Episódio 2

1416 Words
O asfalto ainda guardava o calor do dia, um vapor fantasmagórico que se enroscava nos meus tornozelos. Ali, plantada como uma árvore murcha nos arredores da mansão Montenegro, sentia cada batida do meu coração como uma contagem regressiva para a humilhação. Olhei para o relógio. De novo. O ponteiro pequeno zombava de mim do mostrador: meia hora. Trinta minutos depois da hora em que Adrián disse: Te encontro lá, não entre sozinha. Um suspiro escapou-me, carregado da mesma névoa quente que respirava. Os meus passos começaram a traçar um caminho curto e desesperado sobre a cascalheira, de um lado para o outro, como uma fera enjaulada. O vestido novo, que eu tinha escolhido com a esperança to*la de que ele gostasse, agora apertava a minha cintura como uma repreensão. Não estava disposta a cruzar aquele portão sozinha. Não de novo. Não a enfrentar o olhar gélido de Dom Ernesto e as suas perguntas cortantes sobre onde estava o filho dele, como se a ausência dele fosse culpa minha, mais um fracasso na minha longa lista de esposa deficiente. Voltei o olhar para a entrada. Nada. Só a escuridão vazia entre os altos muros. Um nó de frustração e dor fechou-se na minha garganta. — Ai, não, não. Murmurei para mim mesma, apertando com mais força a caixinha da sobremesa que eu carregava. — De novo com isso. Já são quantos? Cinco? Seis desfeitas nas últimas semanas? Não entendia. Minha mente, exausta, buscava uma razão, uma f***a por onde o erro tivesse se infiltrado. Será que fiz algo de errado? A pergunta, envenenada e familiar, serpenteou no meu interior. Só há algumas semanas atrás, na nossa viagem improvisada para a costa, as coisas tinham sido... diferentes. Ele tinha sido meu. Nós nos amávamos. Risos abafados na cama, a suas mãos clamando por minha pele com verdadeiro desejo. Sussurros que não eram promessas, mas que pareciam próximos. Eu havia provado, mesmo que fosse um pequeno e fugaz pedaço, o que era ser amada por ele. Eu tinha permitido que aquela frágil esperança criasse raízes no meu peito. Mas nestas últimas semanas... o se*xo tinha-se tornado um milagre esquivo. Só acontecia quando eu o provocava, quando me despojava da minha dignidade e me oferecia com um sorriso que me sabia a mentira. Talvez algo o tenha desagradado. Algo que fiz, que disse. Rememorei os últimos acontecimentos, cada um dos meus atos. Você tinha cozinhado o seu prato favorito? Sim. Você tinha mantido a casa impecável para quando ele chegasse? Sim. Eu tinha sido discreta, compreensiva, não tinha exigido tempo nem emoções? Também. Eu havia cumprido o meu dever de esposa à risca, como um soldado numa guerra silenciosa, também não tinha sido uma esposa importuna ou atrevida nas noites em que ele não chegou esta semana. Talvez ele só esteja ocupado. Ele tem mais trabalho na empresa, eu sei disso. Sacudi a cabeça com força, como se pudesse desalojar os pensamentos neg*ros. Sim, com certeza era isso. Situações que nem ele podia controlar. Tinha que ser. Deu um último suspiro, profundo e trêmulo. Arrumou o vestido com mãos que m*al sentia, um gesto automático e inútil. Ajustei a caixa de sobremesa entre as mãos, uma pobre homenagem a uma família que nunca me quis. E, com o peso de uma laje sobre os ombros, avancei. De novo sozinha. Enfrentar os lobos com um sorriso de desculpa por uma falta que não era minha. As luzes da mansão se aproximavam, grandes e hostis. Sabia, com uma certeza que me gelava o sangue, que Adrián não viria. E que esta noite, como tantas outras, eu teria que fingir que não estava me despedaçando por dentro. ...... POV Valeria As portas duplas da sala de jantar abriram-se diante de mim com um sussurro que me pareceu uma zombaria. O mordomo, com uma expressão tão impassível quanto as colunas de mármore do vestíbulo, guiou-me até lá como quem conduz um animal ao matadouro. — Já estão todos esperando na mesa, senhora. Foram suas únicas palavras antes de desaparecer, deixando-me no limiar com o peso da sobremesa nas mãos e o vazio de Adrián ao meu lado. Mirna, a cozinheira, me tirou a sobremesa com um sorriso compassivo. — Você vai distribuir isso