Guardo o celular debaixo do travesseiro. Viro pro outro lado. Tento dormir. O colchão range baixinho, a respiração dos meninos é um vai e vem de mar calmo. A casa inteira respira junto, lenta. O vento entra pela janela em lufadas que fazem a cortina conversar com a parede.
Então o celular vibra.
Uma vibração curta, quase um arrepio sob a minha orelha. Tiro o aparelho, vejo a tela acesa: número desconhecido. O mesmo. Por um segundo, penso em ignorar.
Atendo.
— Alô? — minha voz sai num sussurro, para não acordar ninguém.
Do outro lado, silêncio. Um silêncio cheio, não desses vazios. Ouço uma respiração contida. Um barulho leve, distante, como metal raspando em metal, ou talvez só interferência. A luz azul do visor pinta o quarto com um brilho frio.
— Tá aí? — arrisco.
— Tô. — A voz dele vem grave, baixa, sem pressa. Tem um sotaque da capital, algo liso que escorre entre as palavras, como se cada frase fosse medida antes de nascer. — Tu me atendeu.
— Você ligou. — respondo. Seguro o aparelho com as duas mãos, como se fosse pesado.
— Quis ouvir tua voz.
O coração dá uma batida mais forte, depois volta pro ritmo. Sento na beira da cama, viro o corpo devagar pra que a madeira não estale. Milena mexe do outro lado, mas continua dormindo.
— Por quê? — pergunto.
— Texto mente fácil. Voz entrega coisa que a gente nem sabe que tem. — Ele fala baixo, cada sílaba no lugar. — Tu some e depois aparece... eu quis ver como é teu sumiço.
— Eu tava ocupada. — minto pela metade. Eu tava vivendo. É diferente.
— E agora?
Olho a porta, olho a janela, olho as sombras do quarto. Minha mãe ressona leve na sala, o rádio morreu faz tempo. A noite inteira cabe no meu "agora".
— Agora eu tô aqui.
— No interior. — Não é uma pergunta.
— No interior. — confirmo. — E você?
Silêncio. Ouço aquele ruído distante de novo, como passos abafados muito longe, ou só meu ouvido inventando coisas pra preencher a ausência dele.
— Tô longe. — ele diz, por fim. — Mas perto o suficiente.
— Perto como? — sussurro, e percebo que estou sorrindo sem querer.
— Perto na linha. — Responde. — Cê me escuta, não escuta?
— Escuto.
— Então pronto.
Troco de mão, o celular já esquenta. O ventilador gira lento, cortando o ar em fatias sonolentas. Aliso a fronha sem perceber, como se fosse um talismã.
— Te chamo de quê? — ele pergunta. — Não curti falar contigo sem nome.
Penso se invento. Se digo "Ana", "Lu", alguma coisa curta que me proteja. Mas tem algo no jeito dele que puxa a verdade da gente, como gravidade.
— Daniela. — falo, por fim.
Ele repete, mais baixo, provando a palavra: — Daniela.
O jeito que ele diz meu nome tem peso e espaço. Fica uns segundos no ar antes de se ajeitar dentro de mim. Aperto a borda do colchão pra não dizer nada bobo.
Olho pro teto. As sombras do ventilador dançam devagar, como folhas enormes flutuando. Sinto o cheiro leve de pão que ainda teima na casa, mesmo horas depois.
— Tu fala manso — ele comenta, de repente. — Mas parece que tem coisa guardada aí.
— Todo mundo tem. — respondo, mais baixo ainda. — E você... fala pouco, mas pesa.
— Eu falo o necessário.
— Necessário pra quê?
— Pra tu ficar.
Por segundos, não sei se a risada que sai de mim sou eu ou alguém que imita minha voz. É leve, quase muda. Meus ombros relaxam, e eu me levanto da cama devagar, piso com cuidado, pego o chinelo e caminho até a varanda. A noite me toma inteira. O céu tá coalhado de estrela, e o cheiro de terra molhada insiste, mesmo sem chuva.
