Não respondeu. Se é que aquilo tinha resposta. Pensou no rapaz que achava ter ficado no Texas. Em situações como aquelas, Noah sempre dizia a mesma coisa.
— Vírus m*l escrito só serve pra fazer barulho e envergonhar quem criou. Ignora.
Quase sempre ele falava isso por causa das piadas idiotas das garotas do condomínio. Com os caras era diferente. Ela nem desconfiava. Mas jogar futebol americano tinha suas vantagens. Ele amava a oportunidade de fazer cada um dos idiotas que zoavam com ela sangrarem. E Noah era bom nisso.
Sem brigas. Sem chamar atenção. Só um jogo.
Mas foi sobre ignorar que ela pensou naquele dia. Quase ouviu a voz dele dizendo a frase. Fechou os olhos. Quando ele dizia aquilo, era com a boca no ouvido dela. E logo depois descia os beijos do jeito que a deixava sem chão.
O problema é que bêbado entende sorriso e gesto com uma superficialidade que beira a burrice. O brasileiro puxou ela pelo braço. Anne mexeu o ombro, desconfortável com o contato. Ele desceu a mão até a coxa dela.
Um segundo. Não mais que isso.
Tank surgiu na frente deles como um fantasma.
Homens da máfia não são bonitos. Não mesmo. E o marido da Dállia era pior. As veias do pescoço saltadas, o rosto cheio de cicatrizes m*l fechadas. Um olho esbranquiçado, morto. Ele causava medo só por existir. Sentou ao lado dela. O playboy fugiu tropeçando na areia. Nem precisou ouvir uma palavra.
Ela sabia da fama do noivo da Dállia. Achou que ia ouvir alguma piada sem sentido. Continuou olhando o mar.
— Precisa me dizer se quer arrumar um namorado ou vou continuar melando as suas férias.
Talvez ele tenha falado outras coisas antes, mas ela não ouviu. A mente era sempre tão barulhenta. Mas aquela palavra ficou. Namorado. E tudo o que ela conseguiu pensar foi num beijo roubado. Um selinho rápido. Uma bobagem. Mas ainda achava bonito.
Eram crianças. Estavam conversando sobre os pais dele.
— Que nojo. Ele coloca a língua dentro da boca da minha mãe. O dia inteiro.
— Eles são casados, Noah. Minha mãe disse que beijo na boca é um jeito de dizer que ama a pessoa.
O garoto foi rápido. Deu um beijinho nos lábios dela. Saiu correndo. Não disse mais nada. Anne ficou ali, parada. Em choque. O coração tão acelerado que chegou a doer.
Ele só se explicou no dia seguinte.
— Ué. Você disse que era assim. E eu amo você, Anne.
Ela acreditou que ele não tinha entendido.
— Não. Só amor de namorado tem beijo na boca.
— Então agora você é minha namorada.
Anne não lembrava como a conversa terminou. Só sabia que muito tempo depois eles se beijaram de verdade. Mas quando Tank falou aquilo, tudo o que conseguiu pensar foi o quanto precisava falar com Noah.
— Um telefone. Eu quero um telefone. Por favor, me empresta seu celular.
Tank disse alguma coisa. Ela não ouviu. Correu pro quarto. Ligou. Uma, duas, dez vezes. Ele não atendeu. Pela primeira vez. Não atendeu.
Sabia que havia motivo.
Achou que ele tava com raiva. E talvez estivesse. Ela nunca conversava com ele na frente de ninguém. Nunca explicou por quê. E ele acreditava que ela não gostava dele. Não do jeito que ele queria.
Na cama se davam bem. Isso ele sabia. Acreditava que era só isso.
Mas se Anne soubesse dizer tudo o que guardava, se conseguisse colocar pra fora tudo o que prendia no peito... Gritaria tão alto que até no Texas ele ouviria.
Diria que só se sentia bonita com ele. Que quando se via pelos olhos dele, tudo ficava perfeito.
Sentou. Mandou uma mensagem.
Noah, eu pensei em te dizer isso de mil jeitos diferentes, mas nenhum parece certo. Então vai assim mesmo. Eu não me casei com o Rafael, mas eu me casaria. O que tenho com você, posso ter com qualquer um. Não importa, entende? A gente precisa parar. O que tivemos foi bonito, foi leve, foi nosso. Mas foi coisa de criança. De um tempo em que brincar de amor parecia suficiente. Já passou da hora de crescer.
Você merece mais do que jogos. Mais do que encontros às escondidas. Mais do que alguém que gosta só do que você oferece.
Vai viver de verdade. Encontra alguém que te queira inteiro. Que saiba corresponder. Que não fuja da sua parte mais bonita.
Eu nunca fui essa pessoa. E sempre deixei isso bem claro. Não pode me culpar.
Cuida de você.
E esquece de mim.
Terminou a mensagem com a certeza de que nunca tinha mentido tanto de uma só vez. Mas queria aproveitar a raiva que achava que ele estava sentindo. Queria afastar. Era o certo.
Ela não podia amar. Ou melhor. Não podia se deixar amar.
As consequências seriam horríveis.
Não sabia o que a fazia tão diferente. Nem por que todos na família eram daquele jeito. Mas cresceu sendo a piada favorita da escola. Viu o tio quase se matar. Os irmãos eram estranhos. Igual a ela. A diferença é que ela nasceu mulher.
Endi, o mais velho, subia no telhado toda noite pra ficar olhando uma casa ao longe. No fim, se casou com a menina que ele praticamente perseguiu.
Théo, ao contrário, não saía do quarto pra nada. Usou fraldas até os nove anos. Só parou quando os pais construíram um banheiro dentro do quarto. Ele era visto como um gênio, e realmente era. Ainda assim, o mínimo que poderia dizer era que Théo fosse exótico.
Passava álcool nas mãos o tempo inteiro, tinha mania de organização, o quarto parecia um espaço sagrado.
E ninguém falava nada sobre isso.
Já ela aprendeu a ler sozinha aos três anos. Mas escrevia as letras espelhadas. Reprovou na pré-escola. Tinha problema de equilíbrio. Os pais obrigavam a ir pra escola com uma bota ortopédica e uma joelheira por cima da calça. Tentava ser invisível. Mas aquilo chamava tanta atenção quanto os tombos dela. Ficou pior quando Sombra comprou um protetor para o queixo.
Era ridículo!
Noah não se importava.
Mas queria coisas que ela não podia oferecer.
Namoro. Casamento. Filhos.
Coisas que não cabiam no mundo dela.
Havia decidido isso há muito tempo, não geraria uma criança com o sangue contaminado dela, quebraria aquele ciclo mesmo que precisasse se quebrar no processo.
Além disso, mesmo que ele concordasse com aquilo, o que não concordava, ainda existia o fato de que Noah se tornaria uma piada dentro da máfia.
Ela sabia o quanto ele chamava atenção das meninas, já tinha visto desde meninas até mulheres maduras se renderem a beleza do rapaz.
Era a decisão certa! Achava que sim.
Preparou a mala, deixou uma carta para os pais e decidiu que precisava aproveitar aquela oportunidade. Talvez no Brasil, longe de todos que conheciam suas esquisitices, ela conseguisse se encontrar.
E quem sabe, talvez, se o futuro lhe reservasse alguma chance, com os pés firmes, ela e Noah também pudessem ter um reencontro.