no final, por favor. Ela me disse. Um pequeno martírio a mais para a noite. Ser aquela que serve, aquela que não pertence. Ao cruzar o limiar, todos os olhares fixaram-se em mim. Um conjunto de olhos que eram dardos finamente afiados. Don Ernesto à frente, erguido na cabeceira, um rei no seu trono de carvalho entalhado. À sua direita, minha cunhada Elisa, a mais velha. O seu olhar deslizou sobre mim sem interesse, como quem observa mais um móvel. Por isso, talvez, ela fosse a única por quem eu pudesse sentir um vislumbre de gratidão. A sua indiferença era um m*al menor; não doía como o desprezo ativo. E ali, à esquerda do pai, estava Diana. A víbora. O seu sorriso era afiado como uma faca. — Pai. Disse, sem desviar os seus olhos frios de mim. — Era realmente necessário que ela viesse? O ar ficou mais denso. Ignorei o comentário como ignoro a picada de um mosquito quando não tenho outra opção, com um incômodo silencioso que me percorre por dentro. Forcei um sorriso que me tensionou os músculos da face. — Boa noite a todos. Saudei, fazendo um gesto geral que incluiu os maridos das minhas cunhadas, dois homens que pareciam mais sombras do que pessoas, cúmplices silenciosos deste teatro cr*uel. Antes que alguém pudesse me jogar algo, apressei-me a soltar a mentira que havia ensaiado no carro, caso o Adrián não viesse. — Adrián lhes envia as suas desculpas. Um imprevisto de última hora na empresa. Prometo que da próxima vez trarei ele sem falta. A palavra "prometer" tinha um gosto de traição. O que mais eu poderia fazer? O olhar de Dom Ernesto pousou sobre mim, gélido e pesado. — É sua responsabilidade, Valéria, é garantir que meu filho cumpra as suas obrigações familiares. Não parece que você está sendo muito eficaz nisso. A voz dele era seca, um golpe contra a minha dignidade. Encolhi-me na minha cadeira. Literalmente. Senti os meus ombros curvando-se, as minhas costas buscando se fazer menores. O seu olhar era o de Adrián num espelho escuro: a mesma severidade, mas com o desgaste dos anos e uma dureza ainda mais impenetrável. Era como se toda a decepção que ele sentia pelo filho estivesse sendo descarregada em mim. O jantar transcorreu entre pratos de porcelana e conversas alheias. Falavam de investimentos, de viagens para lugares que não conhecerei, de pessoas que não conheço. Era uma parede de sons que me excluía deliberadamente. Eu era um fantasma na sua mesa, uma lembrança muda de um casamento que para eles era um erro. Quando chegou a hora da sobremesa, distribuí-a com mãos que tremiam ligeiramente. Coloquei uma porção na frente do seu Ernesto. Ele nem olhou para o prato. Com um gesto deliberado, empurrou-o ligeiramente para o centro da mesa, um ato de desdém tão calculado que me queimou a pele. Não provaria nada. A raiva dele com o Adrián era descontada em mim. Foi então, em meio a esse isolamento glacial, que a voz do meu outro cunhado, Ruben, o marido de Diana, se ergueu, dirigindo-se a mim. — E você, Valéria, ainda continua com as suas aulas de pintura? Pisquei, surpresa. Era a primeira vez que alguém desta família, além das facadas de Diana, me dirigia a palavra com um interesse genuíno. Embora Ruben nunca tivesse me caído totalmente bem — ele sempre tinha um sorriso fácil demais —, naquele momento a voz dele foi uma tábua de salvação. — Sim, sim, eu as sigo. Respondi, e notei como o meu próprio tom soava mais vivo. — Estou tentando com aquarelas agora. A conversa fluiu, amena, trivial, mas era um ponto de equilíbrio. Enquanto falávamos de pincéis e cores, eu podia sentir o olhar de Diana cravando-se na minha nuca, e o de Dom Ernesto desaprovando até mesmo este pequeno respiro. Mas por alguns minutos, enquanto falava com um homem que não era da minha família, mas que pelo menos me tratava como uma pessoa, pude fingir que não estava me afogando. Que sobreviver aos Montenegro era uma questão de prender a respiração e encontrar oxigênio nos lugares mais inesperados, até mesmo numa conversa amigável com o marido da víbora. Eram migalhas de humanidade, mas naquele deserto, sabiam a banquete.
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