Aurora Mancini
Na máfia, os jantares não são apenas refeições.
São ensaios para a guerra.
As taças de cristal podem brilhar como alianças, mas os olhos por trás delas são frios como a lâmina de uma faca prestes a cortar.
Quando fui avisada que naquela noite haveria um jantar formal com aliados da família Vitale, senti meu estômago se retorcer.
Não por medo.
Mas porque eu sabia o que significava estar à mesa com monstros.
E ser a única mulher ali sem uma arma visível.
Fui preparada como um cordeiro vestido para o abate.
A camareira, Sofia, trouxe um vestido escuro, justo, com decote profundo e tecido que escorria como vinho. Me olhei no espelho.
Meus ombros estavam nus.
Meu cabelo, preso num coque baixo.
Parecia elegante, quase... perigosa.
E talvez fosse isso o que Salvatore queria.
— Ele pediu que você estivesse impecável — ela disse, enquanto ajustava o colar em meu pescoço. — Não deve falar muito. Apenas sorrir quando for preciso.
Assenti, mesmo sabendo que não obedeceria por completo.
Fui levada por um corredor estreito, silencioso como um confessionário.
Os passos da camareira eram rápidos e sem alma.
Ao final, as portas do salão principal se abriram.
E lá estavam eles.
Salvatore de pé, ao centro, impecável num terno preto com camisa branca e abotoaduras douradas. Os olhos escuros se voltaram para mim assim que entrei.
E por um breve segundo, senti sua respiração na minha pele — mesmo a vários metros de distância.
Homens mais velhos e outros mais jovens estavam sentados ou em pé, rindo, conversando, fumando charutos.
Entre eles, reconheci Don Silvestri, o chefe da segurança, e Luca Moretti, o conselheiro.
Outros rostos eu não conhecia, mas senti o cheiro da violência impregnada em suas mãos.
Salvatore veio até mim.
Seus dedos tocaram levemente minhas costas nuas.
— Sente-se ao meu lado — disse em voz baixa. — Não fale a menos que eu permita.
Seu tom era calmo. Mas havia algo nele… uma ponta de expectativa. Como se ele estivesse me testando.
O jantar começou com vinho e silêncios calculados.
As conversas eram cortadas por olhares e pequenos sorrisos que não alcançavam os olhos.
Falam de negócios, territórios, armas, rotas protegidas pela polícia corrupta.
— A alfândega de Palermo está mais flexível agora — disse um dos convidados, girando a taça com a elegância de quem está acostumado a negociar vidas. — As caixas chegam limpas, sem olhares curiosos.
— Por enquanto — respondeu Salvatore. — Mas isso pode mudar.
Eu ouvia tudo, como uma sombra viva entre eles.
Me sentia um enfeite... mas também um alvo.
Era como estar no meio de lobos, usando perfume de cordeiro.
Foi então que um dos homens — um dos poucos que não conhecia — se dirigiu a mim.
Era jovem, arrogante, com olhos que queimavam como gasolina prestes a pegar fogo.
— E a nossa convidada silenciosa? — ele perguntou, inclinando o corpo na direção da mesa. — Filha do traidor Mancini, não é?
O salão ficou em silêncio.
Todos esperavam para ver o que eu faria.
Salvatore não disse nada. Apenas me observava.
Seus olhos eram lâminas embainhadas.
Eu podia sentir o peso da tensão se acumulando nas costas da minha nuca.
Eu podia abaixar os olhos.
Fingir humildade.
Mas fiz o contrário.
— Meu pai cometeu um erro — disse, mantendo a voz firme. — Mas pelo menos ele morreu como um homem. Não como um rato sorrateiro que provoca mulheres para se sentir importante.
O ar saiu do salão como se alguém tivesse aberto um buraco no chão.
Alguns seguraram a respiração.
Outros sorriram — de nervoso, ou de admiração.
O homem se levantou devagar.
Seus punhos cerrados.
O rosto, vermelho.
— Você se esquece de onde está, ragazza — ele rosnou. — Aqui, palavras têm preço. E você é só um corpo mantido vivo por capricho.
Eu me levantei também.
Lenta. Desafiadora.
Senti meu coração batendo tão alto que quase cobria os sons ao redor.
— E você se esquece de quem me mantém viva.
Apontei o queixo levemente em direção a Salvatore, sem tirar os olhos do homem.
E foi nesse momento que ele falou.
— Basta.
Sua voz cortou o ambiente como um trovão.
Todos se calaram.
Salvatore se aproximou de mim.
Olhou diretamente para o homem, com um sorriso frio.
— Sente-se, Enzo. Você está testando minha paciência... e a inteligência da minha convidada.
Enzo hesitou. Depois recuou. Sentou-se como um cão domesticado.
Salvatore, então, virou-se para mim.
Colocou uma mecha do meu cabelo atrás da orelha com gesto delicado — mas havia algo feroz em seus olhos.
— Você está jogando um jogo perigoso, Aurora.
— Eu aprendi com o melhor — respondi, baixinho.
E ele sorriu.
Não de divertimento.
Mas como quem acabou de encontrar algo que não esperava.
Algo precioso.
Ou perigoso demais para se ignorar.
O jantar continuou, mas o clima estava diferente.
Agora, todos sabiam: a filha do traidor não era submissa.
E Salvatore... havia a defendido diante de todos.
Aquilo não passaria despercebido.
E eu também sabia que tinha cruzado uma linha.
Mas parte de mim... gostou disso.
***
Mais tarde, já sozinha no quarto, ainda com o vestido colado ao corpo e os pensamentos acelerados, ouvi passos se aproximando do corredor.
A porta se abriu sem bater.
Era ele.
Salvatore entrou com a calma de um predador que sabe que não precisa correr para alcançar a presa.
— Você podia ter morrido hoje — disse, sem rodeios. — Enzo teria te matado com um olhar, se eu deixasse.
— Mas você não deixou.
— Ainda não decidi se foi estupidez... ou coragem.
Fiquei em silêncio.
Ele se aproximou, parando a centímetros de mim.
— Por que fez aquilo? — sussurrou. — Sabia que podia provocar uma guerra?
— Talvez eu quisesse ver quem realmente me protegeria — respondi, encarando-o.
O silêncio entre nós era eletrizante.
Carregado de tensão.
De algo que se construía devagar, como uma tormenta prestes a cair.
— Não se engane — ele murmurou, encostando a mão no meu queixo. — Eu não protegi você. Eu protegi meu nome.
— Mas eu sou parte dele agora, não sou?
Essa pergunta ficou no ar, pulsando como veneno.
E pela primeira vez, vi Salvatore perder por um segundo seu controle.
Seus olhos se tornaram chamas.
Seu peito subia e descia mais rápido.
Ele se virou, indo em direção à porta.
Antes de sair, falou por sobre o ombro:
— A partir de agora, você vai estar em todos os jantares.
— Como prisioneira?
— Como parte da família.
E então saiu, deixando o perfume de poder, de violência e de algo mais.
Algo que começava a crescer entre nós como uma flor em terreno amaldiçoado.
Naquela noite, deitei-me com o vestido ainda no corpo, o corpo quente, o coração confuso.
Sabia que o jogo tinha mudado.
Eu não era mais apenas a prisioneira de luxo.
Eu era uma peça viva no tabuleiro da máfia.
E o capo, o homem que todos temiam, havia me colocado ao seu lado.
Agora, eu só precisava descobrir se isso era proteção…
Ou o começo de uma nova prisão.