Capítulo 1
- Abaixa isso menino! - "Mas que inferno", pensou Alex. Gritou lá do quarto:
– Já vou!
Deitado na cama, ele pensava:
"1994.
Alex.
Meu nome é Alex.
Não tenho namorada. Eu acho que eu sou um i****a. Um virjão, um o****o. 18 anos e nunca dei um beijo em ninguém. Meu Deus."
Alex esticou o braço e tateou no aparelho de som até encontrar o botão de volume. Afinal, era melhor abaixar aquela merda logo. Levantou-se devagar pra ir buscar o café. E hoje, de novo ele tinha faltado da escola. Na verdade, ele detestava a escola. Quase não tinha amigos. Alex achava que os meninos da sua classe eram todos uns otários. Eles viviam falando em mulher e futebol. Alex odiava futebol com todas as suas forças. Quando era criança e tentava jogar, ninguém queria ele no time. Perna de p*u. De goleiro, era o frango do bairro. Era mais fácil ele fazer gol contra do que defender o próprio time. Tinha virado chacota dos outros por causa disso. Desistiu dos esportes. Ouvia os colegas falando das meninas com quem saíam. Já ele era totalmente ignorado pelas meninas na escola. Ele olhava para as mais bonitas com um olhar de esperança, mas elas sempre o ignoravam. Ele não tinha atrativos que interessassem. Já tinha se acostumado com isso.
Tirando as coisas da escola mesmo, trabalhos, provas, ele não tinha o que falar com os outros. No intervalo, geralmente sentava com a Jéssica, que era a sua única amiga. Ela falava muito do futuro. O que eles iam ser, o que eles iam fazer. Ele duvidava que esse dia fosse chegar. Parecia que ia ficar pra sempre naquela escola. Que ia ter 18 anos pelo resto da vida. Que nunca ia acontecer nada de diferente.
Talvez ele nem chegasse a ficar velho. Talvez ele batesse de frente com um caminhão a 120 km por hora. Como isso iria acontecer, não dava pra saber, já que ele não sabia nem andar de bicicleta. Que dirá um carro a 120. Ele poderia ser o passageiro. Como num sonho bem louco.
Olhou no espelho. Moreno, pele tostada de sol, rosto anguloso. Aquele corpo meio comprido, meio desengonçado de adolescente que ainda não tem as formas de homem. Os olhos grandes e ainda meio inocentes. Alex achava que era uma sorte não ter espinhas. Lembrava vagamente de um menino na escola que tinha o apelido de "chokito", por causa do rosto meio deformado de espinhas. Mas Alex também não tinha barba. O bigode era uma sombra sobre a boca, que ele não sabia se sentia orgulho ou vergonha. Os cabelos meio ondulados. O conjunto da obra não ficava m*l de todo. Mas na escola havia caras muito mais bonitos do que ele. As meninas não o enxergavam.
Mas isso não tinha importância. Elas eram belas, fúteis e barulhentas, com seus sapatos de salto, seus batons e seus brincos de argolas. Achava elas até um pouco irritantes. Estridentes. Provavelmente nunca tinham lido um livro do começo ao final. Tinha a gordinha da primeira fileira, mas essa só queria saber de estudar. E era feiosa. Óculos, espinhas, sobrepeso. m*l vestida. Tinha mais era que enfiar a cara nos livros. Exatamente como ele.
O sonho dele era encontrar a mulher perfeita. Era óbvio que a mulher perfeita não estava na escola. Ela já seria uma mulher, não uma adolescente como ele que nunca tinha beijado. Ou pior, que ficava beijando os meninos ali no muro de trás da escola, como as meninas da classe dele faziam. Se alguém tivesse herpes ali, a escola inteira pegava. Pelo menos ele estava livre disso. Mas também não era pra comemorar. A mulher perfeita seria sofisticada, inteligente, culta, com uma beleza irresistível, um corpo espetacular. Curtiria um som, como ele. As mesmas bandas. E também se apaixonaria por ele. Perdidamente.
Também tinha a Jéssica. Mas a Jéssica não contava. Tinham empinado muita pipa juntos, ralado o joelho descendo a rua com seus carrinhos de rolimã, escondendo bolinha de gude dos moleques mais velhos da rua. Ela era a melhor amiga dele, era como se fosse um menino também. Tão magrela e desajeitada como ele mesmo. Também não era de frequentar o muro da escola com os outros meninos, e até onde ele sabia, ela nunca tinha se interessado por ninguém. Nem beijado ninguém. Ela contaria pra ele. Pelo menos ele achava que ela contaria.
Ainda se falavam bastante, geralmente voltando juntos da escola. Diferente dele, ela estudava e se esforçava pra ter boas notas. Isso não era tão interessante pra ele, porque a mãe todos os dias falava:
- Olha o exemplo dessa menina. Essa sim vai longe. Bem que você podia aprender um pouco com ela a ser mais responsável! Pensa que vou durar pra sempre? Sem estudo onde você pensa que vai trabalhar? Até pra ser lixeiro você tem que ter diploma! Vai repetir de ano de novo!
