Aurora Mancini
A máfia não é um conto de gângsteres charmosos e ternos bem cortados.
É uma engrenagem feita de ossos.
É o som abafado de um tiro disparado entre as costelas da lealdade.
É a ausência da verdade.
E a presença do medo.
Nos primeiros dias, eu não entendia muito.
Era apenas a filha de um traidor, jogada como uma peça inútil no tabuleiro sujo da Cosa Nostra.
Mas eu ouvia. Observava. E aprendi.
A mansão Vitale era mais do que a casa de um homem poderoso. Era o coração de uma organização com raízes profundas como o solo da Sicília. Tudo ali era planejado, até o silêncio. Os seguranças não eram apenas brutamontes pagos para me impedir de fugir — eles eram soldados de uma estrutura muito maior, homens que juraram fidelidade a Salvatore com sangue e ferro.
Na máfia, existem regras não escritas.
Regra número um: Nunca traia a família.
Foi a que meu pai quebrou. Ele desviou dinheiro de operações que nem mesmo eu sabia que existiam. Achava que conseguiria escapar com notas manchadas e promessas vazias. Esqueceu que a máfia tem olhos em todos os lugares. E que promessas quebradas não são esquecidas.
Regra número dois: Mulheres e crianças são poupadas... até que deixem de ser úteis.
Essa é uma mentira reconfortante. Um teatro para os fracos.
Eu sou a prova.
Fui poupada, sim. Mas não por compaixão.
Por conveniência.
Regra número três: O silêncio é a única língua segura.
Ninguém fala. Não se pergunta. Não se explica.
Aqueles que sabem demais, morrem cedo.
Os que fingem não ver, sobrevivem.
***
Certa manhã, por volta das dez, ouvi o som abafado de vozes em italiano vindo do andar térreo.
Reconheci o tom seco de Salvatore.
Ele não gritava. Nunca. Seu poder estava no controle, na calma antes da carnificina. E naquela voz serena havia algo mais forte que qualquer ameaça: a certeza de que ele podia acabar com você sem sujar as próprias mãos.
Me aproximei da escada, escutando com o coração na garganta.
— Don Vitale, il carico è stato bloccato nel porto di Napoli. I Greco hanno messo le mani dentro.
(O carregamento foi bloqueado no porto de Nápoles. Os Greco se meteram no meio.)
Houve silêncio.
Salvatore respondeu com algo que não consegui ouvir.
Mas a tensão no ar era quase física.
Os Greco.
A primeira vez que ouvi esse nome, ainda era criança.
Família do sul. Orgulhosos. Imprevisíveis. Tinham fama de jogar sujo mesmo entre criminosos. Eram, de certa forma, uma anomalia dentro da velha guarda da máfia — mais agressivos, mais impulsivos. E por isso, perigosos.
Durante décadas, a paz entre os Vitale e os Greco foi mantida com cuidado, como porcelana antiga.
Mas agora, parecia que alguém havia deixado cair essa porcelana no chão.
Depois daquele encontro, vi os homens da casa se moverem como um enxame. Armamento sendo carregado. Carros blindados prontos. Ordens secas trocadas em voz baixa.
E eu percebi que algo havia mudado.
Foi nesse mesmo dia que Don Ernesto apareceu.
O pai de Salvatore. Um dos últimos capos vivos da velha geração. Ele era o fantasma que muitos achavam enterrado, mas que ainda puxava os fios de longe.
Quando o vi entrando no salão, ladeado por dois guarda-costas que mais pareciam executores de sentença, entendi por que Salvatore era daquele jeito.
Don Ernesto tinha o olhar de alguém que já enterrou amigos com as próprias mãos.
Ele me observou como se estivesse calculando meu valor. Um rei antigo diante de uma oferenda sacrificada.
Mas ao contrário de Salvatore, ele não sorriu. Nem falou comigo.
— Essa é a filha do verme Mancini? — disse, em voz alta, para que todos ouvissem.
Senti a náusea subir.
Mas não abaixei os olhos.
E isso, aparentemente, o irritou.
— Tem olhos de loba — comentou, cuspindo a palavra com desdém. — Cuidado com ela, Salvatore. Lobas mordem quando encurraladas.
