PRÓLOGO
7 anos atrás
Nancy Keller
Eu estou arrumando as malas com as mãos tremendo.
Não é nervosismo comum. É medo puro. Aquele que faz o estômago se contrair, que deixa o ar preso no peitö e a mente em alerta constante, como se a qualquer segundo algo horrível pudesse acontecer de novo.
Porque aconteceu.
E aconteceu de um jeito que nunca tinha acontecido antes.
Minha mãe está sentada na beira da cama, chorando em silêncio, com o corpo curvado para frente e os braços apertados contra o próprio tronco, como se estivesse tentando se proteger de algo invisível. Cada soluço dela parece ecoar dentro de mim. Tento não chorar também, porque alguém precisa manter a cabeça no lugar. Alguém precisa pensar.
E sou eu.
O quarto está um caos. Roupas espalhadas pelo chão, malas abertas, bolsas jogadas sem cuidado. Puxo camisetas, calças, casacos, qualquer coisa que pareça minimamente importante, e enfio tudo dentro das malas sem me importar com organização. Não existe tempo para dobrar. Não existe tempo para escolher. Existe apenas a necessidade de ir embora.
Agora.
— Mãe, por favor… — Falo baixo, mas firme. — A gente não pode ficar aqui. Eu preciso de ajuda com isso ou não vai dar certo.
Ela não responde. Apenas chora mais forte, levando a mão ao rosto machucado.
E quando eu olho para ela de verdade, quando deixo meus olhos percorrerem cada detalhe, sinto algo dentro de mim se romper de vez.
O olho dela está inchado, arroxeado. Um corte feio marca a testa, ainda avermelhado. Há marcas nos pulsos, no pescoço. E no braço… no braço tem um ferimento profundo, mäl coberto por um pano improvisado.
Isso nunca tinha chegado nesse ponto.
Meu pai sempre foi violento. Sempre foi instável. Sempre foi perigoso. Mas hoje… hoje ele cruzou uma linha que não tem volta. Hoje ele deixou tudo de rüim dele escapar por nada e ele feriu a minha mãe na maior covardia.
A cena volta à minha mente como um filme quebrado. O grito. O barulho seco. O corpo dela caindo. O sangue. O olhar vazio dele por alguns segundos, como se nem ele soubesse do que era capaz.
Engulo em seco e continuo colocando coisas na mala.
— A gente vai embora... já falamos disso, lembra? — Digo, mais para mim do que para ela. — Hoje.
Abro a bolsa grande que deixo escondida no fundo do armário e tiro de dentro um envelope grosso. Todo o dinheiro que juntei ao longo dos anos. Gorjetas do restaurante. Pagamentos pelas horas cuidando de crianças. Cada nota representa um sacrifício. Um turno extra. Um cansaço ignorado.
Tudo vai embora com a gente.
Eu sempre escolhi qual dos trabalhos eu poderia guardar um valor. Nunca gastei com bobagem, nunca me dei ao luxo de algo. E fiz bem! A necessidade chegou mais alto.
— Eu já comprei as passagens... — Falo, respirando fundo. — Pra mim, pra você e pra Geyse. Mãe... lembra da nossa conversa?
Minha mãe levanta os olhos, arregalados, cheios de medo.
— Alemanha? — Ela sussurra, a voz falhando.
— Sim. — Afirmo. — Bem longe daqui.
Canadá seria óbvio demais. Paris seria fácil demais. Itália também. Lugares previsíveis. Lugares onde ele procuraria primeiro.
A Alemanha não. É distante, fria, diferente. Um recomeço difícil, mas necessário. E claro, ele nem pensaria por causa do idioma.
— E se ele achar a gente? — Ela pergunta, a voz tremendo. — Q-quando ele chegar e não nos ver, ele vai...
Caminho até ela e seguro suas mãos com cuidado, ignorando a dor que deve estar ali.
— Ele não vai. Eu prometo. — Minto com convicção, porque ela precisa acreditar nisso agora. — A gente vai ficar longe. Longe dessa loucura. Longe dele.
A porta do quarto se abre de repente.
— O que está acontecendo?
É a Geyse.
Minha irmã está parada ali, de pijama, o cabelo bagunçado, o olhar confuso. Ela observa as malas, o estado da nossa mãe, meu desespero contido.
— Aconteceu de novo. — Digo, sem rodeios. — A gente vai embora. Agora.
O rosto dela empalidece.
— Agora?
— Agora. — Repito. — Sem perguntas. Por favor.
Ela me encara por alguns segundos, como se quisesse entender tudo de uma vez. Ela sabe da conversa que tivemos dias atrás e por isso, não faz mais perguntas. Depois, apenas concorda com a cabeça.
Geyse é jovem, mas não é boba. Ela já entendeu coisas demais cedo demais.
Sem dizer mais nada, entra no quarto e começa a pegar as próprias roupas. Dobrar, enfiar, fechar zíper. Rápido. Prático. Silencioso.
Enquanto isso, minha mente corre.
Preciso pedir demissão. Do restaurante. Das duas famílias para quem trabalho como babá. Não posso explicar nada. Não posso dar detalhes. Só sair.
Tudo isso passa pela minha cabeça enquanto coloco sapatos dentro de sacolas, documentos dentro da mochila, remédios, fotos antigas, algumas poucas lembranças que cabem naquele momento.
Vamos recomeçar do zero.
Do zero absoluto.
Mas isso é melhor do que ficar. Melhor do que esperar o dia em que talvez não haja mais tempo de fugir.
— Mãe, olha pra mim... — Peço, ajoelhando à frente dela. — Isso vai acabar hoje. Nunca mais ninguém vai encostar um dedo em você.
Ela chora, tremendo.
— Eu tenho medo, Nancy… — Dussurra. — Ele sempre encontra um jeito.
Seguro o rosto dela com cuidado.
— Não dessa vez. — Afirmo. — A gente vai estar longe. E eu não vou deixar nada acontecer com vocês. Nunca.
O tempo passa rápido demais e lento demais ao mesmo tempo. Temos que fazer tudo antes de ele voltar do trabalho e por isso a minha pressa e agora, vou resolver as questões dos meus trabalhos.
{ . . . }
Quando tudo está finalmente pronto, ligo para um táxi. Não fazemos pausas. Não ligamos para ninguém. Não avisamos ninguém.
Descemos as escadas com as malas pesadas, o coração acelerado, olhando para os lados como se ele pudesse aparecer a qualquer momento.
Entramos no carro.
— Aeroporto. — Digo ao motorista, firme. — Direto. Sem paradas.
O carro começa a andar.
Encosto a cabeça no banco e fecho os olhos por um segundo. Minha mãe segura minha mão de um lado. Geyse segura do outro.
E, em silêncio, faço um pedido.
Que dessa vez seja diferente.
Que a gente consiga viver.
Que a Alemanha não seja só um destino, mas um refúgio.
Que o medo fique para trás.