A gente fica um tempo só ouvindo a noite. Às vezes um cachorro late longe, às vezes é meu pai tossindo lá no fundo do quintal, como sempre antes de deitar. A madeira da varanda estala sob meu pé. Eu conto três, quatro respirações dele. O tempo, agora, anda do jeito que a gente permite.
— Me descreve teu céu. — ele pede.
Eu olho pra cima como se fosse a primeira vez.
— É escuro de verdade. Não tem poste, não tem carro, não tem prédio. As estrelas são furos na lona do mundo. Tem uma que pisca mais forte aqui em cima da caixa d'água. A lua tá minguando, meio torta. Parece que vai escorregar.
— Tu fala bonito.
— Eu só tô dizendo o que tô vendo.
— Por isso mesmo.
Passo a mão no braço, sinto a pele arrepiada. Não é frio. Às vezes o corpo acende por dentro e a pele não entende.
— E teu céu? — devolvo. — Como é?
Uma pausa. Mais longa. O som distante volta, estático mastigando a borda da ligação. Ele inspira, segura, solta.
— Meu céu... agora não tem estrela. — diz, baixo. — É teto. Mas eu decoro as rachaduras como se fossem constelação.
Eu travo, por dentro. O que isso quer dizer? Engulo a pergunta. Fico com o gosto dela na língua, sem morder.
— Dá pra viver só com teto? — pergunto, sem querer perguntar.
— Dá. — Ele responde rápido, como quem sabe. — Mas é r**m. Por isso eu ligo.
Balanço a cabeça, e ele não vê. Mas eu balanço.
Ele fica em silêncio, e eu escuto o silêncio dele. É um silêncio de gente que já carregou peso. Diferente do meu, que é de quem carrega rotina.
— Posso te ligar outro dia? — ele pergunta, sem pedir demais.
Olho pro quintal, pro varal apagado, pros chinelos dos meninos virados de cabeça pra baixo. Penso no feijão que deixei de molho, na roupa que recolhi, no pão que sobrou metade. Penso no que essa pergunta realmente pergunta.
— Pode. — digo. — Se tiver sinal e eu tiver tempo, eu atendo.
— Tu atende.
— Eu tento.
— Já é.
O "já é" dele encosta em mim com uma familiaridade que não conheço, mas não estranha. Fico com vontade de perguntar quantos anos ele tem, o que ele faz, de onde conhece esse jeito de falar que parece rua grande, mar longe, morro, apito de ônibus, chinelo batendo em laje quente.
— Daniela. — ele chama meu nome mais uma vez, como se testasse o peso. — Dorme.
— Você também.
— Eu durmo quando der.
A ligação não acaba. Não ainda. Ele não despede. Eu também não. A gente fica respirando no ouvido do outro como dois gatos desconfiados dividindo o mesmo muro. Até que, aos poucos, minha pálpebra pesa, o vento esfria um fio, e uma nuvem passa escondendo um pedaço de estrela.
— Boa noite. — eu digo, antes que a coragem falhe.
— Boa noite, Daniela. — ele repete, e desliga.
A tela escurece, e com ela a varanda volta a ser só varanda. Guardo o celular no bolso do short, fico mais um pouco, ouvindo o barulho leve da casa ajeitando as costuras pra madrugada. O chão sob meu pé descalço é áspero e conhecido. O cheiro de terra é antigo.
Volto pro quarto na ponta dos pés. Apoio o celular na mesinha, com a tela virada pra baixo. Fecho os olhos. O corpo quer sono. A cabeça ainda não.
Respiro fundo. O ventilador desenha círculos no teto. A cortina dança miúdo. A casa dorme. Eu quase.
E no quase, percebo: eu ainda escuto a voz dele no meu ouvido, rouca e baixa, como se tivesse ficado por perto. Não penso no que isso significa. Só deixo ficar.