capítulo 01 - Luna
Luna narrando
capítulo 01
Dizem que o perigo mora onde a gente menos espera. Eu cresci no meio dele. No barulho dos tiros à noite, no silêncio pesado quando a polícia sobe o morro, nos olhares que se abaixam quando meu pai passa. Ser filha do chefe é caminhar com coroa e algemas ao mesmo tempo. Todo mundo me respeita ,ou finge bem, mas ninguém se aproxima de verdade. Sou intocável. Não por mim. Por ele. Mas tem uma coisa que meu pai não controla. Ainda.Meu olhar.
E é por isso que, toda terça e quinta, às oito da manhã, eu sento na carteira da frente só pra poder olhar pra ele sem ninguém notar.
Professor William.
Ele entrou na sala como quem não deve nada a ninguém. Camisa social de manga dobrada até o cotovelo, calça escura, óculos no rosto e uma expressão tão séria que até o tempo parece respeitar. Fala baixo, com aquele tom firme que faz todo mundo calar. Mas é no jeito como ele passa a mão no cabelo quando tá explicando alguma coisa difícil, ou no sorriso torto que escapa quando alguém acerta uma resposta... é aí que ele me mata.Ele é o tipo de perigo que eu nunca aprendi a evitar.
- Luna, qual é a resposta? A voz dele me puxou de volta. Merda. Eu tava encarando.
-Oi?Algumas pessoas riram. Ele não.
-Tava perguntando sobre a estrutura do texto. Pode repetir o que eu acabei de dizer?
Poderia, se eu tivesse prestado atenção. Mas eu tava ocupada demais olhando as veias saltadas do braço dele.
- Desculpa, professor. Me distraí.Ele me olhou de um jeito diferente. Não bravo. Nem decepcionado. É mais... curioso. Como se tentasse entender o que se passa aqui dentro da minha cabeça. Boa sorte, porque nem eu sei.Ele desviou o olhar e continuou a explicação, mas eu percebi. O jeito como evitava me encarar de novo. Como se soubesse que entre nós dois existe uma linha e que já estamos perigosamente perto de cruzá-la. E isso é mais perigoso do que qualquer fuzil apontado pra minha cabeça.
Meu coração ainda batia rápido. Ele voltou a escrever no quadro, e eu tentei fingir que acompanhava, mas a verdade é que a minha cabeça tava longe. Não consigo entender o que esse homem tem. Não é só o físico, nem o jeito elegante de falar. É o controle. Ele parece ter domínio sobre tudo menos sobre o efeito que causa em mim.
Segurei o lápis, girando entre os dedos, tentando me distrair, mas quanto mais eu olhava pra ele, mais sentia o calor subir. As palavras que ele dizia viravam ruído. Só o som da voz dele me prendia. Sem perceber, o lápis escapou da minha mão e rolou até parar bem aos pés dele. Merda. Ele olhou pra mim, depois pro chão, e se abaixou devagar. As veias do antebraço dele saltaram quando pegou o lápis. O movimento foi simples, mas meu corpo reagiu como se tivesse assistindo a algo proibido.
- Tá difícil manter a concentração hoje, Luna? perguntou, a voz baixa, firme. Tinha uma pontinha de ironia , ou talvez provocação.Engoli seco.
- Um pouco. Foi tudo o que consegui dizer.
Ele colocou o lápis sobre minha mesa, e por um segundo os dedos dele roçaram nos meus. O suficiente pra me arrepiar inteira.
- Então tenta focar . ele murmurou, inclinado o bastante pra que só eu ouvisse. -A aula é sobre texto, não sobre mim.O calor subiu do meu pescoço pro rosto. Senti os olhares curiosos dos colegas, mas ninguém entendeu o que tava acontecendo. Só eu e ele.
Quando voltou pra frente da sala, parecia tão calmo como sempre, mas eu percebi a tensão nos ombros, o jeito rápido com que ajeitou os óculos antes de continuar. Como se aquele toque também tivesse pegado nele. Tentei respirar fundo, mas o ar parecia pesado. E pela primeira vez na vida, eu desejei que o perigo viesse de outro lugar , não das armas, não das ruas, mas desse homem que, com uma frase e um olhar, consegue bagunçar tudo dentro de mim desde a primeira vez que eu o vi . Eu curso Letras, terceiro período da faculdade. Tenho vinte anos, mas às vezes me sinto mais velha, tipo alguém que viveu vidas demais num corpo só. Talvez porque cresci vendo o que muita gente não aguentaria nem ouvir falar. Morte, medo, fuga… tudo isso faz parte do meu vocabulário antes mesmo de eu saber ler.
