O beijo entre Danilo e Cecília parecia ter alterado o eixo do mundo. Durante a noite, os pensamentos de ambos não encontraram descanso. Enquanto ela revivia o toque, o gosto, e o olhar ardente de Danilo, ele tentava sufocar o caos que isso causava dentro de si.
Na manhã seguinte, Danilo estava mais silencioso que o normal. Observava o morro do alto da laje, os olhos fixos no horizonte. Ivan se aproximou, com o semblante carregado, segurando o celular em mãos.
— Recebi uma mensagem de um dos nossos da comunidade vizinha. Tem gente fazendo perguntas sobre o assassinato do teu pai.
Danilo girou lentamente o pescoço na direção dele.
— Que tipo de pergunta?
— Querem saber onde ele tava nos últimos dias antes de morrer. Estão falando em dívida, em traição interna... Até o nome do Ramon apareceu.
O nome fez o maxilar de Danilo travar.
— Ramon sumiu dias depois da morte do meu pai. Todo mundo achou que ele tivesse corrido da polícia.
— Ou da tua fúria.
Danilo soltou um suspiro, desviando o olhar.
— Você acha que foi ele?
— Acho que você nunca quis saber de verdade quem foi.
Ivan disse aquilo com um peso na voz que deixou Danilo imóvel. Os dois se encararam por segundos que pareceram minutos. Não era apenas sobre o pai de Danilo. Era sobre tudo que estava m*l resolvido entre eles.
— Você está me acusando?
— Estou dizendo que a tua distração tem nome e sobrenome. E que ela pode te custar caro.
Ivan saiu dali, deixando Danilo sozinho com os próprios fantasmas.
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Na casa de apoio, Cecília terminava de pentear os cabelos quando Lívia entrou agitada, segurando uma caixa de sapatos com recortes de jornal.
— Isso tava entre umas caixas no quarto do Danilo. Não era pra eu mexer, mas a curiosidade falou mais alto.
Cecília olhou desconfiada.
— O que é isso?
— História. Do tipo que ele não conta pra ninguém.
As duas sentaram no chão e começaram a examinar os recortes. Matérias antigas sobre tráfico, prisões, desaparecimentos misteriosos no morro. E então, uma matéria em destaque: "Morte de Domingos 'Trovão' deixa vazio no comando do Alemão."
A foto era de um homem alto, de expressão severa. Ele usava terno, mas seus olhos tinham o mesmo brilho implacável de Danilo.
— É o pai dele?
— É. Dizem que foi emboscado, mas nunca acharam provas de quem mandou. Danilo assumiu o morro com 20 anos. E desde então, ninguém ousa desafiá-lo de frente.
Cecília folheou o restante da matéria, sentindo um arrepio ao imaginar o peso de uma herança como aquela.
— Isso explica tanta coisa...
Lívia a encarou, séria.
— Explica, mas não justifica. O Danilo que você vê hoje é resultado disso tudo. Mas o que ele sente por você... Isso é diferente.
Cecília suspirou, confusa.
— E se eu estiver me perdendo nele?
— Às vezes, a gente precisa se perder pra se encontrar.
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Mais tarde, Danilo foi até a casa de apoio. Estava com o semblante duro, mas os olhos procuravam algo — ou alguém. Quando viu Cecília sozinha na sala, aproximou-se devagar.
— Podemos conversar?
Ela assentiu, um pouco hesitante.
Ele se sentou à sua frente, os cotovelos apoiados nos joelhos.
— Aquilo de ontem… não foi um erro. Mas foi perigoso.
— Você está arrependido?
— Estou... assustado.
Ela arqueou uma sobrancelha, surpresa.
— Danilo, o rei do morro, com medo?
— Não de bala. Nem de polícia. Tenho medo do que você desperta em mim. Medo de baixar a guarda e alguém usar isso contra mim. Medo de... me importar.
Cecília ficou em silêncio por um tempo, processando.
— Eu também estou com medo. Você é tudo o que eu jurei evitar. Mas quando estou com você, é como se o resto do mundo sumisse.
Danilo se aproximou, segurando seu rosto entre as mãos.
— Eu não quero te machucar, Cecília. Mas se você ficar... vai estar no meio de um mundo sujo. De guerras, alianças, sangue. Isso aqui não é um conto de fadas.
— Eu nunca pedi um príncipe. Só quero a verdade.
Eles ficaram ali, os olhos fixos um no outro, até que um barulho alto do lado de fora os interrompeu. Danilo se levantou no mesmo instante, alerta.
— Fica aqui.
Ele saiu rapidamente, e Cecília não obedeceu. Seguiu logo atrás, escondida. Do alto da varanda, viu dois homens armados sendo trazidos por Ivan e mais três comparsas. Eles estavam vendados e com as mãos amarradas.
— Pegamos tentando escutar conversa lá na quadra do outro lado — disse Ivan.
— Quem mandou vocês? — perguntou Danilo, já diante dos dois.
Um dos homens cuspiu no chão.
— Teu pai já sabia demais. Você devia ter morrido com ele.
Foi como acender um fósforo no meio da gasolina. Danilo avançou no homem com um soco tão violento que o corpo caiu como boneco. Ivan segurou Danilo pelos braços, tentando contê-lo.
— Chega! Você não pensa direito quando mistura o pessoal, Danilo!
Danilo o empurrou com força, o olhar em chamas.
— O pessoal é o que me trouxe até aqui! Se eu não proteger o nome do meu pai, quem vai?
Cecília desceu correndo os degraus. Ao se aproximar, sentiu o cheiro metálico de sangue no ar. O homem caído se contorcia, e Danilo respirava como se tivesse corrido quilômetros.
Ela se colocou na frente dele, encarando-o.
— É isso que você quer que eu veja? Que eu aceite? Essa violência?
— Essa é a realidade, Cecília! Você acha que eu gosto disso? Você acha que eu não daria tudo pra viver uma vida limpa com você?
O silêncio caiu como um peso entre eles.
Ivan os olhou, furioso.
— Isso aqui tá virando uma novela. E quando misturam coração com guerra, alguém sempre acaba enterrado.
Danilo não respondeu. Só olhou para Cecília. Ela respirava com dificuldade, tentando entender onde estava se metendo. Mas, mesmo com o medo, não havia vontade de ir embora.
— Me conta tudo — pediu ela, enfim. — Desde o começo. O que aconteceu com seu pai. O que você acredita.
Danilo hesitou, mas depois assentiu.
— Amanhã. À meia-noite. Lá no mirante da torre velha. Se você for... eu te conto tudo.
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Naquela madrugada, Cecília não dormiu. Pensava em Danilo, nas palavras de Ivan, na história do pai dele e no peso que ele carregava. Mas, acima de tudo, pensava no sentimento crescendo dentro de si, impossível de ignorar.
No outro extremo do morro, Danilo estava no quarto, encarando a parede onde havia uma foto antiga. Nela, estavam ele, o pai e Ivan, ainda adolescentes. O tempo os tinha transformado, endurecido. Mas ali havia uma verdade: uma promessa não dita de lealdade, de sangue, de honra.
Ao lado da foto, havia uma arma. A mesma que seu pai carregava no dia em que foi morto. Danilo passou os dedos por ela, como quem toca uma cicatriz.
— Se você estiver certo, pai... amanhã tudo muda.
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Cecília se levantou ao ouvir o primeiro sinal da meia-noite. Colocou um moletom por cima do pijama e saiu silenciosa. O caminho até o mirante era escuro, mas ela não hesitou.
Porque, no fundo, sabia que o que ouviria ali não seria apenas a verdade de Danilo.
Seria o começo de algo irreversível.