquele homem que um dia eu amei com todo meu coração, vai começar uma guerra. E eu preciso estar forte. Preciso estar inteira. Preciso estar pronta pra acabar com ele. Terminei a maquiagem, passei meus cremes com aquele cheiro envolvente, e fui pra cama vestir a roupa. Quando coloquei a saia, já me bateu um incômodo. Era muito curta. Daquelas que se eu me abaixasse, entregava a alma. Vesti com uma calcinha branca bem pequena por baixo. E logo depois o corset… ah, o corset vermelho. Quando amarrei ele nas costas e senti os p****s subirem quase até o queixo, eu levei um susto. Era como se eu estivesse vestindo outra mulher. Uma mulher que eu tinha esquecido. Uma mulher que eu achava que nem existia mais. Olhei pro espelho, com as mãos no quadril, tentando reconhecer aquela imagem. E, por mais que a minha mente tentasse boicotar aquela visão, meu corpo falava por si. Eu estava… maravilhosa. A verdade é que, ali naquela frente do espelho, pela primeira vez em muito tempo, eu exalava poder. Eu não era só a mãe dos meninos. Nem a empresária fodida, dona de concessionárias. Nem a mulher traída. Eu era simplesmente uma mulher. Desejável. Forte. Linda. E completamente no controle. Quando calcei o salto dourado, aquele salto que o Renato dizia ser “exagerado demais pra uma mulher casada”, foi como a última peça da armadura. Eu estava pronta. E não por homem nenhum. Não pra provocar olhares. Eu queria chegar daquele jeito por mim. Pra mostrar pra mim mesma que ainda existia vida, desejo, liberdade — e que eu podia ser tudo isso sem ter que pedir licença pra ninguém. — c*****o! Para tudo! Ela vai parar o Jacarezinho! — Mariana entrou no quarto já gritando, como uma animadora de torcida. Já veio direto no meu iluminador, pegou o pincel e passou nos meus p****s, como se estivesse finalizando uma obra de arte. — Só faltava um glow aqui, p***a! Pronto! Agora ninguém segura. Eu gargalhei alto. Aquela mulher era uma figura. Mas ela tava certa. Eu olhei de novo no espelho e me senti… perigosa. — Tu tá pronta, ou vai voltar atrás de novo com aquele short de freira? — ela riu debochada. — Agora eu tô pronta, amiga. Só falta o perfume. Peguei meu perfume caríssimo. Aquele mesmo que o Renato odiava. Dizia que era forte demais, chamativo demais, sensual demais. Que mulher casada não precisava usar perfume daquele tipo. Pois hoje, meu filho, eu literalmente tomei banho nele. E cada gota era um tapa na cara da opressão que eu vivi. — Bora? — Mariana perguntou empolgada, já com a bolsinha no ombro, desfilando com um conjuntinho marrom decotado, sainha curta, salto preto, cabelo escovado e gloss que dava pra ver da laje do vizinho. — Pera, vamos tirar uma foto. — falei pegando o celular. Ficamos lado a lado, nos olhando no visor, e por um segundo eu me emocionei. Duas mulheres. Duas mães. Duas sobreviventes. Duas gostosas prontas pra viver. A gente tirou a foto, e eu sabia. Hoje não era só um sábado qualquer. Não era só um pagode qualquer num bar da favela. Não. Hoje era o meu grande evento. O meu retorno. Ou melhor… o meu renascimento. E o Jacarezinho que se prepare. Porque a Débora voltou. E ela não tá pra brincadeira. Continua…
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