Ter repetido de ano era o drama da vida dele. Não tinha sido um ano só. Já tinha tomado bomba duas vezes. A primeira vez, ele era moleque e só pensava em brincar. Não estava nem aí pra escola. Óbvio que não ia passar de ano daquele jeito. A mãe colocou ele no reforço e lhe deu umas boas chineladas. Depois de velho, de tanto pensar nas músicas, nos filmes e nos livros que gostava, acabava esquecendo de estudar. Reprovou de novo. Dessa vez, a Jéssica até ficou feliz, porque assim podiam ficar na mesma classe. Ela era mais nova que ele. Mas ela gostava de sentar na frente e era estudiosa. E quase não conversava com ninguém. Que adiantava então estarem na mesma sala, Alex pensava. Em silêncio, do quarto dele, ouvia a mãe praguejar. A mesma ladainha sempre:
- Esse menino fica o dia inteiro trancado dento do quarto ouvindo essas músicas de rock! Quem aguenta isso! Ao invés de sair pra rua, jogar bola, fazer alguma coisa! Se pelo menos pegasse em um caderno pra estudar! Mas não faz nada!
Alex gostava demais da mãe. E ele sabia que aquilo tudo era pro bem dele. Mas puxa vida. Tinha tempo.
A música tocava baixinho, para não incomodar a mãe. E o cantor dizia:
-Temos todo o tempo do mundo.
Sim. Renato Russo tinha razão. Os dias iam passando. Um atrás do outro, e todo dia era a mesma coisa. Quando ele não ia na escola, ficava em casa ouvindo música, lendo e ajudando a mãe em alguma coisa. O pai trabalhava em um escritório. Chegava sempre carrancudo e depois da janta ele se sentava no sofá pra assistir televisão. Quando ele era mais novo gostava de fazer companhia para o pai, de perguntar como tinha ido no trabalho. Aquilo perdeu o interesse. O pai tinha seus próprios problemas e parecia não se importar muito com ele. Podia até viver em outro planeta, que ele não se daria conta. Às vezes Alex até achava que estava atrapalhando. O pai sempre dizia:
- Fica quieto menino, tou vendo novela.
Mas ele não sentia falta de falar com o pai. Estava tudo ótimo do jeito que estava. Eles não tinham assunto mesmo. Um oi, tudo bem era o suficiente.
Também tinha um irmão mais novo, um capeta de oito anos. Ninguém na rua podia com ele. Todo dia o pirralho levava chinelada. Com ele também não foi muito diferente, mas ele era grande agora. Não brincava mais, não quebrava a janela da vizinha jogando bola. Isso não tinha a menor importância. Na verdade, o barulho da criançada brincando até o incomodava. E o irmão era o mais escandaloso.
A mãe apareceu na porta:
- A Jéssica ta aí. Vai lá atender a menina!
Ele sabia o que ela queria. Alex podia ouvir a voz fina dela dizendo:
- Por que não foi na escola? Perdeu prova. O professor perguntou de você.
Aí Alex se deu conta de que não adiantava ele não ir na escola, a escola ia até ele. Mas a Jéssica era legal. Respondeu a mãe:
- Tá, já vou.
Lá estava ela parada no portão carregando os cadernos. Sim, ele via, ela era magra, tão magra como ele. Cabelos castanhos, presos num r**o de cavalo. Não era bonita, mas também não era feia. Não tinha p****s. Também não tinha pernas grossas. Não chamava a atenção em nada. Mas não que ela parecesse se incomodar muito com a própria aparência, como ele se incomodava. Pelo menos ela nunca tinha comentado nada a respeito. Parecia viver bem consigo mesma. Ali parada, de calça jeans e camiseta da escola, era só mais uma entre milhares de meninas. Assim como ele era só mais um entre milhares de meninos. Mas eles eram amigos, e era só isso que importava. Ela contava piadas e eles se lembravam das coisas que faziam quando eram crianças. Um dia ele tentou mostrar pra ela as bandas que amava. Mas ela gostava mesmo era de pagode e música sertaneja. "Que horror", Alex pensava.
- E aí Alex, tudo bom? Porque não foi na escola? Teve prova de História hoje. O professor falou que você vai ficar sem nota. A dona Helena perguntou de você. – Alex suspirou antes de responder:
- Tô bem. Ah perdi hora, cara, não ia sair correndo também. f**a-se. – Ela olhou pra ele com um ar de reprovação. Alex sentiu o peso daquele olhar, sabia que Jéssica não gostava de palavrão. Tentou se corrigir:
– Desculpa o palavrão, Jé. É que eu tou de saco cheio daquilo lá, você sabe.
