Beatriz narrando - continuação
O celular vibrou, e por um segundo, o coração já deu aquele salto que sempre dá. Mas era o despertador. Eu abri os olhos devagar, o corpo pesado, e fiquei uns segundos olhando pro teto antes de lembrar de tudo. Levantei, fui direto pra cozinha e botei a água pra esquentar. As meninas ainda dormindo, as duas com o cabelo espalhado no travesseiro igual ao pai.
Fiz o leite delas, botei o pão na chapa. A Sofia, como sempre, acordou primeiro, ainda meio manhosa, e veio arrastando o cobertor pelo chão.
— Mãe, cadê o papai?
— Tá vindo, filha. Tá na estrada ainda.
— Vai demorar?
— Um pouquinho, meu amor. Mas ele tá vindo.
Ela sentou no banquinho da cozinha, esfregando o olho.
— Quero pão com manteiga.
Sorri de canto. — Igual o pai, né?
— Igualzinho! — ela respondeu, com a boca cheia.
Enquanto isso, peguei o celular pra ver a localização. O pontinho azul ainda andava devagar pela estrada.
Mandei mensagem:
“Bom dia, amor. As meninas tão aqui tomando café, Sofia pediu pão com manteiga igual você. Tá tudo bem aí?”
Demorou uns minutos, mas ele respondeu com áudio:
“Bom dia, amor. Tô na estrada ainda. Tá trânsito pra p***a, mas tá tudo certo. O GPS tá marcando chegada umas cinco e meia da tarde. Só não vou poder ficar te dando muita atenção agora, tá? Aqui é cheio de radar, e tem câmera, vai que me pega falando no telefone, essas parada. Mas tá tudo bem.”
Eu respirei fundo, tentando não demonstrar preocupação.
— Tá bom, amor. Dirige com calma.
As meninas riam na sala vendo desenho, e eu fiquei ali, mexendo o café sem sentir o gosto, só ouvindo o áudio dele repetindo na minha cabeça. Cinco e meia da tarde. Faltava tanto tempo e eu precisava fazer alguma coisa, se não eu ir surtar bonita.
Depois que elas comeram, dei banho, arrumei o cabelo das duas. uma com maria-chiquinha, a outra com trança e botei as mochilas. O sol já esquentava e o celular seguia ali, com o GPS mostrando ele se movendo. Eu me apegava àquilo como se fosse o fio que me mantinha viva.
Na hora de sair, mandei outro áudio:
“Tô indo lá pro Alcântara, tá? Vou comprar as roupas das meninas pro zoológico. Elas tão perguntando todo dia, e você prometeu que vai levar elas domingo, então tem que cumprir. E também vou aproveitar pra comprar teu presente de dia dos namorados.”
Ele respondeu rindo:
“Tá bom, amor. Precisa de dinheiro? Pega aí onde cê sabe que tem, tá? Na gaveta.”
Respondi na hora:
— Já peguei, né? Tu acha que eu ia sair como? Gastar o meu?
“Ah é? Tu é espertinha, beça.”
— Sempre fui.
Desci com as meninas até a van da escola, ajeitei o cabelo da Maithê que já tava desmanchando, dei beijo nas duas e esperei elas entrarem. O motorista me deu bom dia, eu acenei de volta, e fiquei ali vendo o carro virar a esquina.
Quando a van sumiu, abri o aplicativo e pedi um Uber. O cara chegou rápido, e eu sentei no banco de trás segurando o celular com força. O pontinho dele ainda se mexia, devagar, mas seguia.
Cheguei no Alcântara, o sol rachando, aquele barulho típico da feira: gente gritando promoção, cheiro de pastel, som de forró saindo das barracas.
E eu ali, andando sozinha no meio do povo, como se minha vida fosse normal. Entrei nas lojinhas, fui pegando roupa igual mãe faz, vendo se serve, se combina, se as duas iam gostar.
Uma blusa da Minnie pra Sofia, um conjuntinho lilás pra Maithê. Comprei também uma camisa branca pro Felipe, pra ele usar quando voltasse. Olhei pra peça e pensei “vai ficar bonito com o cordão dele”. Só que engoli a frase.
Almocei num restaurante ali na rua da feira, prato feito, suco de maracujá. Enquanto comia, abri o celular pra ver se ele tinha mandado mensagem.
Tinha uma, de uns quinze minutos atrás:
“Tá tudo bem, amor. Parei num posto pra abastecer e comer alguma coisa. Daqui a pouco tô pegando a pista de novo.”
Respondi na hora:
— Tá bom, amor. Dirige com calma.
E botei o celular em cima da mesa, olhando pra tela, mesmo sabendo que ele não ia responder logo. No meio do barulho, da música, da feira, do sol quente, o tempo parecia demorar pra passar. A cidade tava viva, mas dentro de mim o dia não andava. Cada vez que eu olhava o GPS, aquele pontinho azul parecia mais lento.
