Jacaré narrando
capítulo 06
Ser dono do morro nunca foi sonho de ninguém. Mas tem coisa que só acontece de repente e quando a gente percebe já tá naqueles corre louco pegou a visão? A vida me colocou nesse posto quando o antigo chefe caiu e todo mundo olhou pra mim pra segurar a responsa. Cruzeiro não é brincadeira. Aqui ou tu impõe respeito, ou te engolem. Eu impus. E desde então, o peso do nome "Jacaré" carrega junto o medo , a lealdade e uma solidão que só quem tá no topo entende.
Mas tem uma parte da minha vida que pouca gente conhece.A parte que eu não deixo entrar nos becos, nem nas conversas de bar, nem nos cochichos da esquina, a de pai. Ser pai da Luna é o único papel que me faz baixar a guarda. Desde que a mãe dela se foi, de forma tão de repente em um acidente tragico que não pude fazer nem o enterro digno pra minha fiel . Foi ai que parece que um buraco no meu peito se abriu , não so eu mais a menina tambem que nem o tempo conseguiu tapar. Quando minha mulher partiu , deixou o mesmo sorriso doce, o mesmo olhar firme quando tá contrariada, a simplicidade de quem veio do pouco .E eu? tive que aprende a ser pai solo na marra. Tive que me vira noites e noite com ela e uma pistola na cintura, ensinei lição de casa com rádio chiando no fundo. Vi virar uma mulher de gênio difícil, mas de coração gigante.E é por isso que eu sempre pensei mil vezes antes de deixar me envolver com alguém e entrar nessa parte da minha vida .
Mas aí… ela apareceu. Uma diferente.
Nem sei direito o que me pegou primeiro , se foi o jeito dela falar olhando dentro dos olhos, ou a calma que ela traz quando tá por perto. É raro eu me sentir leve, mas com ela… parece que o mundo desacelerou.
Ela não é do meu meio, e talvez por isso me deixo encantado. Não conhece as regras do morro , não sabe o peso de um nome falado no rádio, nem entende porque eu fico tenso quando o telefone toca duas vezes seguidas. Ela só quer estar comigo. E isso me desarma. Só que o coração é teimoso, e o meu mais ainda. Ela vive dizendo que quer conhecer a Luna, que quer vim aqui em casa, estar por perto. Mas eu ainda não deixei. So eu sei o tamanho da ferida que minha filha carrega. Isso me dói porque me faz enxergar o quanto eu falhei com ela , a Luna nunca entendeu e a verdade é que eu também não.
Ser chefe é uma vida de ferro.
Ser pai é uma vida de amor.
E tentar equilibrar as duas coisas é o inferno e o paraíso no mesmo dia.
Às vezes eu fico olhando pra foto da mãe dela na estante e penso se ela aprovaria o homem que eu me tornei. Eu me prometi que nunca ia deixar a Luna sentir falta de proteção, mas esqueci que carinho também é uma forma de proteger. Eu assumo que fico maior parte do tempo fora de casa , talvez seja uma forma de tentar fugir da minha realidade e parcela de culpa , os quadros da mulher que eu mais amei na vida estão espalhado por todos os cantos, a lembrança bate forte, a saudade nem me fale , dói demais , corrói a alma.
Tem noite que eu chego cansado do corre, sento no sofá e o silêncio da casa grita mais alto que qualquer rajada no morro. A Luna já tá no quarto, trancada no mundo dela, as vezes ouvindo as músicas dela, rindo sozinha no celular, tentando viver a juventude mesmo com o peso do nome que carrega. Às vezes paro na porta , fico pra porta branca fechada tudo no silêncio, e me pergunto em que momento a distância entre eu e minha filha ficou tão grande. Eu dou tudo pra ela , estudo, conforto, segurança , menos o que mais importa presença.
E a real é que eu nem sei por onde começar pra consertar isso. Quando tento conversar, ela fecha a cara, diz que tá cansada das minhas ordens, que eu só sei mandar e sumir. Dói, mas eu entendo. Ela cresceu vendo um pai endurecido, acostumado a resolver tudo no grito ou na bala, e eu não consegui mostrar outro lado de mim.
A dondoca ... parece ver esse lado que ninguém vê. Diz que eu sou bom, que por trás do meu vulgo , tem um cara que só quer paz. Eu rio, meio desacreditado, mas no fundo quero acreditar também. Ela mexe comigo, me faz querer ser diferente, tipo dar um respiro pra alma. Só que o problema é que nesse mundo, quando tu começa a se apegar, o destino sempre arruma um jeito de cobrar caro.
Semana passada mermo, quase deixei ela subir o morro. Ela tava toda empolgada, falando da Luna, dizendo que queria conhecer, que já se sentia parte da minha vida. Eu quase disse sim. Mas aí olhei pra janela, vi as luzes lá fora piscando, o rádio chiando com código , e lembrei que aqui o amor é coisa rara, e quando acontece… é alvo.Não quero expor ela, nem a Luna. Já perdi uma mulher , e eu jurei que não ia enterrar mais ninguém. Ontem ela me mandou mensagem .
"Se você não deixar eu conhecer a Luna, vou achar que você não confia em mim."
Fiquei olhando pra tela um tempo, o cigarro queimando no dedo. Não é falta de confiança, é medo. Medo de juntar dois mundos que não combinam. Medo da minha filha olhar pra mulher errada e achar que eu tô tentando substituir a mãe dela. Medo de me permitir sentir de novo e perder tudo no meio do caminho.Mas eu sei que o tempo vai me apertar. A mulher é decidida, dessas que não esperam muito. E a Luna… por mais fechada que seja, também sente falta de alguém pra preencher o vazio que nem eu consegui.
Vamboraaa.....