Cecília Stein
Lise: AAAAH! - ela solta um berro quando abre o olho e me vê sentada na cama dela, plena, com a panela de brigadeiro no colo. - QUE SUSTO SUA DEMÔNIA!
Ceci: Que palavra feia, garota. - respondo com a colher enfiada na boca, dando um sorriso debochado - Pede desculpa pra mim e pra Deus.
Lise: Me deixa em paz, Cecília! - se esconde com o travesseiro no rosto e eu, delicada como um trator, puxo o travesseiro dela e jogo longe no chão.
Ceci: Acorda. Preciso de um favor teu. - já jogo o olhar 43, bem pidona mesmo.
Lise: Que favor, criatura? - ela se vira com aquela voz arrastada, caçando o celular no meio da cama. Quando vê a hora, me lança um olhar de puro ódio e passa a mão no rosto todo amassado. - Tu tá me acordando às sete da manhã num sábado?! Tá doida.
Ceci: É vida ou morte. - faço carinha de cachorro abandonado. Funciona? Nunca. Mas eu tento.
Ela me mostra o dedo do meio, fecha os olhos e se enterra no colchão de novo.
Lise: Seja o que for, já adianto: não.
Empurro a panela pro lado, levanto da cama com a maior dignidade que um pijama de bichinho permite e fico encarando ela.
Ceci: Se eu disser que passo a semana inteira fazendo massagem no teu pé?
Lise: Ainda não.
Ceci: Prancho teu cabelo por um mês, topa?
Lise: Também não. - a peste responde rindo, que ódio!
Ceci: Te empresto minha bolsa da Miu Miu. - solto na cartada final.
Ela abre os olhos na hora, sorrindo como se tivesse ganhado na Mega da Virada.
Lise: Por um mês.
Ceci: Um mês não, Anelise! - já começo a reclamar e ela senta na cama rindo da minha cara. - Tu estraga tuas coisas tudo, vai estragar as minhas também.
Lise: É isso ou nada.
Ceci: Tu é muito filha do Marco Aurélio mesmo. Os dois com desvio de carácter.
Ela solta uma risada me jogando uma película.
Lise: Fala logo o que você quer.
Ceci: Teu carro. - falo de vez, e aí ela explode de rir. Sério. Se joga pra trás, gargalhando, sem ar. E eu? Fico com a maior cara de cu. Segunda vez que riem da minha cara na minha cara.
Pego o chinelo e jogo nela, que desvia gritando.
Lise: Tá maluca?!
Ceci: Tô vestida de palhaça? Por acaso? - cruzo os braços, bufando. - Vai se danar Anelise!
Lise: O que te faz pensar que eu vou deixar meu carro na tua mão, Cecília? Dos teus três últimos... um deu PT, o outro fundiu o motor e o último... nem tu sabe onde tá.
Ceci: Eu não tive culpa em nenhuma das três vezes! - falo tentando manter a seriedade, mas acabo rindo também.
Lise: Te emprestar, eu não empresto. Mas posso te levar se quiser.
Fico pensativa, mordendo os lábios.
Lise: Que cara é essa? É tão r**m assim o lugar que você vai?
Ceci: No Cruzeiro Alto.
Ela me olha tossindo e eu rio.
Lise: Tu tá querendo ir atrás de bandido agora? Pra quê? Eles não vão te devolver p***a nenhuma não. Vão é te deixar sem brinco, sem cordão e talvez até sem CPF.
Ceci: Então eu vou sozinha. - me viro e vou saindo do quarto só pra ver se ela morde a isca.
E claro que ela morde.
Lise: Se arruma logo que eu tenho a prova do buffet depois. - grita alto.
Corro de volta, me jogando em cima dela beijando seu rosto toda animada e ela me empurra.
Lise: Vai antes que eu desista.
Quando chego na porta, viro e olho pra ela com cara de quem vai soltar uma bomba.
Ceci: Tu vai mesmo casar com esse bosta?
Lise: Para de chamar ele assim.
Ceci: Deus me livre casar com um homem desses.
Ela ri fraco e desvia o olhar.
Lise: Não sei porque você implica tanto com o Lucas.
Ceci: Não sabe mesmo? Um cara preconceituoso, misógino e homofóbico. Sério mesmo que não sabe?
Lise: Eu sou contra tudo isso e já falei pra ele. E pro papai.
Ceci: Eu queria tanto que você acordasse e parasse de ser controlada pelo meu pai.
Ela fica quieta, abaixa a cabeça.
Ceci: Eu só sei que no teu casamento, eu não vou. Não quero ver você acabar com a tua vida com um cara merda desse.
Lise: Vai lá se arrumar! Tá falando demais já.