Jessica sorriu, mostrando que tinha desculpado Alex, e disse, mais séria:
– Sim. Eu sei. Mas o ano nem começou. E você tem que tirar nota. Agora falta pouco. Já estamos no segundo ano. Como vai pra faculdade? Garanto que nem aquele livro de teste vocacional que eu te emprestei você leu. Eu sei que é chato, mas temos que pensar no nosso futuro.
Alex se irritou com aquele sermão. Parecia a mãe dele. Pensou: “Não, minha querida. Não há futuro. Vamos todos ser mortos pela Skynet e meu nome é John Connor. Ah, ela não tinha assistido Exterminador do Futuro. Preferia Ghost. Filme chato e meloso.”
- Se eu não te conhecesse eu ia achar que foi minha mãe que mandou você vir me falar isso. Eu sei disso cara, mas pára, me dá um tempo. O ano nem começou ainda. Vai dar tempo. Relaxa.
Jéssica não estava disposta a desistir. Queria convencer o amigo, vê-lo dedicado aos estudos, bondoso, obediente, e a mãe dele agradeceria a ela para sempre. Jéssica queria agradar a sogra. Sim, nos sonhos dela, mas que m*l tinha sonhar? E Jéssica nunca iria desistir. Voltou a falar, animada:
- Tá Alex, mas presta atenção no que você tá fazendo. Vai repetir de ano de novo por bobeira. Começa assim, e na hora que você vê, não dá mais tempo de recuperar. Lembra da outra vez? Pois é. Escuta, quer meu caderno emprestado? Assim você não fica muito atrasado. Amanhã você me devolve na escola. Ou tá querendo faltar de novo?
Alex achou melhor se dar por vencido, senão aquela ladainha nunca iria acabar. Conhecia a amiga e sabia como ela podia ser determinada:
- Não, não vou mais faltar, meu Deus! Minha mãe me mata. Já escutei um monte hoje. – Todo mundo acha que pode me passar um sabão. Tá, eu admito, eu mereço.
Jéssica se deu por satisfeita. Não ia conseguir muito mais que aquilo hoje, mas Alex tinha ouvido suas sugestões. Até admitiu que merecia o sermão! Maravilhoso. Ela mudou de assunto:
- Sabe quem eu vi hoje na rua? O Carlinhos.
– O Carlinhos, cara?
– Sim, aquele mesmo. Aquele que nós cortamos a linha da pipa dele com cerol. Até hoje o moleque não olha na minha cara. Ahahaha.
– Que bizarro. Mas também, ninguém troca idéia com aquele i****a. Cara retardado.
Jéssica tinha guardado o melhor pro final, a fofoca que estava correndo na escola – o menino que tinha entrado na sala deles. Falou depressa, na alegria de contar a novidade para Alex em primeira mão:
– Pois é! Entrou um menino novo na escola. Acho que o nome dele é Daniel. Parece que já passou por umas três escolas. Muito esquisito ele. Você precisa ver. O pessoal tava comentando que ele até mexe com droga. Credo. Não fui com a cara dele. Olha preciso ir. Minha mãe vai no mercado hoje, e eu tenho que ficar com a Isabela.
Isabela era a irmã mais nova de Jéssica. Alex entendeu. Jéssica não era muito boa em jogar, mas era a única parceira dele no videogame. Era chato jogar sozinho, e como ela foi a única que se candidatou, ele aceitou a companhia. Acostumou-se e sentia falta dela quando ela não jogava. Ficou desanimado com a notícia, mas fazer o que? Ele também tinha um irmão mais novo. Sabia que essas coisas sempre sobravam pros irmãos mais velhos. Ele poderia dizer pra Jéssica trazer Isabela em casa, mas Isabela e o irmão dele não se davam, não podiam nem se ver que logo saía briga:
- Ok, nada de videogame hoje. Tá certo. Acho que vou dar um pulo na biblioteca.
Ela lhe entregou o caderno e se despediu. Ele se encostou meio distraído no portão olhando enquanto ela se afastava. Andava reta e depressa, como se fosse tirar o pai da forca. Mas era gente boa. Ele gostava dela. Eles eram considerados os dois idiotas da escola. Ela também não era muito popular com as meninas, assim como ele não era com os meninos. Ela não passava batom, não tinha corpo de mulher. Preferia jogar videogame com ele, brincar com a irmã e estava aprendendo a andar de skate.
Daniel. Bom, será que esse tal de Daniel curtia um som? Não custava perguntar. Ia ter alguém pra conversar com ele sobre música. O que nunca acontecia, porque dessas bandas cafonas, como dizia a Jéssica, era só ele que gostava. Quem se importava? Alex se importava. A música abria portas, sugeria sonhos, desligava a mente dele da realidade. Era o que o ajudava a suportar. Gostaria muito de dividir isso com alguém. Quem sabe esse alguém não seria o rapaz novato?? Ele tinha que descobrir.