Barden chegou pouco antes das cinco da manhã, sem avisar ninguém. Parou o carro em um ponto mais alto do campo de treinamento e ficou ali por alguns minutos, imóvel, observando o terreno em silêncio, enquanto os sons da madrugada iam se diluindo com a chegada do dia. Estava de m@u humor, porque a noite tinha sido péssima, usava uma camisa escura de tecido grosso, um boné puxado até as sobrancelhas e uma arma presa à cintura — sabia que ainda havia quem o considerasse morto, e preferia que essa crença persistisse, ao menos por enquanto, então evitava mostrar o rosto e não saia muito durante o dia também..
Abriu com cuidado a porta traseira do carro e encontrou Citlali ainda dormindo, o rosto enfiado no moletom, os pés cobertos por meias grossas e a touca abaixada até metade da testa. Ela respirava fundo, num ritmo calmo, quase grave, como se soubesse exatamente onde estava, como se a presença do pai bastasse para garantir que tudo correria bem. Barden a pegou no colo sem fazer barulho, ajeitou o peso da filha com um gesto já automático e seguiu para o galpão de armas, onde os homens logo se reuniriam para o treino. Ela não acordou.
A colocou sobre a bancada coberta com lona, entre caixas de munição e equipamentos organizados, e começou a destravar e testar armamentos. Falava pouco, emitia ordens curtas e secas, e a maneira como seus olhos vasculhavam cada movimento deixava claro que qualquer erro seria anotado — e lembrado — por muito tempo. Quando um dos soldados tentou se aproximar da menina, bastou que Barden virasse o rosto, devagar, fixando o olhar por um segundo e meio. O homem recuou sem dizer palavra; não queria os soldados brincando ela, porque entendia que tecido que o bicho homem era feito, era um perigo, e manteria a filha segura.
Citlali acordou quando os tiros de teste começaram a ecoar, mas não se assustou. Sentou-se com os olhos ainda pesados de sono e encontrou o pai organizando fuzis, carregadores, rádios. Quis perguntar.
— Papai...
— Qual foi o combinado? — ele perguntou, sem olhar.
— Sem perguntas...
— Então faça isso.
Ela ficou em pé sobre a bancada, se esticou e beijou o rosto dele antes de descer. Ele foi acalmado. Citlali tinha o hábito de arrancar sorrisos dele, a alimentou ali mesmo com uma xícara de chocolate quente e pão.
O treinamento começou logo depois. Barden a colocou sobre os ombros como quem já a integrava ao próprio corpo, sem incômodo e foi treinar, a menina havia aprendido rápido a se segurar.. nele..
Corria com elaem seus ombros, , manuseava armas, dava instruções, corrigia posturas, desmontava peças, montava novamente, cronometrava tempo de reação e ordenava silêncio absoluto quando o necessário — e mesmo com o peso extra sobre si, não demonstrava cansaço ou distração. Ela era o lembrete vivo do motivo de seguir, o motivo de não parar. A filha era a única âncora possível.
Depois das rodadas de tiros, simulações de invasão e verificação de armas em tempo cronometrado, foi até o carro, buscou o equipamento de mergulho da menina, e seguiram juntos para a área do lago. Retirou a camisa, jogando-a sobre a mochila. O corpo suado revelava as marcas de guerra — cicatrizes profundas que atravessavam o dorso e os braços. Barden nunca as escondia da filha. Ela precisava saber quem ele era.
Citlali tirou o moletom, usava maiô e se sentou e começou a vestir o traje térmico. Fazia isso com a agilidade de quem já sabia a ordem correta de cada peça. Ele a ajudou a ajustar o zíper, testou o cilindro de ar comprimido, tudo em silêncio. O equipamento era novo, sob medida, custava mais do que qualquer carro estacionado naquele campo. Mas era segurança. E segurança, para ele, tinha nome e apelido: Citlali.
Enquanto os outros sete homens já esperavam à margem, armados apenas com os óculos de mergulho, Barden se abaixou e conferiu os últimos ajustes. Segurou a filha pela cintura e a empurrou com firmeza para dentro da água. Ela mergulhou sem resistência, sem hesitação, como se a água fosse um segundo lar. Ele foi o último a entrar. Mergulhou em silêncio, os músculos aliviados pelo choque da água fria que o cercava.
