LUCY
Se tem uma coisa que me tira do sério é barulho fora de hora. Principalmente quando vem do andar de cima.
Olhei pro relógio: 23h47. E lá estava de novo... o choro. Alto. Desesperado. Constante.
— Ah, não! De novo não... — resmunguei, jogando o travesseiro na cara, tentando ignorar.
Mas quem disse que dava? Eu já tava no meu limite. Levantei da cama, enfiei o pé no chinelo, ajeitei meu pijama da Barbie — aquele mesmo, todo rosa, cheio de corações, que eu só uso quando tô de mau humor — e saí bufando.
— Hoje eu vou lá! Vai ter barraco, sim! — falei pra mim mesma, subindo os degraus como quem sobe pra guerra.
Bati na porta sem dó, três vezes, forte.
— TUM-TUM-TUM!
— Ô, vizinho! — gritei, cruzando os braços. — Dá pra controlar esse bebê, pelo amor de Deus? Tem gente querendo dormir aqui!
A porta abriu meio trêmula, e o cara... bom, ele parecia um zumbi. Olheira funda, cabelo bagunçado, roupa toda amassada. E o bebê... meu Deus... o bebê tava no chão, jogado em cima de um tapetinho, se debatendo, chorando tão forte que m*l respirava.
Na mesma hora, meu peito apertou.
O cara tentou falar alguma coisa, mas eu nem deixei.
Entrei no apartamento sem ser convidada, joguei o cabelo pro lado, ajoelhei no chão e, de forma totalmente automática, comecei a fazer um shhh... shhh... shhh... bem suave, perto do ouvido do menino.
Pra minha surpresa — e pra surpresa do próprio pai, eu acho — o bebê parou de chorar por uns segundos. Me olhou. Um olhar perdido, assustado, mas atento.
Continuei. Sem falar nada, só no chiado. Movendo a mão devagar na frente dos olhos dele, como quem tenta capturar a atenção.
— Assim... olha pra mim... respira... tá tudo bem, tá? Tá tudo bem... — falei, mas com a voz bem baixinha, quase um sussurro.
O silêncio que se fez ali... parecia um milagre.
Por alguns segundos, parecia que o mundo inteiro parou.
Foi aí que percebi: não era só birra, nem manha, nem “criança mimada” como eu tinha pensado lá de baixo.
Era algo mais. Bem mais.
E naquele momento, eu soube: minha vida acabava de se cruzar com a desse bebê... e, querendo ou não, com a do pai dele também.
O bebê começou a acalmar, ainda soluçando de vez em quando, mas bem menos desesperado do que antes.
Eu respirei fundo e olhei pro cara. Ele tava parado, de braços cruzados, encostado na parede, me olhando como se eu fosse um ET que tinha acabado de pousar na sala dele.
— Tá olhando o quê? — perguntei, arqueando uma sobrancelha. — Vai ficar aí plantado ou vai me dizer o que tá acontecendo?
Ele piscou algumas vezes, meio perdido.
— Eu... é... eu não sei. Na verdade, eu...
— Tá, respira aí, paizão. Primeiro, deixa eu me apresentar, porque bater na porta dos outros pra brigar e depois se enfiar na casa deles sem ser convidada não é muito educado. — Limpei as mãos na calça do pijama e estendi pra ele. — Lucy. Moro no 202, aqui embaixo. A vizinha que você provavelmente acha chata agora.
Ele olhou pra minha mão, meio sem entender, depois apertou, meio desconcertado.
— Jayme... É... Eu sou o... pai do Arthur.
Meu olhar se suavizou. Voltei a olhar pro pequeno, que agora tava sentado no tapetinho, com o rostinho todo vermelhinho, respirando pesado, mas finalmente calmo.
— E você... é o Arthur. — sorri, ajeitando o cabelo atrás da orelha. — Você deu um trabalhinho hoje, hein, garotinho?
O Jayme se abaixou, sentou no chão ao meu lado, passando a mão no rosto como quem tenta afastar o cansaço.
— Me desculpa pelo... — ele fez um gesto com a mão, apontando pro teto, como se quisesse dizer barulho, gritaria, caos, apocalipse e afins. — Eu juro que tô tentando.
Suspirei.
— Olha... eu subi pronta pra te xingar, tá? Pra falar umas boas. Mas... quando eu vi... — olhei pro Arthur, que agora apertava uma almofada contra o rosto, — percebi que não é só um bebê chorando. Tem mais coisa aí, né?
Ele assentiu, passando a mão no cabelo.
— É... ele... tá em avaliação... talvez seja TEA... autismo. A psicóloga tá acompanhando. E... às vezes ele tem essas crises. E eu não sei... eu simplesmente não sei o que fazer.
Fiquei em silêncio por alguns segundos. Senti meu peito apertar.
— Bom... eu também não sou especialista em nada. Mas, sei lá, talvez eu possa ajudar de vez em quando. Nem que seja pra fazer um shhh... — sorri, meio sem graça. — Pelo menos até você descobrir como acalmar ele.
Ele me olhou, surpreso.
— Sério?
— É. Sério. — Dei de ombros. — Mas, olha... da próxima vez, tenta fazer isso antes que eu tenha que subir de pijama da Barbie pra salvar a situação, combinado?
Ele deu uma risada fraca, quase desacreditando que ainda conseguia rir.
— Combinado.
E, pela primeira vez desde que subi aquelas escadas, eu senti que não era só eu que tava precisando de ajuda naquela noite.
Talvez... talvez a vida estivesse me colocando no lugar certo, na hora certa.