— Eu gosto de presas afiadas — respondeu Salvatore com tranquilidade. — São mais difíceis de domar. Mais interessantes.
Don Ernesto riu, mas havia veneno naquela risada.
— Acha que está pronto pra guerra?
— Estou sempre pronto, padre.
— Então se prepare. Os Greco não mandam recado. Eles matam.
— Eu também.
Foi a primeira vez que vi Salvatore confrontar o próprio pai.
E foi ali que entendi que, apesar de jovem, ele não era apenas o herdeiro.
Era o Capo por mérito.
Porque ninguém ali ousava contestá-lo.
Nem mesmo o homem que o criou.
Naquela noite, recebi a visita de alguém inesperado.
O conselheiro.
Luca Moretti.
Um homem de meia-idade, elegante, cabelos grisalhos e olhos atentos. Ele não era soldado. Não era executor. Era o cérebro jurídico e estratégico por trás da família Vitale. Um advogado criminalista com sangue frio e sorriso discreto. Falava como um diplomata, mas eu vi o que havia por trás daquelas palavras doces: ele era tão perigoso quanto qualquer homem armado ali.
— Signorina Aurora — disse, entrando no quarto sem pedir permissão. — Salvatore pediu que eu lhe explicasse algumas coisas.
— Como meu funeral?
Ele sorriu, paciente.
— Não. Suas opções.
Me sentei na ponta da cama. Estava descalça, de camisola preta. Não me importei. Ele não parecia interessado em nada além de seus próprios jogos mentais.
— Você está em território sagrado. A mansão Vitale é onde se decide o futuro de muitos. Aqui, até o silêncio tem olhos. Então entenda bem: cada gesto seu, cada palavra, cada olhar… está sendo avaliado.
— Por quem?
— Por todos.
Ele caminhou até a estante e pegou um livro. Virou as páginas como se procurasse algo. Mas aquilo era apenas uma pausa calculada.
— Sua presença aqui tem um propósito. Você não é apenas punição. Pode se tornar peça. Pode ter poder.
— E o que eu preciso fazer?
Ele fechou o livro, olhou para mim por cima dos óculos e respondeu com calma:
— Você precisa sobreviver. E, se for esperta... aprender as regras.
***
Passei as semanas seguintes ouvindo.
Aprendendo.
Os aliados de Salvatore eram poucos, mas leais:
– Marco Silvestri, o chefe da segurança. Ex-militar, com cicatrizes que falavam mais do que ele. Seu olhar era como o de um cão treinado para matar.
– Giulia Romano, uma mulher de negócios, elegante e afiada. Responsável pelas operações de fachada da máfia — restaurantes, cassinos, investimentos. Todos lavando dinheiro sujo com cheiro de perfume caro.
– Luca, claro, o conselheiro. Sempre nos bastidores, manipulando leis como um maestro.
E os inimigos, ah... esses se multiplicavam como ratos.
– A família Greco, agora oficialmente em conflito.
– Os Rinaldi, uma célula rebelde no norte, que fingia lealdade enquanto costurava alianças secretas.
– A polícia antifraude, cada vez mais próxima de derrubar uma das redes de lavagem.
– E dentro da própria casa... os ambiciosos. Os que olham para o trono do Capo com fome.
O mundo ao redor de Salvatore era um campo minado.
E eu?
Eu era uma bomba-relógio dentro da casa.
Ele sabia disso.
E parecia gostar do perigo.
Nos corredores, nossos olhos se cruzavam.
Ele testava meus limites.
E eu testava os dele.
Eu não gritava mais.
Não chorava.
Eu observava.
E percebia que ele também me observava — com mais intensidade a cada dia.
Salvatore me desejava.
Mas não de forma comum.
Ele queria me quebrar por dentro. Queria que eu cedesse... sem nunca pedir.
E é por isso que, todas as noites, eu fechava a porta do quarto com força.
Só pra ele ouvir.
Só pra mostrar que, por dentro, ainda havia fogo.
E ele sorria.
Lá fora.
Como se cada desafio fosse uma dança.
Como se eu estivesse deixando de ser uma prisioneira...
E começando a virar parte do jogo.