2- PRESA

1410 Words
CAPÍTULO 2 VALÉRIA NARRANDO No começo, o Daniel era outra pessoa. Daquele tipo que fazia a gente acreditar em promessa. Que olhava no fundo dos olhos e fazia parecer que o mundo podia parar só pra ouvir a nossa risada. Eu tinha 16 anos quando ele apareceu na minha vida. Um moleque cheio de marra, boné torto na cabeça, chinelo de dedo e aquele sorrisinho torto que já entregava que não prestava — mas que sabia encantar. Ele era vapor na época, vendia pó pros cara da quebrada, mas falava comigo como se já fosse dono do morro. — Qual o sabor mais doce aí? — ele perguntou, parando na minha barraca de sacolé. — Nenhum. Tudo congelado. — respondi, sem paciência. — Mas cê derreteu o meu coração, então já tem um sabor novo. E eu ri. Eu juro por Deus que ri. Ele voltou no dia seguinte, e no outro, e no outro. Sempre com desculpa boba, sempre com aquele jeitinho de quem queria conhecer mais do que meu nome. E eu… b***a, né? Comecei a gostar. Daniel me levava pro mirante pra ver o pôr do sol, dividia Coca de garrafa comigo na escadaria, e falava dos sonhos dele como quem falava de um império. Dizia que ia subir, que ia ser respeitado, que ia mudar tudo. E que eu ia ser a mulher dele. A fiel. A que ia usar corrente no pescoço e salto na favela. — Um dia cê vai morar na melhor casa do morro, Valéria. E todo mundo vai saber que é tua. — ele disse isso com tanto orgulho, que eu acreditei. E ele cumpriu. Demorou, mas cumpriu. A casa veio. As roupas vieram. A vida mudou. Com ele eu conheci motel caro, perfume importado, churrasco com os cria e festa que só chefe entra. Eu tinha o que muitas sonham. Só que eu não era feliz. Antes disso… eu era. No começo, ele me acordava com beijo na testa, dizia que eu era linda até descabelada. Fazia questão de andar de mão dada comigo no beco. Me defendia de tudo. Batia no peito e dizia que eu era o ponto fraco dele, a paz no meio da guerra. E eu me iludi. Me entreguei. Tinha dia que ele chegava com chocolate embrulhado em papel de presente, só pra me ver sorrir. Tinha noite que a gente dormia juntinho, no colchão no chão, sem luxo nenhum… mas com amor. Ou pelo menos eu achava que era amor. Porque quando ele subiu de verdade… Quando virou o Macaco, o nome que botava medo em geral… Ele esqueceu de mim. Primeiro, foi a ausência. Chegava tarde, saia sem avisar, deixava o celular virado pra baixo. Depois, veio o silêncio. Os olhares duros. As ordens. A frieza..E aí… veio o tapa. Na primeira vez, ele pediu desculpa. Chorou, disse que era o estresse, que tinha se perdido por um segundo. Na segunda, disse que era culpa minha, que eu tava vacilando. Na terceira, já não disse nada. E na quarta… eu já nem chorava mais. Fui virando sombra dentro da minha própria casa. E o mais doído era lembrar do começo. Do menino que comprava sacolé só pra me ver. Que falava de futuro com brilho no olho. Que me fazia rir quando tudo doía. Aquele Daniel… Tinha morrido. E eu? Eu seguia ali. Viva por fora. Apodrecendo por dentro. Porque no morro, amor que começa em promessa, termina em silêncio. E eu aprendi da forma mais c***l. Eu sempre fui sozinha. Nunca tive pai. Nem irmãos. Só minha mãe. Era ela quem me defendia de tudo nesse mundo. Dizia que eu tinha nascido pra ser maior do que o morro, que minha alma era grande demais pra viver enjaulada naquele lugar. Ela sonhava em me ver estudando, saindo dali, vivendo uma vida normal. Mas sonhar no morro é pedir pra acordar com a cara na lama. Quando ela percebeu quem o Daniel tava se tornando, tentou me tirar de perto. Tentou me abrir os olhos. Tentou me salvar. — Ele não te ama, filha. Quem ama, não machuca. Sai disso enquanto ainda dá tempo — ela dizia, segurando meu rosto, com o olhar cheio de medo e esperança. Eu quis ouvir. Juro