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Fiquei olhando pro bebê no meu colo, que aos poucos ia se acalmando. O silêncio entre eu e o pai dele era quase incômodo, sabe? Então... não me aguentei. Eu sou assim, minha boca funciona antes do cérebro processar.
— E... a mãe dele? — perguntei, meio que tentando soar casual, mas a curiosidade tava transbordando. — Por que ela não ajuda nesses momentos?
O Jayme me olhou. Os lábios dele se moveram, mas nenhum som saiu. Mesmo assim, eu entendi perfeitamente o que ele disse. Não precisou de voz.
"Ela morreu."
Pronto.
Meu estômago virou, minha cara queimou, e eu me senti a maior i****a do planeta. Fiquei me odiando por ter subido pronta pra brigar, julgando esse cara sem saber de absolutamente nada. E, pior... eu vi quando o semblante dele mudou.
Sabe aquele olhar de quem segura o mundo nas costas?
Foi exatamente esse.
Ficamos ali. Em silêncio. Só o som da respiração do Arthur, que foi ficando mais lenta... mais tranquila... até que ele bocejou, jogou a cabeça no meu colo e... simplesmente apagou.
Dormiu.
E, olha, eu preciso confessar: ele era a criança mais adorável que eu já vi na minha vida. Um loirinho dos olhos azuis enormes, bochechas tão grandes que dava vontade de apertar. E o cheiro... ai, gente, aquele cheiro de bebê limpo, cheiroso, bem cuidado, aquele cheirinho que dá vontade de guardar num potinho pra sempre.
A testa dele tava suada, com os fiozinhos loiros coladinhos. Passei a mão devagar, afastando pra não incomodar ele. E, num impulso, me levantei com ele no colo.
O Jayme se levantou também, estendendo os braços, meio sem jeito.
— Eu pego ele... — disse, já vindo pra pegar.
— Não. — Falei na lata, puxando o Arthur mais pra mim. — Deixa, eu levo.
Ele ficou me olhando, meio chocado, meio rendido, sabe?
Acho que entendeu que discutir comigo seria perda de tempo. Me guiou até o quarto do pequeno.
E, meu Deus... que quarto fofo!
Tudo em tons de verde e marrom, tema safari. Bichinhos de pelúcia, quadros de leãozinho, girafa, macaquinho... coisa mais linda. Tudo muito organizado, cheiroso, aconchegante.
Combinava com o Arthur.
Mas o que me chamou atenção de cara foi a parede de frente pro berço. Tinha uma foto enorme. Uma mulher loira, lindíssima, grávida, segurando a barriga e sorrindo.
“Deve ser a mãe...” — pensei na hora.
Deitei o Arthur no berço com todo cuidado do mundo, ajeitei uma fraldinha fininha em cima dele, e o Jayme ligou a babá eletrônica, ajustou o ar-condicionado e me puxou de volta pra sala.
A curiosidade tava me matando, não aguentei.
— Aquela da foto... é a mãe dele? — perguntei, caminhando atrás dele no corredor.
Ele só assentiu, sem dizer nada.
Mas quem disse que eu sei ficar calada?
— Ela morreu no parto? — soltei, direto, assim mesmo, sem filtro.
Jayme parou bem na entrada da sala. Me olhou por alguns segundos, respirou fundo e respondeu:
— Não... Ela sumiu no mar há alguns meses. Nunca encontraram o corpo. — A voz dele tinha uma ponta de esperança, sabe?
Aquela esperança meio torta, que o luto cria na cabeça da gente. Ele... ele realmente acredita que ela pode estar viva.
Eu conheço bem isso. Já passei por isso. O luto faz a gente criar teorias, imaginar possibilidades, se agarrar em qualquer fio de esperança pra não enlouquecer.
Mas não falei nada.
Controlei minha boca — milagre.
Aí ele, do nada, solta: — Quer um café?
Eu encarei ele, piscando rápido.
— Café? — ri, cruzando os braços. — Quer me deixar acordada até amanhã? Tá doido? Se for chá de camomila, suco de maracujá... ou, sei lá, um comprimido que derrube um cavalo, eu aceito. — Dei um sorrisinho de canto. É meu jeito. Nem todo mundo entende, mas ele... ele riu. Pela segunda vez desde que cheguei.
Jayme foi pra cozinha, pegou a chaleira elétrica, despejou água quente na xícara, colocou um sachê de chá e empurrou o açucareiro na minha direção, por cima do balcão de mármore.
E eu, sem vergonha nenhuma:
— Me dá três daqueles sequilhos ali, Jayme. — Falei, apontando descarada.
Ele balançou a cabeça, rindo, e empurrou o pote na minha direção.
Ficamos ali, trocando umas palavras soltas... coisa boba, sabe?
O tipo de conversa que você nem lembra direito depois, mas que aquece. Que faz a gente se sentir... menos sozinho.
Terminei meu chá, devolvi o pote de sequilhos e me levantei.
— Bom... acho que agora dá pra tentar dormir, né? Sem bebês em crise e sem vizinhas surtadas batendo na porta.
Ele riu, me acompanhou até a porta e, antes de eu sair, disse:
— Obrigado, Lucy. De verdade.
Só levantei a mão, piscando.
— Relaxa. Somos vizinhos agora. E... bem... talvez você tenha ganhado uma babá meio louca, mas de coração bom.
E assim eu voltei pro meu apartamento. Com a certeza de que aquela noite mudaria muito mais do que só a nossa relação de vizinhos.