Ceci: Se eu pudesse te dar um conselho... - falo olhando direto pra ela, sem desviar nem um segundo - Seria pra você ir viver sua vida e parar de seguir essa cartilha do Dr. Marcos. Porque ele só pensa nele mesmo.
Viro de costas sem esperar resposta e saio do quarto deixando ela lá, plantada, digerindo tudo o que eu disse.
Se vai refletir? Não sei.
Se vai fazer diferença? Também não sei.
Só sei que eu precisava falar. Quem sabe ela me ouve.
(..)
Lise: Entregue! - diz me olhando por cima do óculos escuro.
Ceci: Vamos. - solto o cinto, já esperando a bonita que nem se move.
Lise: Eu? Aí dentro? - aponta lá pra cima - Nunquinha.
Fecho os olhos, puxo o ar fundo e solto devagar, tentando encontrar paciência sabe lá Deus onde.
Ceci: Tá com medo deles fazerem o que com você? O máximo que pode acontecer é a gente voltar a pé pra casa. - falo olhando pra ela, que já n**a com a cabeça.
Lise: Que já é muito, né? - continuo negando, bufando enquanto olho pela janela o povo subindo e descendo.
Ceci: Vamos, Lise! Vai ficar aí sozinha me esperando?
Lise: Vou...
Só que ela nem chega a terminar de falar e pá! batem na janela do carro. Dois caras. Um do meu lado e outro do dela.
Ela me olha estreitando os olhos e sussurra:
Lise: Eu vou te matar! - e eu, claro, sorrio. Sei que não devo, mas a vontade é maior.
Ela abaixa o vidro e nem dá tempo de pensar, os caras já metem o bico do fuzil na nossa cara.
- Tão fazendo o que aqui? - o cara pergunta desconfiado, metendo a cara no carro, todo no veneno.
A Lise até tenta ensaiar alguma desculpa, mas eu já corto logo.
Ceci: Quero falar com quem manda aqui. - digo tranquila.
Lise me encara revoltada, com os olhos arregalados, e eu só dou de ombros.
- E quem tu é pra falar com o patrão? - o outro já pergunta na ignorância.
Não são os mesmos de ontem, ainda bem. Mas estupidez parece ser padrão por aqui.
Ceci: Sou a dona do carro que veio parar aqui. Roubaram meu carro e trouxeram pra cá. E eu não vou embora até devolverem meu carro.
Lise: Cecília! - ela grita no susto, apertando tanto minha coxa que minha pele até fica vermelha.
Lise: Tá maluca?! - diz virando o olhar pro cara do lado dela com um sorriso nervoso - Liga não, ela tá doida tadinha. Sempre toma o remedinho de manhã, hoje esqueceu. A gente já tá indo embora, podem ficar com o carro dela todinho pra você. - fala toda fofinha.
Fala e bota a mão no volante pra dar partida enquanto sorri de canto, desesperada.
Só que eu não vim aqui pra desistir.
Ceci: Não tem nada disso não. - boto a mão na maçaneta e já vou descendo do carro.
O cara do meu lado se afasta e eu desço tranquila, encarando a Lise.
Ceci: Pode ir embora, Lise. Eu vou ficar aqui e só saio com meu carro. - falo decidida, vendo ela me negar com a cabeça, toda desesperada.
- Desce tu também! Ninguém vai embora aqui não. - o cara fala mais grosso ainda - Tu deve ser a mina que os cria comentou que veio aqui ontem. Bora lá, vou te levar no patrão.
Ele fala se afastando e eu solto um sorrisinho de vitória. Tô gelada? Tô. Mas por fora? Nem tremo.
Eles assobiam chamando alguém, vão um pouco mais pra frente e ficamos eu e a Lise encostadas na lateral do carro.
Lise: Sabe que se não morrer aqui, tu vai morrer quando chegar em casa né?
Ceci: Justamente por isso eu tô aqui. Prefiro morrer aqui do que nas mãos do meu pai...
Lise: Tô falando de mim. Eu que vou te matar, Cecília. - ela cochicha tão sério e me olhando tão feio que eu tenho que morder o lábio pra não rir.
O homem volta e faz sinal com a cabeça pra gente subir na garupa das motos, e é o que a gente faz.
Eu vou em uma moto, a Anelise em outra.
E o engraçado? Eles nem de capacete tão. E ainda voam!
Na primeira arrancada, travo na cintura do cara com tanta força que meus dedos até formigam.
A gente vai cortando tudo quanto é beco, rua apertada, lugar que só Jesus sabe como a moto passa.
Se eu sair viva daqui, nunca mais reclamo de trânsito engarrafado no Rio de Janeiro.