que quis. Mas era tarde. Eu já tava presa demais, machucada demais, confusa demais. A última vez que ela foi na nossa casa, ele tava alterado. Cheio de pó na mente e ódio no olhar. Ela me puxou pelo braço, gritando que ia me levar embora dali. E ele… ele ficou parado por uns segundos. Silencioso. Depois sorriu. Aquele sorriso gelado, que eu aprendi a temer. — Pode levar ela… mas cê não sai viva. Eu gritei. Me joguei no meio dos dois, implorei. Mas ele mandou os cria. Não foi nem com a própria mão. Mandou apagar minha mãe. Como se ela fosse ninguém. Atiraram nela dois dias depois, quando ela descia a ladeira da igreja. Disseram que foi assalto. Mas eu sabia. Todo mundo sabia. E como se não bastasse… Dois dias depois, acolocaram fogo na nossa casa antiga, onde eu cresci com ela. Apagaram nossas fotos, nossos cheiros, nossa história. Ficou só cinza, poeira e dor. Desde aquele dia… Eu morri por dentro.... Eu olhava pro Daniel dormindo do meu lado, e tudo que eu sentia era nojo. Raiva. Ódio. E foi ali, na beira da cova da minha mãe, que eu jurei. Um dia, eu ia sair daquele inferno. Um dia, eu ia fugir. E quando ele menos esperasse… Eu ia me vingar. Podia levar anos. Podia me custar tudo. Mas eu ia fazer ele pagar. E agora, olhando pra ele estirado no chão da sala, com os olhos abertos e vazios, o sangue se espalhando pelo piso onde ele já me jogou tantas vezes… Eu só pensava: Não fui eu quem puxou o gatilho… Mas Deus sabe que esse sangue me aliviou. O barulho da porta do camburão batendo ainda ecoava na minha cabeça. CLANG. Fechou como se tivesse trancado meu destino junto. Eu tava sentada ali, com o joelho ralado, a cara inchada e a alma rasgada em mil pedaços. O gosto de sangue ainda na boca, a garganta seca, a mente girando num redemoinho de lembranças que queimavam mais que tapa. A viatura arrancou com tudo, sacolejando pelas vielas do morro que eu conhecia de cor. Cada beco que passava me lembrava de algo. Um pedaço da minha história. Um lugar onde ri, onde chorei, onde vivi… e onde morri um pouquinho todo dia. Lá fora, as luzes da madrugada misturavam vermelho e azul, como se avisassem pro mundo que eu era um problema a ser resolvido. E lá dentro… só o silêncio dos policiais e o barulho do rádio chiando notícias que eu nem conseguia entender. Do lado de fora da grade, um dos PMs olhava pra mim pelo retrovisor, com a expressão dura. — Tá quietinha, né? Mas vai falar. Lá na delegacia, todo mundo fala. — ele disse, sem tirar os olhos da estrada. Eu não respondi. Nem ele merecia. Nem eu tinha forças. Fiquei ali, com a cabeça encostada na lataria fria, sentindo a trepidação do carro vibrar direto na costela machucada. A cada buraco que a viatura passava, era como se minha dor lembrasse que ainda tava viva. E eu não sabia se queria estar. Fechei os olhos. Mas não consegui descansar. Só via a cena repetindo na minha cabeça. Os olhos do Daniel arregalados. O corpo caído. O sangue espalhado no chão da nossa sala. E por mais que eu tivesse jurado me vingar, por mais que eu odiasse tudo que ele me fez, a morte dele ainda me doía. Porque não era só o fim dele. Era o fim de tudo que eu vivi até ali. Era o fim de quem eu fui um dia. A mulher que acreditou no amor. Que acreditou nele. Que se perdeu tentando amar o homem errado. Agora… Agora eu era só um corpo jogado no banco duro de uma viatura. E um perigo ambulante pra quem sabia demais. — A gente tá chegando — murmurou um dos PMs. — E olha, se eu fosse você, começava a abrir o bico logo. Respirei fundo. Mantive a cabeça baixa. Eles achavam que eu ia falar. Eles achavam que eu ia me desesperar. Isso porque eles não sabem de tudo que eu já passei e o que eu já aguentei. Continua..... Deixem bilhetinhos 📚
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