“É inútil tentar fazer um homem abandonar pelo raciocínio coisa que não adquiriu pela razão.”
- Sócrates
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03. Carmesim
C H R I S T O P H E
O suor escorria por minha pele.
Eu gostava das noites: escuras, frescas e sombrias; gostava da lua e seu destaque prateado nas trevas do céu; das estrelas, as minúsculas gotas de brilho, pequenas luzes infinitas e espalhadas.
O grasnar dos corvos podia significar mau presságio para alguns, mas para mim, os pássaros eram como a própria escuridão em sua forma palpável: belos.
O luar enviava feixes pelos vitrais da fortaleza — a única pouca luz que não deixava o lugar ser um completo breu.
A fortaleza podia ser meu lar muito mais facilmente do que o próprio palácio.
O sono me considerava um inimigo. Nunca tivemos afinidade, e por isso meus olhos estavam sempre abertos no momento em que o resto do mundo dormia.
Então, eu treinava; duelava com um dos sacos de pancadas até reduzir todo seu enchimento a **; praticava com cada uma das armas até encontrar algo a mais que pudesse aprimorar. Espadas, adagas triplas, arcos, escudos, bestas, lanças, punhais...
Eu jamais me considerara bom o suficiente, embora m***r um homem como eu beirasse o impossível.
Meus batimentos cardíacos estavam acelerados em um nível quase preocupante. Minha boca deixava suspiros pesados escaparem. O cansaço me tomava.
O sono finalmente agraciava-me com pequenas doses de sua bênção.
Entretanto, parar não estava em meus planos.
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A voz soou abafada, distante:
— Majestade!
Minhas pálpebras pesavam, lutando para levantar. A sensação era de pregos afundados em cada uma delas.
Apesar disso, com custo, consegui acordar.
— Majestade!
O embaçado tomava minha visão.
Vi um borrão sem forma, de onde partia a voz que dirigia-se a mim.
Levei as mãos ao rosto.
Esfreguei os olhos. Os raios matinais queimaram minha visão.
Minha pele estava coberta somente com a calça de linho e as tiras de couro nas mãos.
Gaston estava diante de mim com uma expressão preocupada — creio que mais por minha possível aparência catastrófica do que pelo recado que teria para mim.
Minhas costas protestavam, o que fez-me pensar que ter dormido outra vez no chão da fortificação não fora a melhor das ideias.
Eu sequer lembrava do momento em que rendi-me ao sono.
Levantei e alonguei meu corpo dolorido, as articulações implorando por piedade.
— Bom dia, sir.
— Bom dia, meu rei. Peço perdão por acordá-lo. Mas a situação não pôde esperar.
Eu conhecia Gaston Auclair desde meu período de príncipe; desde que minha barba começara a crescer.
Soldado de meu falecido pai, ele fora nomeado como conselheiro do rei. E decidi que permaneceria assim quando a coroa passara a me pertencer.
Gaston não era jovem, mas também não era alguém que eu chamaria de velho. O cabelo loiro batia em seus ombros e sempre cobrira parte do rosto.
Não havia certeza quanto sua idade, mas eu lhe atribuía pouco mais de cinquenta. E para um cinquentanário veterano de guerra e braço direito do velho rei Linus por anos, eu considerava Gaston uma pessoa sensata.
Se ele dizia que a situação não podia esperar, era porque, de fato, não podia.
Aparei um bocejo com as mãos.
— O que aconteceu?
— A tropa que foi mandada ao sul acaba de retornar... — Fez uma pausa. — As notícias não são exatamente agradáveis para um café da manhã.
Cruzei os braços sobre o peito nu, interessado.
— Conte-me.
— É melhor ver com seus próprios olhos.
Ainda com a visão meio turva, acompanhei seus passos até o portão de ferro.
Gaston fez um gesto.
A tropa de dez soldados adentrou. Com apenas NOVE deles.
— Vossa majestade! — Os homens fizeram-me uma mesura.
Analisei o rosto de cada um.
— Onde está Bellamy?
Eles entreolharam-se. O cheiro de suas hesitações pairava no ar, circulando de seus lábios apertados até mim, que levantei as sobrancelhas.
— Preciso perguntar outra vez?
Neville pigarreou.
— Ele... ele está morto, majestade.
Troquei um olhar com Gaston. Sem usar palavras, ele me sugeriu com a expressão que aguardasse o resto da história.
— Morto... — incentivei Neville a continuar.
— Eles saquearam uma cidadela — Gaston informou —, parece que vem acontecendo há um tempo.
Umedeci os lábios, intrigado.
— Ah, é mesmo? Podem me especificar este "tempo"?
— Desde o reinado de seu pai, majestade. Que Deus o tenha — hesitou Neville —, nunca houve uma consequência assim...
Estreitei os olhos.
— Meu pai sabia disso?
— Ele... ele não se importava.
— Mas EU me importo. E a informação chegou a mim somente agora.
Gaston me olhou.
— Eu também não sabia.
— Não é sua índole que está em julgamento aqui, sir.
Encarei os nove homens enfileirados lado a lado, as mãos para trás e cabeças abaixadas.
— Eu exijo uma explicação.
Talbot resolveu se manifestar:
— Foi uma camponesa.
Por um segundo, fiquei em dúvida.
Não sabia o que me incomodava mais: uma mulher ter audácia suficiente para causar-me tamanho prejuízo, ou Gaston parecer extremamente assustado com a informação. O homem parecia estar diante de um fantasma.
— Uma camponesa?! — precisei confirmar antes de quaisquer conclusões —, que camponesa?
— A mesma que me fez isto. — As mãos de Talbot deixaram a posição anterior, sendo expostas a frente do corpo.
Ou ao menos, uma delas.
Ele livrou-se de uma espécie de tala, revelando o pulso completamente mutilado. Se existira uma mão ali, o que restava dela agora fora unicamente a lembrança.
Aprofundando a atenção nele, notei que a cor sumia de suas maçãs: estava pálido, não só as bochechas como principalmente a boca. Bolsas escuras residiam abaixo de seus olhos. E não precisei tocar nele para saber que devia estar frio.
Se a morte possuísse uma face, certamente seria aquela.
E por algum motivo, Gaston começava a adquirir a mesma aparência.
— O que há com você? — indaguei ao conselheiro.
— Perdão, majestade — pediu, e mirou nos soldados a frente —, por acaso essa camponesa teria cabelos de cor carmesim?
Talbot confirmou a ele:
— Vermelhos como o fogo do inferno.
O homem estava claramente perturbado quando voltou a me fitar:
— Tenho motivos para acreditar que a responsável por isso seja uma de minhas filhas, majestade.
Sacudi a cabeça para os lados.
— Há muitas ruivas no Reino Franco, sir.
Gaston baixou os olhos, mas sem olhar para algo em específico; perdido.
— Mas apenas uma com tamanha ousadia.