Capítulo I - 03 doses de honestidade

1503 Words
Ser atendente em uma padaria movimentada tem lá suas vantagens. Por mais que eu esteja trabalhando aqui há mais de quatro anos e ainda não saiba acordar cedo todas as manhãs, aprendi bem rápido como lidar com o humor humano. Há aqueles que acordam, se levantam e vão comprar pão achando que ainda estão na cama. Tem também os que xingam sobre política e governo, enquanto leem o jornal local e tomam café preto sentados nas cadeiras espalhadas pela calçada. Havia aqueles que nos vê como confidentes, na mesma medida que poderiam nos ver como escravos também. Mas a melhor parte era a interação entre pessoas. — Helena? Me virei para ver Sara se aproximando de mim. Estava na hora de sair e, como de costume, eu me negava sair do trabalho com o uniforme da empresa. Então sempre levava uma muda de roupa na bolsa e ia para o banheiro me trocar, por isso, por já ter estipulado uma rotina, era estranho ela vir até mim enquanto eu amarrava meu tênis preto de R$30,00. Sabemos que não é de marca, muito menos original, mas fazer o que se a grana tá curta? Ao menos tenho estilo! — Aconteceu alguma coisa? — Fiquei de pé para tentar olhar em seus olhos. Difícil, mas a gente tenta mesmo assim. — Tessa está sentada lá fora, acho que ela quer falar sobre o casamento. — Que coisa chata! Sara colocou as mãos na cintura e me olhou séria enquanto eu colocava o banquinho no lugar, lugar este que fica no canto entre o banheiro e a parede. — Você não parece animada com o casamento da sua melhor amiga. Respirei fundo e tentei, com muita dificuldade, ignorar a ironia nas duas últimas palavras. — É que… Como posso dizer isso… — Me virei para olhar para ela e sorri sem graça enquanto enfiava as mãos nos bolsos traseiros do jeans. — Eu não gosto dele. — Por quê? — Ele é um i****a, traíra e muito mandão. — Traíra? — Durante os dois anos de namoro, ele traiu ela quatro vezes. Isso só o que sabemos. Ele diz que mudou, etc, mas eu sei como ele olha para a minha b***a quando pensa que não estou vendo. Além disso, advinha quem teve que consolar ela todas as vezes? Euzinha aqui. — Uau! Mas a escolha é dela, certo? Então, mesmo que a gente não aprove, guarde sua língua afiada para você. — Ah claro, está guardada, mas quando ela vier chorando de novo, eu serei a primeira a dizer um gordo e sonoro: eu te avisei! Sara riu e se virou para a confeitaria. Aproveitei a deixa, peguei minha mochila pequena (da Boo de Montros S.A, mas quem está reparando?), a joguei nas costas e passei pela porta da frente. Era uma porta larga de madeira que divisava a área de produção e depósito da loja em si. Dei a volta pelo balcão enquanto acenava para as garotas e seguia meu caminho para as calçadas. Lá ficavam mesas redondas de ferro pintadas de preto com cadeiras da mesma cor e acolchoadas. Vi Tessa no primeiro minuto. De costa para mim, ela era a imagem de uma modelo internacional, isso porque era esse o seu trabalho mesmo. Alta, loira com cabelos sedosos cortados em um channel incrível. Esguia e… Modelo. — Ei Tessa, cheguei. Ela colocou a xícara com seu expresso na mesa e sorriu para mim. Me sentei ao seu lado e coloquei a mochila em um canto. Não pude deixar de notar que ela estava abatida, embora estivesse com um sorriso brilhante. Dentes perfeitos… Eu precisava parar de cismar com os dentes dos outros, afinal, usava aparelho por uma razão. — Você demorou, sabia? — Desculpe, eu estava me trocando. — Tanto faz, tenho algo para te pedir. — Ela bateu palmas enquanto se ajustava em seu lugar na cadeira, seus olhos verdes me olharam com um brilho preocupante de quem estava aprontando algo. — Você sabe, como minha madrinha, tem que fazer o que eu quiser. — Claro! Contanto que não envolva assaltos, assassinatos, prostituição… — Ok, ok. Já entendi. Mas não se preocupe, é algo bem mais sutil do que isso. Sabe quando você sente aquela energia negativa que tenta, inutilmente, te dizer que isso é uma cilada? Agora eu questiono, porque cargas d'água a gente ignora essa benção de Deus? O