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Cecília
Tá f**a, p***a. Eu não aguento mais essa vida de pobre. Não é que eu não goste da minha vida, sabe? Mas é f**a. A gente trabalha o mês todo pra receber R$ 1.518 e tem que se virar pra pagar tudo. Basta um dia e eu já não tenho mais um real no bolso. Me sinto uma verdadeira safada quando chega o quinto dia útil. Queria jogar tudo pro alto... Queria. Mas eu não posso me dar a esse luxo. E vocês sabem por quê? Porque eu tenho uma mãe viciada.
E eu sei que muita gente vai falar: “é só largar de mão, é só deixar ela viver a vida dela”. Mas eu não consigo. Porque ela é minha mãe. Depois que meu pai morreu, ela surtou. Começou a usar drogas. Começou pela maconha e, quando foi parar no crack, fodeu.
Ela começou a roubar tudo que tinha dentro de casa e eu entrei em desespero. Tudo que tinha valor, ela vendeu. E eu me enfiei numa escala seis por um, só pra gente não passar fome. Fico trabalhando aqui no shopping, algumas pessoas me olham com cara de cu e eu olho pra elas do mesmo jeito. Mas, quando elas chegam perto, eu dou um sorriso falso. Vendedora tem que passar por essas coisas, né?
Hoje é dia de pagamento e eu já sei que não vai sobrar nada. E ainda tenho que orar pra chegar em casa e minha mãe não ter vendido a casa. Não duvidem da capacidade de um viciado. Eles fazem essas coisas. Muita gente vai dizer: “Mas Cecília, por que você não interna essa maluca?” Já tentei. Tentei duas vezes. Mas ela consegue fugir. E eu, com 23 anos, vou fazer o quê? Eu oro. Oro pras coisas mudarem, pra dar tudo certo, pra minha mãe tomar vergonha na cara e querer se internar. Porque, daqui a pouco, não vai sobrar nada dentro daquela casa. Daqui a pouco, eu vou dormir num colchãozinho no chão. Não sei como ela ainda não vendeu minha cama.
Fico falando assim, mas a minha situação é trágica. Pelo menos hoje é dia de pagamento. E sextou. Claro que eu vou trabalhar sábado e domingo que nem uma cachorra. Vou. Porque trabalhador não tem um dia de paz. Não tem. Eles vão me dar uma folga na quinta-feira e ainda vão querer que eu fique rindo igual uma hiena nessa merda.
Jordana: Cecília, vem receber seu pagamento. Tá na hora de você sair. Eu vou te pagar na mão.
Cecília: Você sabe se as minhas comissões vieram nesse pagamento? Porque eu tô precisando receber um a mais, e eu vendi bastante esse mês. Bati várias metas.
Jordana: Vieram todas.
Ela me entregou um envelope e, quando eu conferi, quase caí pra trás.
Cecília: Como assim? Eu só recebi isso? Mil e novecentos reais? Depois de tudo que eu vendi? Depois de eu ter me matado que nem uma c****a pra bater todas as metas?
Jordana: Meu amor, quanto mais você ganha, mais o INSS te desconta. Pelo menos você recebeu R$ 1.900, princesa. Olhe pro céu e agradeça por ter um trabalho.
Cecília: Trabalho ? Não escravidão. — falei baixinho, cheia de ódio.
Jordana: Falou alguma coisa, querida? Acho que não entendi. Se quiser, pode falar mais alto.
Cecília: Eu falei que deu meu horário e que eu tô indo embora. Boas vendas.
Ela virou de costas e eu bem dei dedo pra ela. Eu sei que tô errada. Sei que tô errada. Mas essa vagabunda acha que, só porque é gerente, pode pisar em todo mundo. Ganha duzentos reais a mais e já fica com esse nariz em pé, como se fosse alguém na vida. Se o patrão tiver que dar um pé na b***a dela ou na minha, vai dar do mesmo jeito. Coitada. Mas deixa ela se iludir, porque uma hora a conta chega. E se for eu que vou cobrar, eu vou de chicote na mão. Porque é assim que eles tratam a gente: com um chicote invisível.
Saí do shopping e vim direto pro morro. Eu adoro morar na Rocinha. Aqui tem várias coisas, e graças a Deus eu não preciso sair do morro pra fazer compra nem nada do tipo, porque aqui dentro tem tudo. A única coisa que me estressa é o tráfico. Se eu pudesse, explodia todos eles. Ficam dando em cima de mim, mas eu nem dou confiança. Eu, hein. Agora tu vê: se eu tenho cara de ser alguma safada pra me matar de segunda a segunda, pra chegar em casa e pegar meu marido com outra? E eu ainda vou tomar na cara porque ele acha que eu não posso reclamar? Porra... Eu ia tacar fogo nele e nela.
Entrei em casa e estranhei. As poucas coisas que tinha estavam reviradas. Tomei um susto e comecei a gritar pela minha mãe, mas ninguém respondeu. Subi a escada. Não tinha ninguém. Olhei todos os quartos e, foi aí, que escutei a vizinha me chamar.
Marlene: Cecília, minha filha! Corre lá na boca porque os traficantes entraram na tua casa e levaram a tua mãe!
Cecília: O quê?! Por quê?!
Marlene: Não sei. Os moradores tentaram intervir, mas eles falaram que era ordem do chefe. Falaram que não tinha desenrolo, que iam matar ela.
Quando ela terminou de falar, eu saí correndo morro acima. Cheguei na boca e comecei a gritar feito uma desesperada. Os vapores começaram a me segurar, mas eu fiz o maior barraco.
— Cadê a minha mãe? A vizinha me falou que trouxeram ela pra cá! Me solta agora, p***a! Eu quero a minha mãe! — eu gritei, desesperada.
— Fica suave, porque a tua mãe vacilou pra c*****o nessa p***a, e ela vai ser cobrada pelo chefe.
Cecília: Cobrada por quê, c*****o? Agora vocês ficam esculachando o morador? Por que a minha mãe está sendo cobrada?
— Porque ela marolou. Seduziu um vapor e roubou as drogas dele. Quando o cara se deu conta da merda, ela já tinha usado a p***a do crack todo com os cracudos debaixo do viaduto. Agora ela morrer. Pô, derramou o amigo.
Cecília: Calma! Calma! Deixa eu falar com o chefe! Eu vou pagar a dívida dela, eu juro que vou pagar!