Perda do calor

2559 Words
O calor do fogo deveria ser purificador e não amedrontador, mesmo quando se alimentava das casas de madeira obrigando seus moradores a saírem correndo para se salvarem. As labaredas pareciam dançar na madeira, avançando e crepitando um tanto quanto lentamente. E ainda assim, o fogo não a assustava. Não como aquele olhar. Estavam completamente focados nela agora. Olhos acinzentados e frios, sem piscar para quebrar o contato. Tornavam-na uma refém sem nenhuma informação, sem nenhuma possibilidade de pensar no quê fazer. O mínimo movimento de seus músculos, fosse para tentar fugir ou fosse para tentar lutar, faziam a fera à sua frente rosnar e lhe arreganhar os dentes. Novamente ela sentia seu corpo congelar, mesmo estando rodeada pelo fogo. Queria encontrar uma rota de fuga, e o caos se alastrava em sua volta de tal maneira complicando sua visão. Por onde fugiria? Pedaços das casas estavam no caminho, com certeza iria tropeçar e cair tornando-se então mais uma vítima de um lobo. Respirando fundo, a garota tentou se acalmar. A fera baixava o focinho sem piscar, como se a vigiasse. Estranhara. O lobo de pelagem marrom tornara a rosnar, dando um passo à frente. Iria atacá-la mesmo assim? Não havia feito nenhum movimento brusco. Quando o lobo finalmente correra e saltara em sua direção, a garota levantara os braços a frente do corpo e fechara os olhos esperando pelo pior. Por alguns segundos mantivera parada, sem sentir nenhuma pata ou mordida em seu corpo. Abrindo os olhos, espiara pelo espaço entre seus braços e surpreendeu-se em ver um segundo lobo, de pelagem preta, mordendo o pescoço do acinzentado. — Mas o que… Os dois lobos travaram uma briga entre eles que a garota não conseguira acompanhar. Somente ouvia de seus rosnados e grunhidos. — Finalmente a encontrei. A garota assustara-se com a voz baixa e rouca vinda de trás de si. — P-Pai! — Shh! Eles ainda não sentiram o meu cheiro — O homem segurava o braço da garota e a puxara para ficar atrás de si. — Vá para algum lugar seguro quando eu atirar. — Mas, e se eles te atacarem? — Não discuta! — Resmungava o homem, ajeitando a flecha no arco e apontando para os lobos. Tarefa difícil com eles se movendo tão agilmente de um lado ao outro. — Vá para o mais perto do castelo que conseguir, evite, à todo custo, entrar na floresta. A garota olhara para a floresta por cima do ombro, mesmo com o fogo pelo vilarejo ela sentia o frio daquela escuridão. Virou-se de costas para o pai e esperou. Ouvindo o som da flecha, ela saíra em disparada no mesmo instante. Correra o mais rápido que conseguia, saltando e desviando dos escombros que caíam em seu caminho. Respirava fundo até encher os pulmões, e acelerava seus passos. Seria preferível correr pelas redondezas do vilarejo, porém a deixaria próxima demais da floresta. Isso não seria o ideal. Optara cortar caminho por dentro do vilarejo de Grevers, sem desviar os olhos dos muros do castelo. Fora então que ouvira um uivo. Parara de correr e olhara para trás, arregalando os olhos em ver tantos outros lobos em cima dos telhados e pelas ruas do vilarejo. Ofereciam de seus uivos para a lua em conjunto. Aquilo não era um bom sinal. — P-Pai… Não… não, não, não. — Dera meia volta prestes a sair em disparada uma vez mais, porém uma mão lhe segurara o ombro. — Soltem-me, preciso ir ajudá-lo! — Perdemos a batalha. A garota olhara por cima do ombro sentindo seu corpo tremer não conseguindo sustentá-la. O rei estava parado ao seu lado segurando as rédeas do cavalo, sem deixar de assistir os lobos se reagrupando e sumindo por entre as labaredas. Sua fisionomia não transparecia suas emoções quanto seus olhos, que refletiam das labaredas. A garota