mundo seria muito mais decente se aprendêssemos a ouvir melhor nosso instinto de sobrevivência. — Ok então. Vamos fazer o quê? Vamos dançar Beyonce no lugar da valsa? Aviso logo, se for para bancar a diva, você precisa aprender a mexer os quadris. Ela pisca confusa, emudece e, subitamente, lança sua dúvida em um sopro. — Mas o que é que você anda comendo no café da manhã? — Honestamente? Saio atrasada todos os dias. — Eu acho que é melhor eu não perguntar que tipo de dança é esse tal de beyonce… — Que sacrilégio! Não que ouça todos os seus sucessos, mas, ainda assim… — Quero te pedir um favor. Quero que dê em cima do George. As pessoas dizem que sou louca varrida, doidinha de pedra, fugitiva de sanatória… Mas vejam só!, achei alguém pior do que eu. — Você com certeza bateu a cabeça na privada. — Já falei como adoro sua capacidade de falar tudo o que pensa? — E lá vem suas ironias mais uma vez… Ah como adoro esses santos fingidos. — É claro! Sou três doses de honestidade e uma de mentira. — Então você mente?! — Às vezes preciso encarar os fatos e ceder a felicidade para alguém. — Que poético, nem parece você. — Antes que eu pudesse responder, ela ergueu a palma da mão na minha frente para me parar. Respirou fundo e diminuiu o volume da voz. — Eu sei que estou te pedindo demais, mas preciso ter certeza de que ele não vai me trair depois de casados. Ah, que tentação de me levantar e deixá-la falando sozinha. — Querida, se toca! Se ele te traiu quatro vezes, repito para o caso de não ter entendido, quatro vezes durante um namoro, casamento não significará nada para ele. — Len, as pessoas mudam. — Não me chama assim quando está me oferecendo como oferenda ao deuses oceânicos. — É sério, você precisa parar de ler essas coisas… — Tessa, estou falando sério. Esse teste está fadado a dar errado antes mesmo de começar, e sabe por quê? Ele é um filho da p**a sem motivos, quem dirá com! — Helena, por favor. Eu realmente o amo e acredito que ele mudou, mas… — Sem mais! Para começo de conversa, se acreditasse mesmo nisso, não me pediria para testar a santidade do São George. — Mas que droga! Você é minha melhor amiga, se eu não pedir para você, para quem vou pedir? Eu poderia continuar dissertando toda a discussão, mas me limito a dizer que sim, sou louca mesmo. Caso contrário, quem em sã consciência aceitaria uma armadilha dessa? Mas não… A gente pede para sofrer, depois questiona como chegamos no fundo do poço. Aliás, eu e Samara já viramos irmãs e, depois de tantas visitas que lhe fiz, já sei tudo sobre seu passado, além de sua lista futura. Por isso, pulemos para 1h depois do início da “conversa”. — Ok, e o que eu ganho com isso? Eu digo. Nada — respondi com secura, mas aí ela sabe como mexer com meus sentimentos, basta ter aqueles olhos verdes prontos para chorar. — Ah, por favor, Tessa! Tem que concordar comigo, é um absurdo! — Eu te dou R$10.000,00 quando terminar. — Hen?! — Isso mesmo. Se você conseguir provar que ele é mesmo… um traidor… então você ganha. Mas se até a hora do casamento ele não ceder aos seus encantos, então eu ganho. — Não confio que eu perca, mas também não sou burra de aceitar participar de algo que não tenho o pagamento. — Então, se você perder, vai fazer o que eu quiser por um mês. Ai, que dor no peito. — Eu ainda acho que… — Vamos começar no retiro do casamento. Você terá sete dias para trabalhar nisso. — Espera… Mas a megera já estava de pé com a bolsa nos ombros, repondo seus óculos escuros no rosto e sorrindo para mim. — Te vejo no sábado. E então, antes que eu pudesse fazer qualquer outra coisa, ela se foi. Corrigi minha posição na cadeira e respirei fundo. A sensação é que um trator estava parado diante de mim com o motor ligado. — Parabéns, Helena — Olhei para frente e vi Sara de braços cruzados e apoiada na parede. — É isso que dá não ouvir meus conselhos. E, antes que eu me esqueça, eu-a-vi-sei. A outra megera saiu rindo, salivando veneno. E o trator? Já estava me esmagando, é claro.
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