I. BRAVOURE

1046 Words
“Se lutarmos com fé estaremos duas vezes armados.” - Platão ━━━ • ❈ • ━━━ 02. Bravura A M A L I E Quando criança, eu não vira meu pai tanto quanto gostaria. Sua presença era marcante o suficiente para ser aproveitada apenas uma vez e nunca mais esquecida. Mas confesso que gostaria imensamente de ter tido mais oportunidades com ele. Papai era um dos soldados mais leais do rei, participando das guerras mais sangrentas. Naquela época, ele não retornava para casa com frequência. Contudo, depois que rei Linus decidiu nomeá-lo como seu conselheiro, a ausência deixava buracos cada vez mais impreenchíveis em nossas vidas. "— Posso estar longe, Amalie. Mas estarei sempre com vocês" — ele me garantia. E era o suficiente para que meu coração se acalmasse, mesmo com toda a saudade envolvida. Enquanto papai estava fora, não tínhamos como saber se estava vivo ou morto; enquanto mensageiros não nos trouxessem notícias, a agonia espetava nossos corações como agulhas. Mas mamãe nunca temeu o pior: "— Ele vive. Eu apenas sei" — era sua resposta quando questionada sobre o assunto. E ela nunca esteve errada até então. ❈ ❈ ❈ — Por que diz isso? — questionou mamãe a minha irmã mais nova. As demais tinham as pupilas dilatadas por conta dos olhos arregalados; os tons de verde brilhantes de medo. Soldados do rei... os saqueadores eram soldados do rei? Eu tinha mesmo mutilado um soldado do rei? Pior, tinha mesmo tirado a vida de um deles? — Eu vi quando aquele ali caiu... a capa escorregou. — O dedinho de Aurelie apontou para trás de nós, no chão. — Tinha uma serpente na armadura. Olhamos para onde a pequenina apontava: o homem já sem vida. Minha boca estava seca. Atacar um dos homens do rei era um crime mortal, considerado traição a coroa. A palavra "traição" me causava um intenso arrepio gelado na espinha, mais do que a morte em si. Mamãe esforçava-se para não esboçar temor... — Não diga bobagens, Aurelie. Foi um momento de medo. Seus olhos lhe enganaram. ... Mas eu podia vê-lo assombrando seu semblante. — Não é bobagem, mãe. Eu vi! Eu acreditava em minha irmã. Aurelie não mentia — pelo contrário, dizia verdades com uma sinceridade que a maioria dos adultos não possuía. Com sete aninhos de vida, minha caçula tinha os reflexos de uma coruja; percebia coisas que a maioria não era capaz de enxergar. Nossa mãe também acreditava nela. Eu sabia, podia sentir. Embora fosse melhor para todos que Aurelie estivesse mesmo mentindo. Aproximei-me do homem cujo olhar, agora vazio, mirava na direção do solo de nossa casa. — Me ajudem — pedi. Juntas, viramos o corpo de barriga para cima. A gravura da serpente na armadura de aço pareceu me desafiar. — Meninas, para o quarto! — mamãe ordenou. E após três reclamações diferentes, fomos deixadas a sós. — Mãe... — comecei. — Você está ferida. Com a ponta dos dedos, segui a parte de meu rosto para a qual seus olhos direcionavam. Senti minha pele úmida e ardida. "Um pequeno corte abaixo da sobrancelha, constatei, nada grave. Mas ainda assim, bem doloroso." Lembrei-me de ter acertado uma das pernas da mesa quando fui ao chão. — Não se preocupe comigo — tranquilizei. Afinal, minhas costas doíam muito mais do que aquele simples arranhão. E tínhamos problemas muito maiores para lidar. Porém não disse isso a ela. Mamãe continuou a me analisar. Seus lábios então comprimiram. — Não fique com medo. Meneei a cabeça. — Não estou. Medo era algo que eu não estava habituada a sentir — talvez por ser louca como Telo insistia em dizer; talvez porque tal sentimento não possuía espaço dentro de mim em meio a tantos outros. Eu era uma camponesa, sim. Mas também era uma guerreira treinada por meu pai para proteger nossa família. Não lutara em guerras como ele, no entanto, às vezes em que precisei lutar foram honradas pelas armas e a bravura com que as manuseei. Afinal, bravura era tudo o que eu tinha. Papai afirmava que cada uma de suas filhas era sustentada por sua própria qualidade: Aurelie, a coragem; Aveline, a pureza; Anastasie, a ternura; E eu, a bravura. Ele insistia que se cada uma de nós fosse um dos quatro elementos, eu sem dúvidas seria o fogo — não por causa da cor de meu cabelo, mas pelas chamas vívidas que habitavam meu ser. E ali naquele momento decisivo, se fosse necessário pagar por defender minhas irmãs... eu pagaria sem pestanejar. — Vá se lavar. Você está suja. Assenti para mamãe. Era necessário apenas alguns passos para cruzar a cozinha até meu quarto, que dividia com Anastasie, Aveline e Aurelie. As três estavam cochichando quando surgi na porta: — Mas ela vai para a forca! — Quieta, Aurelie! — Anastasie e Aveline repreenderam a menor. Sorri de canto para elas. — Quem vai para a forca? — Não é você, não! — a pequena entregou-se tão rápido que tive que rir. Entrei de vez no cômodo, soltando o broche que mantinha a capa presa ao corpo e jogando-a sobre minha cama. — É claro que não! O papai não vai deixar o rei sentenciar a Amalie — Aveline retrucou. Anastasie torceu o nariz. — É o papai que obedece o rei, e não o contrário. — Mas ele não pode deixar! — Aurelie exaltou-se mediante a opinião da mais velha. Eu achava incrível que apesar de não lembrar a mim fisicamente, ela conseguia ser tão parecida comigo em sua teimosia. Somente com o vestido, fui até a pequena tigela de barro que ficava na mesa de madeira onde deixávamos alguns poucos pertences. Com o auxílio de um pedaço de tecido que mergulhei na água, limpei o sangue seco do meu rosto e mãos. — Não fiquem pensando nisso — assegurei —, eu ficarei bem. Um silêncio incômodo pairou no quarto. A verdade é que eu não possuía garantias quanto minha vida. A probabilidade de perder minha cabeça por traição era colossal. Todavia, as palavras "não tenha medo", tão céticas e convictas saídas da boca de nossa mãe, fizeram-me acreditar por algum motivo que minha vida não se encerraria ali. E rezei para que não fosse apenas intuição.
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