Menina, mas eu andei tanto naquele Alcântara que até Deus deve ter cansado de me ver rodando de loja em loja. Mas também, eu comprei tanta coisa, tanta coisa, que já não aguentava mais segurar sacola. Os braços doendo, o pé latejando, o cabelo já desmanchado do calor, mas eu não queria ir embora.
Era como se alguma coisa dentro de mim dissesse pra eu ficar mais tempo na rua. Talvez fosse só ansiedade talvez fosse o medo que eu nem sabia nomear.
Entrei em mais uma loja, dessas que vendem de tudo, roupa, bolsa, bijuteria e acabei comprando mais do que precisava. Comprei short, blusinha, até uma sandália nova.
Na minha cabeça, a desculpa era boa: “Ele disse que quando chegasse hoje, a gente ia jantar. E hoje é dia dos namorados. Eu não posso ir de qualquer jeito.”
Fiquei escolhendo roupa pra mim e, por um instante, consegui fingir que tava feliz. Imaginei ele chegando, as meninas correndo pra abraçar, o cheiro do perfume dele invadindo a casa, a risada alta. Fingir, às vezes, é o que mantém a gente viva.
Deixei pra comprar o bojaco dele por último. Queria escolher com calma, o melhor que tivesse. Passei por umas três lojas, pechinchando, até achar o modelo certo: preto, com o tecido grosso, do jeito que ele gosta. O bagulho era caro em? 300 reais um casaco? E ele nem merece em. Era quase quatro horas já, e eu sabia que tinha que ir embora porque as meninas chegavam da escola às cinco.
Peguei o bojaco, dobrei bonitinho e coloquei dentro da sacola com as outras compras. Já tava cansada, suada, e com a sensação de missão cumprida. Na minha cabeça, a noite ia ser linda jantar simples, as meninas dormindo, eu e ele no sofá, rindo de tudo e de nada.
Saí andando pela rua da feira com as sacolas batendo na perna, o som das barracas já quase baixando o volume. Peguei o celular pra ver onde ele tava. Abri o GPS e o pontinho azul parado.
No começo, nem dei tanta importância. Achei que fosse o sinal r**m da estrada. Mas o tempo passou. E o pontinho continuou ali, paradinho.
Apertei o celular na mão, atualizei o mapa e nada. Mandei mensagem:
“Amor, atualiza aí, a localização travou.”
Esperei e nada. Chamou uma vez, duas, três e nada.
O coração começou a acelerar e eu liguei de novo.
“Felipe, a localização acabou, atualiza, pelo amor de Deus. Atualiza!”
Eu falava alto, tremendo, sem perceber que já tava parada no meio da calçada, com as sacolas no chão.
A feira ao redor parecia distante, o som das pessoas sumindo, tudo ficando meio embaçado.
Até que o celular vibrou, ele mandou um áudio e eu apertei pra ouvir com o dedo trêmulo.
“Não me liga não, Beatriz. Não fica me ligando, não. Tô tentando olhar o mapa aqui. Depois eu te respondo.”
A voz dele veio rápida, gritando.. do mesmo jeito que ele faz quando tá nervoso. Eu respirei fundo e tentei me acalmar.
— Tá bom, tá bom… — falei pra mim mesma, como se ele pudesse ouvir.
Guardei o celular na bolsa, juntei as sacolas e comecei a andar mais rápido. Mas o coração o coração já sabia. Tava doendo de um jeito diferente, como se avisasse antes da mente entender.
Apertei o passo, o Uber já a caminho, e olhei o celular de novo, nenhuma atualização, nenhuma mensagem.
Até que vibrou com um novo áudio e o nome dele na tela. Por um segundo, eu sorri e até suspirei mais aliviada. Mas o sorriso morreu antes mesmo de eu dar play.
“Amor, fui preso! A Federal me pegou. A Federal me pegou.”
O mundo parou literalmente. As vozes da rua sumiram, o som dos carros virou um zumbido, e eu fiquei ali, parada, com o celular na mão e as sacolas caindo no chão. O bojaco dele escorregou da sacola e caiu aberto, dobrado certinho, novo, limpo.
E eu? Eu fiquei olhando praquilo, como se pudesse trocar o tecido por ele. Como se, se eu fechasse os olhos e rezasse forte o bastante, o áudio fosse mentira.
Mas não era. A voz dele ainda ecoava no meu ouvido, repetindo como um eco que rasga por dentro:
“A Federal me pegou.”
Eu respirei fundo, mas o ar não vinha. As pernas tremiam, e as lágrimas vieram sem pedir licença. Peguei o bojaco do chão, abracei contra o peito e sentei no meio-fio.
Ali, entre sacolas e gente passando, o dia dos namorados acabou pra mim.