5. Daniela

892 Words
O fim de tarde chega com o peso bom de um dia cheio. A luz já não bate direto na varanda, e o céu agora mistura lilás, azul e aquele dourado que só existe por alguns minutos antes de escurecer de vez. As cigarras ainda cantam alto, como se avisassem que é hora de recolher. O cheiro do pão no forno invade a casa, se mistura ao do coisa limpa e ao perfume leve das flores que minha mãe plantou na beirada do jardim. Esse pedaço do dia é o que mais gosto. A hora em que a gente não precisa correr, nem se preocupar com o que ainda falta fazer. É só esperar. A noite vem sozinha. Os meninos já estão mais calmos. Dudu se joga no sofá, Caio toma banho resmungando que a água tá fria, e Milena me chama pra trançar o cabelo dela, como toda noite. Me sento na beirada da cama e ela encosta entre as minhas pernas, cabelo macio e cheiroso de shampoo infantil. As mãos se movem sozinhas, no ritmo que aprendi desde que minha mãe passou a rotina pra mim. Trança, aperta, amarra com o elástico azul desbotado. — Amanhã você pode colocar aquela fita vermelha?— ela pergunta com a voz sonolenta. — Posso sim, princesa. Vai querer lacinho de lado ou no topo? — De lado. Igual à moça da novela. Rio sozinha. Ela nem assiste novela, só vê os pedaços que minha mãe deixa na TV pequena da cozinha. Mas tudo vira referência pra ela. Tudo é grande, colorido, cheio de possibilidades. Depois do banho, dos cabelos penteados, do pão quente com margarina, da caneca de leite morno e da oração murmurada ao pé da cama, os três pequenos se encolhem sob os cobertores. Apago a luz e fico ali por alguns minutos, ouvindo as respirações ficarem mais pesadas. A infância deles é o que segura tudo de pé nessa casa. Mesmo quando as contas apertam, mesmo quando minha mãe briga com meu pai por causa do trator quebrado ou da conta de luz atrasada, são eles que seguram a paz. Fecho a porta devagar. Na cozinha, só o som da panela de pressão chiando, preparando a carne do almoço de amanhã. Minha mãe cochila sentada, o crochê caído no colo, o rádio sussurrando modão. Meu pai já saiu pra cuidar dos porcos mais uma vez antes da noite fechar o terreiro. Eu me sirvo de um resto de café requentado e vou pra varanda. O céu agora é um manto n***o cheio de estrelas. Aquelas estrelas que parecem estar ao alcance da mão, de tão perto. Aqui na roça, tudo é escuro de verdade. Nada de luz de poste, de farol de carro, de claridade de janela de prédio. Aqui a noite é noite mesmo. Me sento na rede, puxo as pernas, apoio o copo de café no chão e só então lembro do celular. Tá no quarto. No fundo da gaveta. Onde deixei de propósito ontem. Mas agora a curiosidade cresce como bicho escondido na sombra. Levanto devagar, volto ao quarto, abro a gaveta, pego o aparelho. A tela ainda tá um pouco quente do último carregamento. Ligo. Três mensagens não lidas. Todas do mesmo número. O coração dá um pequeno salto. Não de susto. Nem de medo. É outra coisa. Um alerta silencioso. Algo como: "ainda tá aqui". Abro a conversa. "Você sumiu." "Achei que fosse mais curiosa." "Ou ficou com medo?" Leio devagar. A luz da tela ilumina meu rosto no quarto escuro. As palavras me acertam como uma cutucada discreta no ombro. Não sei o que me incomoda mais: a certeza de que ele esperava minha resposta... ou o fato de que ele acertou. Digito com calma, os dedos levemente trêmulos. "Não costumo falar com desconhecidos." A mensagem azul aparece assim que é entregue. Ele visualiza rápido. "Eu também não." "Então por que tá falando comigo?" "Porque você respondeu. E continua respondendo." Paro. Olho a tela. Me encosto no travesseiro com o celular entre as mãos. Tento imaginar quem ele é. Pela forma de escrever, não parece tão novo. Nem velho demais. Não usa emoji, não escreve abreviado. Fala pouco, mas o suficiente pra instigar. "Você nunca disse seu nome." "E você nunca perguntou." "Tô perguntando agora." Demora um pouco mais dessa vez. Fico ouvindo o som dos grilos lá fora, e o motor do trator falhando ao longe. Deve ser meu pai voltando. A casa tá mergulhada em silêncio e luz baixa. Finalmente, a resposta vem. "FL." Leio e releio. Três letras. Uma sigla. Um apelido? Um nome encurtado? "FL de quê?" "De Flávio. Mas ninguém me chama assim." "E quem sou eu pra você me deixar chamar de outro jeito?" Dessa vez, ele demora ainda mais. Um tempo que me faz quase desistir de continuar. Mas aí, vem: "Ainda tô descobrindo quem você é." Fecho os olhos por um segundo. Sinto o celular aquecer na palma da mão. Guardo o aparelho embaixo do travesseiro. Não respondo mais nada. Não por medo. Nem por dúvida. Mas porque alguma coisa mudou, mesmo que eu ainda não saiba o que é. E agora, tudo o que eu posso fazer é esperar pra ver onde isso vai dar. Mas eu gosto disso. É a coisa mais emocionante que já aconteceu na minha vida, desde o nascimento da Lena.
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