O treino era pesado. Exigia resistência pulmonar, movimentação sob carga, deslocamento prolongado embaixo d’água. Citlali usava todo o equipamento. Ele, nada. Nadava apenas com os pulmões, como fazia desde adolescente, quando aprendera a sobreviver com quase nada. Lá embaixo, no fundo do lago, onde o som do mundo sumia e só restava o som do próprio corpo em esforço, ele se sentia inteiro.
Subiu algumas vezes para respirar. Ela acenou, ele retribuiu com um gesto quase sutil, mas verdadeiro, foram cinquentas minutos de treinamento, nado, mergulho, resistência a água fria, mas Citlali estava aquecida pelo traje térmico. Ele saiu primeiro, e a puxou para fora da água, sentando-a sobre uma pedra grande e lisa. A menina retirou a máscara, jogou um beijo e riu. Ele encostou os lábios na testa dela, apertou o nariz com carinho. Não disse nada, mas era evidente: amava aquela criança com uma força que doía. Às vezes pensava que gostava mais dela do que gostava de si mesmo — talvez fosse exatamente isso que significava ser pai.
Secou os ombros dela com uma toalha escura e voltou a vestir a própria camisa.
⚓⚓⚓⚓⚓⚓
O almoço foi servido em silêncio no pavilhão dos fundos. Um grande refeitório com bancos de madeira, a comida era taco e guacamole,.. Os homens se sentaram aos poucos, espalhados, mas com um tipo de ordem invisível que respeitava posições e territórios. Barden se sentou com Citlali no colo, a menina envolta em seus braços. Ele serviu o prato dela..
— Coma tudo, Citlali — murmurou perto do ouvido dela.
— Não gosto muito dessa comida — resmungou, apertando os lábios.
— Eu entendo. Mas aqui precisa comer. Em casa você escolhe. Aqui, não, porque o papai não tem como arrumar outra comida nesse momento, então precisa fazer a sua parte e comer tudo..
Ela encarou o prato, desconfiada. Olhou ao redor, viu os homens comendo calados, alguns rindo baixo, e talvez tenha entendido que ali não era lugar de birra, comeu sem reclamar.. Só depois que ela esvaziou quase tudo, raspando o fundo com o garfo pequeno, ele entregou a garrafa de suco com tampa azul. Ela bebeu o suco todo e depois água, direto da garrafa preta do pai. Estava corada, satisfeita, com os cabelos grudando no rosto, os fios embaraçados, e a roupa grande demais para ela, mas para Barden era a criança mais linda do mundo
Terminado o almoço, Citlali se afastou para brincar perto do alambrado, mas sempre dentro do campo de visão de Barden. Ele trabalhava no computador, ia receber um carga grande de armas.. quando um dos sentinelas surgiu, os homens da máfia chamam uns aos outros de Soldados, os homens de Barden se chamavam sentinelas.. porque quase nunca dormiam, principalmente em trabalho.
— Chefe... tem um aniversário infantil na minha família hoje. Eu podia levar a menina comigo? Só pra ela brincar um pouco, tem pula-pula, bolo, outras crianças...
Barden virou o rosto, fechando os olhos por um segundo.
— Não.
Ikal tentou de novo.
— Mas é só uma horinha, no máximo. As crianças vão gostar de conhecer ela. Tem um monte da idade dela.
— Não Ikal. E minha filha não sai do meu lado. Muito menos com homem.
O sentinela respirou fundo.
— Eu sou muita coisa, chefe... Mas isso... isso não. . Nunca faria nada pra machucar uma criança.
Barden sustentou o olhar por um tempo longo o bastante pra deixar qualquer um desconfortável. Mas não recuou. Não naquele ponto.
— Eu sei, Ikal. Se me perguntassem, eu colocava a mão no fogo por você. Mas mesmo assim, minha resposta é não. E vai continuar sendo não até ela completar dezoito anos e poder decidir o que quer. Até lá, não sai do meu lado. Com homem, nunca, confio em você, mas não.. não é pessoal.. espere até ser pai e vai me entender..
__ Certo chefe..
O soldado se afastou..