Volto do banho de sol com a pele suada e o pensamento na linha. O pátio hoje veio com olhar atravessado de um cara que ainda não entendeu as regras novas, cochicho de canto, a bola parando bem onde não devia. Eu corto tudo só no olho. Quem conhece meu silêncio sabe que é ordem. Subo as escadas devagar, sentindo o ferro tremer no osso da perna. Quarenta anos no lombo, seis e três fechado. O corpo sabe a rotina, mas a cabeça nunca repete a mesma rota duas vezes.
A cela me recebe com cheiro de desinfetante aguado e cimento quente. O parceiro de cela finge cochilar, braço no rosto. A gente respeita os fingimentos que protegem a noite dos dois. Abro o "cofre" no buraco da parede, atrás do tijolo solto, e confiro meu mundo em miniatura: um terço que não é de rezar, é de lembrar, um maço capado, o telefone, embrulhado no saco preto de lixo, seco.
A tela acende e já vem ela, como mosca que cheira açúcar e ferida. Jussara. Minha "mulher". Entre aspas, porque o que é de verdade não precisa de cerca nem legenda. Chamando em insistência de aplicativo barato, ligação atrás de ligação. Atendo pra matar o assunto antes dele crescer.
— Fala. — minha voz sai baixa, sem pressa.
— Amor, graças a Deus atendeu! — ela vem num jorro só, acelerada. — Deu r**m aqui. Preciso de dinheiro. Hoje. Agora se der. Minha mãe tá r**m, hospital lotado, pediram exame particular, essas parada... tu sabe como é. Me ajuda, vai.
Encosto as costas no cimento. O frio da parede sobe pro ombro e baixa o sangue. Não pergunto por quê ainda. Ouço o som atrás dela: música estourada num radinho, aquele batidão de fim de linha que eu conheço a vinheta, risada de homem, garrafa batendo no balcão, um motor de moto acelerando, cortando giro. Lugar aberto. Bar. Ou boca. Não é hospital.
— Qual o nome do exame? — pergunto, macio.
— Que? Ah... é... hemograma completo, eu acho. — a voz falha um passo, tropeça — E um outro lá... tom... tomogra... eu não sei falar essa p***a, amor. O médico explicou correndo. Tô nervosa. Tu sabe que eu fico nervosa.
— Nome do médico.
— Doutor... Rafael. — solta, e quem mente comigo sempre joga nome fácil.
— Qual hospital? — Ela demora um segundo que vale por dez.
— Amor, isso... é particular, cê tá ligado... é uma clínica, aqui na... na principal. — Mentira com rua genérica.
Passo o dedo no r***o do colchão, sentindo o tecido se desfazer entre as polpas. Não é raiva. É método.
— Tu quer quanto.
— O que der, vida. Se tu mandar dois, já resolve. — "Dois" é dois mil, na boca de quem acha que dinheiro vem assinado com vulgo.
Ouço de novo o fundo da chamada. A música muda pra outra faixa, o MC grita o nome de um conjunto que não é do meu. A risada de homem aproxima do microfone, alguém pergunta "ele atendeu?". Jussara cobre o bocal muito m*l, pensa que tampa voz vira silêncio.
— Tô contigo — digo, e a calma no meu tom não é perdão, é cerca. — O PIX de sempre?
— Se tu puder... eu te mando a chave nova. — Mais um degrau que desce pro buraco. Chave nova, CPF novo, laranja novo.
— Não. — corto. — Vai pegar em mão.
Silêncio do outro lado. Ouço ela puxando o ar, ouvindo instrução como quem não gosta de regra.
— Em mão aonde? — Jussara devolve, fazendo de dó um pedido.
— Padaria da praça, seis e meia. Tu vai de casaco listrado daquela vez que eu te dei, cabelo preso. Fala com Pardal. Ele te dá o envelope. Tu conta ali mesmo e vaza. Sem resenha.
— Amor, mas eu... eu tô longe da praça agora. — tenta desviar a rua.
— Melhor. Dá tempo de chegar.
— E não rola mandar pra conta? Eu tô sem Uber, cari… — ela morde a palavra, para.
— Jussara. — chamo o nome, firme. — Onde tu tá? — Ela fabrica uma rua que não existe. Eu deixo acabar.
— Tá com quem?
— Tô com minha prima! — responde ligeiro demais. — Ela que me trouxe pra clínica.
— Nome da prima.
— Juliana.
— A que mora aonde?
— Rocha. — ela entrega. Eu queria que ela não entregasse. Mas entregou.
O silêncio que dou dura o necessário pra ela sentir que caiu no mapa errado.
— Jussara, escuta. — falo, e agora minha voz tem trilho. — Ou tu pega em mão, do jeito que eu mandei, ou não pega nada. Chave nova comigo não existe. Quem me pede atalho, anda com pressa que não é minha.
— Amor, cê tá me dizendo que não confia em mim? — o choro ensaia, a voz treme onde ela acha que eu amoleço.
— Tô dizendo que eu só confio nos meus procedimentos. — respondo. — E procedimento é o que mantém todo mundo vivo, inclusive tu.
Jussara volta mais doce que garapa azeda.
— Tá. Eu vou na padaria. Seis e meia. — tenta salvar a ponte. — Já até separei. Amor... eu te amo, tá? Tu sabe.
— Sei. — digo, seco. Amor, pra mim, é lealdade com prova. — Desliga e anda.
— Manda mais de dois, se der? A clínica é cara...
— Tu confere com Pardal. — E encerro, sem boa-noite.
Fico olhando a tela escura por alguns segundos. O ferro da cama arrepia minha pele no contato. Guardo o telefone no saco, o saco no buraco, o tijolo no lugar. Olho pro teto. As rachaduras não mudaram de lugar, mas parecem outras. Magrelo mexe, resmunga um sonho. O corredor assobia um vento feio. Eu sento na beirada, cotovelo no joelho, e deixo a cabeça desenhar o resto sozinha.
Pego o outro aparelho o de dentro, da firma. Dois toques e o Pardal atende sem respirar alto.
— Fala.
— Seis e meia, padaria da praça. Chega dez antes. — digo, e passo a descrição de Nayara de cima a baixo. — Envelope com mil e quinhentos. Só mil e quinhentos. Fala pouco. Observa muito. Vê com quem ela chega, com quem ela sai, placa de moto, quem olha pra quem.
— Já é. — Pardal responde. — Se tiver os cara do Rocha?
— Tu volta respirando. O resto eu cuido.
— Firme.
Desligo. O ferro da grade chia longe. Lá fora, o mundo continua do jeito que eu deixar. Aqui dentro, eu amarro a linha no mesmo nó de sempre: informação antes de emoção. Eu não pego atalho, eu não gasto munição sem alvo. Eu não esqueço rosto de quem me deve, nem favor, nem tiro.
Fecho os olhos por um instante. O pátio passa na cabeça como filme budgeado: a bola, o olhar torto, a sombra querendo medir tamanho. Eu não sou régua que devolve medida. Eu sou a mão que segura a régua. Ponto.
No escuro, a voz da menina da roça passa como vento de janela. Não me distrai. Me afina. Tem gente que acalma a hora sem tirar o olho do problema. Guardo esse som num bolso que não pesa. O resto, trabalho.
— FL, revista! — o plantão berra no corredor.
Abro os olhos, fico em pé. Olho pro tijolo, vejo paz. Minhas coisas estão onde precisam estar. Magrelo já tá sentado, mão pra trás, cabeça baixa. Eu sorrio com metade da boca: quem tem procedimento não teme surpresa.
A tranca canta. A porta abre. Eu abro mais nada.