apertara as mãos contra o peito, tremendo e sofrendo em esperanças. Uma mulher se aproximara da garota, segurando um embrulho em seus braços. Quando a avistara, abrira um sorriso aliviado retirando dos panos sobre a criança inconsciente. — Ela está bem… — Sussurrava a mulher, entregando a criança para a garota. — E quanto à minha mãe? — A mulher negava com a cabeça, sem dizer uma palavra. A garota fitou-a sem transparecer nenhuma mudança em sua fisionomia. Encarava a criança em seus braços suspirando completamente desabada em seu mundo. Abraçava como se temesse perdê-la também. Por um breve instante perdera o interesse no que ocorria em sua volta. Os gritos dos soldados em suas buscas por sobreviventes passavam abafados por seus ouvidos. Seus olhos já não focavam em nada além daquela criança inconsciente, com uma ferida em sua testa. Seus pensamentos também pareciam silenciosos diante da perda das esperanças. E mesmo estando na entrada do vilarejo de Grevers, que ardia em chamas, aquela garota sentia o frio da solidão lhe acalentar. Mesmo sentindo alguém lhe tocar a cabeça com ternura, ela não erguera os olhos para ver quem se tratava. Sentia-se completamente submersa no mar, onde se afogava lentamente. Como se saísse daquele mar escuro, ela tornava a escutar os gritos dos soldados e as chamas queimando as casas. Virou-se para o vilarejo de Grevers se dando conta de que não era a única a sofrer. — Oh céus, que noite maldita. Soldados corriam com seus cavalos para dentro do vilarejo com coragem e determinação. Outros saíam carregando vítimas inconscientes, os levando para perto dos curandeiros e médicos da corte. A garota se dava conta de que não era a única a perder alguém. Mas era provável que fosse a única a se sentir culpada por alguma coisa. — Venham para dentro do castelo — Comandava o rei para os refugiados quando as portas do castelo foram abertas — Entrem! A garota fora a única a não seguir a multidão para o castelo. Ela encarava as chamas sem nenhuma esperança. Os olhos estavam vazios e opacos, deixando as lágrimas escorrerem copiosamente. Havia alguma chance de algum deles terem sobrevivido? O que iria fazer agora? Na medida em que mais pessoas, apesar de feridas, eram encontradas pelos cavaleiros de Aurillon, maiores eram as esperanças que a garota se agarrava. Algum deles poderia estar carregando seus pais. Talvez os encontrassem com vida. Seu pai era forte, poderia muito bem ter dado conta daqueles lobos. Não é mesmo? No entanto caíra de joelhos sem soltar a criança de seus braços, ao perceber que o último cavaleiro retornava da ronda sem nenhuma outra vítima. — Eu… desisto. — O que sabemos à respeito dessa invasão até agora? O rei, sentado na ponta da mesa, olhara para cada um dos quatro homens calmamente. Um deles cruzara os braços, fitando a mesa. — Acredita-se que seja a mesma matilha que vem destruindo as plantações nos últimos meses. Não seria estranho presumirmos que tais estragos tenham sido feitos para eles saberem o que há em Grevers. — E sobre o príncipe? — Está sob os cuidados de médico real, suas feridas são profundas e apresenta febre alta — Contara o segundo homem fardado — Se os guardas não tivessem aparecido, creio que a vida de vossa alteza teria findado. — Atacaram o vilarejo e o castelo ao mesmo tempo — Sussurrava o rei, massageando as têmporas quando sentira uma pontada forte — O príncipe ainda é jovem, não teria força o suficiente para lidar com aqueles lobos. — Mesmo que ele soubesse lutar, acredito que não seria o suficiente. Só soubemos que algo estava errado por causa do caçador, que percebeu o movimento vindo da floresta. O rei apoiava o queixo sobre a palma da mão e suspirara. Tivera o fortúnio de o caçador