CAPÍTULO 4
MORTE NARRANDO
Meu nome é Rafael.
Mas ninguém me chama assim.
No morro, meu nome é Morte.
Tenho 29 anos, moreno claro, o corpo fechado de tatuagem — porque eu curto pra caralhø mesmo. Cada risco na pele é um pedaço da minha história, e a maioria foi feita depois de perder alguém.
Sou cria do Canta g**o.
Nasci e me criei ali.
Fui vapor, fogueteiro, gerente… subi degrau por degrau até virar o sub do morro. Sempre do lado dele. Do Macaco. Meu parceiro. Meu irmão. Não de sangue, mas de vivência, de guerra, de lealdade.
Só que o problema é que o poder muda as pessoas.
Quando o Daniel assumiu o morro de verdade, quando virou o chefe maior… ele virou outro homem. No começo, ele era visão. Moleque esperto, sangue nos olhos, sabia lidar. O povo gostava dele. Os cria respeitavam. Ele fazia as parada fluírem sem precisar gritar. Eu via ele como futuro, e tava ali pra fortalecer.
Mas depois que sentou na cadeira de dono…
Ele começou a se perder.
Achava que podia tudo. Começou a tratar os cria com arrogância, botava medo até onde não precisava, quebrava menor na mão só pra mostrar que era ele que mandava. O respeito virou medo.
E o medo vira traição fácil.
Eu falava pra ele.
— Tá passando do ponto, irmão. Tu tá esquecendo de onde tu veio.
— Eu sou o dono dessa porrã toda, Morte! — ele gritava. — Tu é meu sub, cala tua boca!
Calei. Mas nunca engoli.
Agora… o que me incomodava de verdade mesmo era a forma como ele tratava a Valéria.
Ela sempre foi diferente. Nunca foi mulher de bandido metida a barbie de baile, que só queria aparecer em story. Valéria era discreta, na dela, inteligente. Dava pra ver que ela nunca pediu por aquela vida. Ela só ficou… porque amava ele.
E ele sabia disso.
E usava isso.
Ela aguentou coisa demais calada.
E eu vi. Vi cada olhar dela gritando por socorro.
Cada vez que ela descia o beco com a cara marcada e a cabeça baixa.
Vi ela sumindo.
Murchando.
Tentei falar com ele.
— Tu tá batendo em mulher, Daniel?
— Fica na tua, porrä! Se ela fala demais, apanha mesmo. Mulher minha tem que saber o lugar dela!
Ali, eu soube.
O Macaco que eu conheci tinha morrido.
E a única coisa que sobrou foi um monstro alimentado pelo ego, pelo pó, e pela certeza de que ninguém ia derrubar ele.
Só que todo mundo cai.
Cedo ou tarde.
E o dele chegou.
Quando recebi no rádio que o BOPE tinha subido e ele tinha sido baleado, fiquei mudo por uns minutos.
Não por luto.
Mas por… certeza.
Certeza de que a queda dele era só o começo de uma nova guerra.
E o nome no meio dessa guerra era um só:
Valéria.
Agora ela tá presa, sozinha, e com a cabeça cheia de coisa que ninguém podia saber.
Se cair no presídio… já era.
Se abrir a boca… geral roda.
Mas eu conheço ela.
Ela não é dedo-duro.
Ela é ferida.
E ferida quieta é bomba relógio.
E é por isso que, mesmo com a boca calada…
Eu vou tirar ela de lá.
Nem que eu tenha que botar fogo na cidade inteira.
Eu tava fora do Rio.
Tinha saído numa missão com uns parceiros de confiança, resolvendo uma treta no interior que envolvia umas rotas de entrega e um vacilão que tava desviando carga. Coisa séria. Assunto de comando. E nessas horas, só vai quem tem moral pra resolver no peito.
Tudo tava andando. Já tava quase fechando com os caras quando recebi a chamada no rádio:
— Morte… deu r**m no Canta g**o.
Meu sangue gelou.
— Macaco tomou três no peito. BOPE subiu. Levaram a Valéria presa.
Na hora, larguei tudo.
— Volta geral. Agora. — falei pros cria.
Pegamos a van e descemos a serra voado. Nem dormi. Nem pisquei. Cheguei no morro com a cara pesada, o corpo moído, mas o sangue fervendo.
Assim que botei o pé no beco principal, os cria começaram a colar.
— Ô Morte, tá sabendo, né? Os caveira invadiram como se tivessem mapa na mão, irmão.
— Foram direto na casa do Macaco, sem nem bater na contenção…
A cada frase que eu ouvia, minha raiva só aumentava. Tinha coisa errada ali. Tava na cara.
Chamei logo o Rayan, meu braço direito, que cuidava dos meus bagulho enquanto eu viajava.
— Chega aqui, porrä. Quem tava na linha de frente? Como é que os caveira subiram essa porrã como se fossem dono? Cadê os radinho? Cadê os fogueteiro?
Ele engoliu seco.
— Subiram direto, Morte. Muito rápido. Nem deu tempo dos foguete avisar. Só teve tempo de dois pipoco no céu. Quando vimos, os cara já tavam na viela da casa do Macaco. Parecia que sabiam o caminho…
— Tinha X9 nessa porrä! — gritei, socando a lataria de uma Kombi parada. — Alguém abriu a boca. Alguém vendeu o morro!
Ele só abaixou a cabeça. Sabia que eu tava certo.
— Cadê o advogado? Já sabe pra onde levaram a Valéria?
— A última informação que chegou é que tão com ela na delegacia do centro… Mas ninguém tem certeza ainda. Tão mantendo no sigilo.
— Então liga agora pro Nogueira. Manda ele ir pessoalmente. Enfia grana na mesa do delegado, no carcereiro, na porrä do porteiro se precisar. Mas descobre. Porque se ela cair no presídio, irmão…
Parei. Respirei fundo. Cerrei o punho.
— Se ela cair com facção rival… ela tá morta.
Rayan já pegou o telefone, andando rápido na minha frente. Eu olhei pro alto do morro, onde dava pra ver só a sombra da casa que um dia foi o trono do meu antigo irmão.
— Tu fez muita merda, Daniel… Mas a única que ainda posso tentar consertar é ela.
E eu vou tirar a Valéria de onde for.
Nem que eu tenha que deixar um rastro de corpo até ela.
Continua.....