Mas foi dentro de uma sala branca, com cheiro de café e livros novos, que eu senti um tipo diferente de perigo pela primeira vez. Era o primeiro dia do segundo semestre. Eu tinha decidido que ia manter a cabeça baixa, aqui ninguém precisa saber quem eu sou, nem de onde eu venho . Só mais uma aluna tentando diploma, era o que eu quero parecer. Aí ele entrou. Professor William. Lembro do barulho da porta se abrindo e do som das vozes sumindo, como se o mundo tivesse apertado o botão de silêncio só pra ele entrar. Ele carregava uma pasta preta, usava a mesma cor de camisa social, no mesmo estilo dobrada no antebraço e aquele perfume amadeirado que desde então eu nunca consegui esquecer. Ele começou a falar sobre a importância da palavra, sobre como um texto pode ser arma ou abrigo. E, ironicamente, eu só conseguia pensar que ele era as duas coisas.
Enquanto ele explicava o programa da disciplina, eu fiquei observando os gestos, o tom da voz, o jeito que ele caminhava de um lado pro outro da sala. Nada nele era forçado. Era natural, confiante, e… perigoso. Não no sentido que eu já conhecia. Era outro tipo. Um que não te ameaça com uma arma, mas com o olhar. No final da aula, lembro que ele perguntou o nome de cada aluno. Quando chegou em mim, disse “Luna” num tom tão baixo, tão cheio de intenção, que meu coração errou o compasso. Ele repetiu meu nome como se saboreasse cada letra. Desde aquele dia, toda vez que ele entra na sala, parece que o tempo muda. O ar fica mais tenso, o som mais distante. Eu tento focar nas palavras, nas teorias, mas tudo o que consigo é contar quantas vezes ele passa a língua pelos lábios entre uma explicação e outra.
E o pior é saber que ele sabe. Sente. Finge não ver, mas percebe cada olhar, cada respiração presa. Eu sou filha do homem mais temido do morro, mas diante do professor William, quem perde o controle sou eu.
-Caraca, Luna… a voz da Helena me fez piscar de volta pra realidade assim que o sinal tocou .- Se olhar matasse, tu já tava presa por homicídio duplo.
- Hã? fingi desentendida, mas a risada dela denunciou que não colou. Juntei meu material e peguei minha bolsa passando no ombro e levantei pra sair pro Intervalo e ela veio me acompanhando.
-Não vem, não. Acho que dessa vez a sala toda percebeu o clima. Eu quase pedi pra abrir a janela de tanto calor. Falou se abanando com a mão e nos labios um riso divertido. - Se continuar assim, vai pegar fogo. Revirei os olhos, tentando esconder o sorriso.
- Tá viajando,amiga . Ele é só...meu professor.
- E eu sou filha do Papa. Ela deu uma risada sarcástica.- Aquele homem te olhou como quem tá lutando contra o próprio instinto.
- Ele só tava... sei lá… tentando manter a aula sob controle.
- Claro. Do mesmo jeito que eu “só” saio pra comprar uma blusinha e volto com duas sacolas. Ela gargalhou alto , e eu não consegui conter a risada também. A gente desceu as escadas sob alguns olhares , e eu tentava agir normal, mas meu coração insistia em acelerar cada vez que lembrava do toque, do tom baixo dele. -Luna, sinceramente, eu nunca te vi assim. ela continuou, encostando na parede do corredor. - Tu sempre parece tão segura, tipo… ninguém te abala. Mas esse homem? Aff… ele te deixa toda... fez um gesto vago com as mãos, procurando a palavra .
- derretida.
- Para, Helena. empurrei o ombro dela rindo. - Você fala como se eu fosse uma adolescente apaixonada.
-E não é?
- Tenho vinte anos, não dezesseis.
- Idade não muda o efeito de um olhar, minha filha. Ela riu, e depois ficou séria por um segundo. - Só cuidado, tá? Esse tipo de tensão é gostosa, mas também é o tipo de coisa que complica... Tanto pra você como pra ele . Suspirei...Ela tinha razão, mas dizer isso pra minha cabeça e fácil. Convencer meu corpo… impossível.
Do lado de fora, o sol batia forte, o barulho do pátio me trouxe de volta pro mundo real. Helena se afastou pra comprar o nosso café de todo dia , e eu fiquei parada, olhando pro chão, lembrando da sensação , o arrepio do toque dele nos meus dedos.
Perigo. A palavra ecoava dentro de mim, e pela primeira vez eu tinha certeza de que eu não queria correr , eu queria ficar.