estar fazendo sua ronda em torno do castelo e saltado para dentro do quarto do príncipe logo após ter dado ordens sobre ataque dos lobos. Os soldados agiram rápido também, o que aumentava sua sorte. Porém, mesmo tendo um ataque em seu próprio quintal, o vilarejo também caíra no caos da matilha. Isso não era, nem um pouco, bom. — Há alguma chance desses lobos voltarem? — Não sabemos, vossa majestade — Sussurrava o terceiro homem fardado — Não encontramos Kenyan, nem da esposa entre os sobreviventes. Baixando a cabeça, o rei fechava os olhos por alguns instantes. O que deveria fazer quando o único caçador de lobos conhecido desaparecera? Tirar a vida de seu povo não fora o suficiente para tal matilha. Deixaram-nos enfraquecidos, seria fácil atacá-los novamente. Como o rei que prometeu proteger seu povo, encontrar suas muralhas quebradas e vulneráveis era como a própria derrota. Mesmo que ainda houvessem sobreviventes. Ainda conseguia sentir o calor das chamas que incendiara o vilarejo de Grevers. Ouvia os gritos de desespero de seu povo, com medo da morte. Em seus pensamentos, repetia a imagem da garota encarando o vilarejo sem vida. Ah… havia sentido a desesperança vindo dela. Em um ímpeto, o rei se levantara da cadeira com os olhos arregalados. — Vossa majestade? — A garota. — O rei olhara para os quadro homens, suando e com um ligeiro sorriso despontado em seus lábios — Kenyan tinha uma filha, não é mesmo? — Até onde sabemos, sim. Por quê? Afastando a cadeira, o rei passara a andar pela pequena saleta com os braços em suas costas. — Ela deve saber algo sobre os lobos. Afinal, Kenyan comentara que iniciara seu treinamento. Os quatro homens compreenderam de imediato as intenções do rei, e então suas faces foram iluminadas pela esperança. — Onde ela está nesse momento? — Deve se encontrar entre os sobreviventes no salão do castelo. Devemos mandar alguém chamá-la? — Sim, levem-na para a sala do trono. Eu mesmo desejo conversar com ela. Os quatro homens se levantaram e fizeram reverência ao rei antes de saírem da saleta. Deixado sozinho, ele aproximou-se da janela observando o incêndio ser controlado pelos soldados que jogavam água e terra. Além do vilarejo, a floresta se estendia escondida na escuridão. Em algum lugar, entre as árvores altas, a matilha deveria estar se regojizando com a vitória. Sentada em um canto abraçada às pernas, a garota encarava o nada. Mesmo com o zum zum em sua volta, e os oficiais do castelo de Aurillon cuidando dos sobreviventes, ela não ouvia ou via nada. Ignorava por completo. Mesmo com a presença da própria rainha, a garota não se movera. — Vossa majestade! Não deveria estar aqui. — Meu povo chora pela perda da família. Devo fazer o meu melhor para acalentá-los — Sussurrava a rainha. Usava vestimentas leves sem ornamentos, carregando bandejas com ataduras para cuidar dos feridos. Estava agachada cuidando de uma senhora que se cortara com a madeira — Creio que não há outro lugar em que eu deva estar. — Mas o príncipe… — Ora, meus conhecimento enquanto curadeira prejudicariam o trabalho de nossos médicos. Precisam de algo? — Ah… o rei procura pela filha de Kenyan — Sussurrava o soldado. A rainha erguera seus olhos azulados para o soldado, analisando suas intenções por alguns instantes. Em seguida olhara em volta, e apontara para a garota sentada encolhida no canto. — Ela está ali. — Não me parece bem… — Ora, mas é claro que não — Sussurrava a rainha, levantando-se após terminar o curativo na senhora — Até mesmo eu sinto-me entristecida de não encontrar Kenyan e Pryia. Imagino a dor dessa garota seja muito grande. — Devo levá-la a sala do trono, segundo as ordens do rei. A rainha tornara a encarar o soldado e assentira suavemente. O soldado aproximou-se da garota, agachando-se à sua frente ficando assustado com a falta de vida que era emitido em seus olhos. Chegara a olhar para a rainha por cima dos ombros, mas ela apenas negava com a cabeça respondendo silenciosamente ao seu pedido de ajuda. Suspirando, o soldado manteve uma certa distância. — Senhorita, preciso que me acompanhe. A garota erguera a cabeça e fitou-o, sem transparecer nenhuma mudança em sua fisionomia. Lentamente levantou-se do chão e seguira o soldado para fora do salão. Silenciosamente ela caminhara, olhando para os próprios pés e sem se interessar no quê acontecia em sua volta. Até mesmo o tempo parecera completamente desinteressante. Nada mais importava. Quando seus pés pararam de andar, ela não erguera a cabeça. Mesmo quando sentira alguém segurar seu ombro para ganhar sua atenção ela o fizera. Mantivera-se em silêncio. — Eu consigo sentir a sua dor, minha jovem — Sussurrava o rei, sem obter uma resposta. Tampouco esperaria algo tão prontamente. O rei olhara para o soldado em um pedido silencioso de deixarem-nos sozinhos. Assim que a sala do trono se encontrara vazia, o rei apertou os dedos nos ombros da garota antes de soltá-la. Diferente do habitual, o rei sentou-se nos degraus ficando na altura da garota. — Várias famílias perderam seus entes queridos nessa noite. Quase perdi meu único filho, mas seu pai o salvara. Finalmente ela erguera os olhos e encarara o rei. Um pequeno fascínio brilhava naqueles olhos azuis escuros. O rei sorrira pelo feito. — Kenyan percebeu que algo aconteceria, e fora salvar o príncipe ao invés de ir até o vilarejo. Devo dizer que estou em débito. — Com certeza meu pai não diria o mesmo, vossa majestade. — Sussurrava a garota cerrando os dedos em um punho — Como um caçador de lobos, perder a vida em batalha torna a morte honrável. — Honrável… será que devo sentir honra em saber que meu mais fiel soldado, e amigo, perdera a vida por proteger o meu povo? Deveria ser uma atitude minha. Seus olhos se encheram de lágrimas, e finalmente ela compreendia o que sentia. Cobrindo o rosto com as mãos, a garota soluçara e grunhia. Um misto de raiva e tristeza que não conseguiam se conversar. — Se eu não tivesse desobedecido… se eu tivesse levado meu treinamento mais á sério… — Faço de suas palavras as minhas. Com certeza seu pai não diria o mesmo, Maybelle. — Por quê as pessoas estão saindo da minha vida? — Gritara a garota, apertando os dedos contra o peito ela caíra de joelhos em frente ao rei. Sorrindo, o homem de vestes reais aproximou-se da garota e lhe acolhia em um abraço fraterno. Como se estivesse escondida do mundo, finalmente ela conseguira chorar alto o suficiente para aliviar aquela bagunça emocional. Apesar que no seu íntimo, deseja estar nos braços de outra pessoa. Onde ele estaria? Aquelas pessoas haviam sumido antes mesmo do vilarejo ser invadido pelos lobos. Sua intuição havia lhe dito que algo estava errado quando não conseguira encontrá-los. Ao invés de voltar para casa e ficar com sua família, ela havia corrido pela floresta a procura deles. Ansiosa e sedenta por respostas. Por causa de seu egoísmo havia perdido a chance de salvar vida de sua família. — Há de ser forte, Maybelle. Existem pessoas que precisam de sua força — Sussurrava o rei, afagando os cabelos da garota, que erguera os olhos para si — Eu preciso de sua força. Quando Maybelle retribuíra o olhar do rei, parecia enxergar um fio fino e duro. Duro o suficiente para se agarrar, se pendurar e sobreviver. Talvez, muito talvez, fosse aquele um fio de esperança. ───────•••─────── Será que me esquecerei de como você é? Será que esse dia chegará?
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