A Helena tá comigo desde que eu me entendo por gente. A gente cresceu no mesmo lugar , brincou nas mesmas escadarias, dividimos o mesmo pacote de biscoito . Enquanto o mundo ao redor desabava em sirenes e tiros, era ela quem me fazia rir, quem me fazia lembrar que ainda existia um pouco de leveza no meio do caos. O pai dela era o sub do meu pai, até ser morto em confronto pra proteger nossa familia , desde então meu pai tem ela como sobrinha , ela mora com a mãe dela ,tia Joyce que e um amor se pessoa, um exemplo de força e de mulher que nunca abaixou a cabeça pra nada , e ela que ajuda meu pai nas coisas depois que o marido se foi , ela e o tipo de mulher que o morro respeita, mas que nunca levantou a voz com ninguém so no olhar ela ja impõem respeito. Sempre diz que eu e a filha dela somos “as meninas do futuro”, que a gente vai sair dali de um jeito ou de outro. E, no fundo, eu acho que e isso que ela mais desejava ver a gente longe dessa vida.
A gente sempre sonhou em fazer faculdade juntas. Desde o ensino médio, quando passava a madrugada estudando escondida na casa dela, ou na minha com medo de alguém ouvir a gente falando de livros enquanto o resto do mundo falava de guerra. Eu lembro da primeira vez que ela me mostrou um poema e disse que queria ser professora de português. Eu ri, disse que ela era doida e, no fim, fui eu quem escolheu o mesmo curso. A gente até brinca dizendo que somos versões diferentes da mesma pessoa. Ela é o sol fala alto, sorri fácil, sempre tem uma resposta pronta. Eu sou mais a lua observo, guardo, penso antes de dizer. E, ainda assim, a gente se entende num olhar.
Foi ela quem me empurrou pra faculdade, literalmente. Disse que se eu não fizesse a matrícula, ela mesma ia me arrastar pelo braço. E arrastou. Naquele dia, a gente chorou de emoção, prometendo que ia ser o começo de uma nova vida. E, de certa forma, foi porque aqui ninguem sabe de onde somos, de quem somos filhas .Helena é o tipo de amiga que percebe tudo, mesmo quando eu não digo nada. Às vezes acho que ela me enxerga mais do que eu mesma. E é por isso que quando ela fala pra eu ter cuidado, eu escuto. Mesmo fingindo que não. A gente sentou num banco do pátio, café na mão, sol batendo no rosto. Ela ficou mexendo no celular, e eu olhei pro céu, tentando respirar fundo, esquecer o toque dele, o olhar, a voz. Mas tem coisa que não se esquece fácil assim .
Principalmente de quem sou filha e de onde eu venho. Morro do Cruzeiro. Nome bonito pra um lugar que a cidade só lembra quando tem operação. Lá de cima dá pra ver o mar, o Cristo de longe e o contraste de um Rio que finge não ver a gente. É uma mistura de caos e poesia , criança brincando no beco enquanto mais embaixo alguém chora porque perdeu um parente. Cresci assim entre cheiro de pólvora e feijão no fogo, entre gente armada e gente que sonha. Meu pai comanda tudo. O morro é dele e por isso, de um jeito torto, também é meu. Desde pequena, aprendi que o respeito vem antes do medo, e que silêncio salva mais que grito. Quando a sirene toca, ele corre e gente se protege . É regra.
Nossa casa fica no alto, numa parte que o sol alcança antes de todo mundo. Da varanda dá pra ver a laje da dona Bebel, onde os moleques jogam bola, e mais adiante o campinho que serve de refúgio pra quem quer esquecer da vida em dia de baile funk. Às vezes, eu sento ali e fico olhando o movimento os rádios chiando, o vai e vem dos olheiros, o cheiro da carne queimando nas barracas. É um mundo à parte, e mesmo assim é o único que eu conheço de verdade.
Mas quando eu atravesso o asfalto pra ir pra faculdade, parece que entro em outro universo. Ninguém sabe quem é meu pai, ninguém imagina o que rola no Cruzeiro. Lá eu sou só “Luna”, a menina quieta da primeira fileira. Só que o perigo não ficou no morro ele me segue em forma de professor, de olhar, de tentação. E às vezes, quando tô voltando pra casa no fim da tarde, o sol se pondo atrás das caixas d’água e o morro dourado de luz, eu me pego pensando se meu pai soubesse o que passa pela minha cabeça quando olho pro William, ele mandava me trancar no quarto até o fim da faculdade. Ou faria ele sumir e esse risco eu nao quero correr .Mas o coração não entende de regras. E o meu… já escolheu o pior tipo de erro o carnal .
Oieee meus amores, aqui estou eu, mas uma vez apostando nesse novo lançamento , espero que gostem desse novo surto com muita tensão no ar. As atualizações diárias começam dia 27/10 Vamboraaaaaa adicionem na biblioteca e vamos viajar juntas ....