II. CRAMOISE

1098 Words
“É inútil tentar fazer um homem abandonar pelo raciocínio coisa que não adquiriu pela razão.” - Sócrates ━━━ • ❈ • ━━━ 03. Carmesim C H R I S T O P H E O suor escorria por minha pele. Eu gostava das noites: escuras, frescas e sombrias; gostava da lua e seu destaque prateado nas trevas do céu; das estrelas, as minúsculas gotas de brilho, pequenas luzes infinitas e espalhadas. O grasnar dos corvos podia significar mau presságio para alguns, mas para mim, os pássaros eram como a própria escuridão em sua forma palpável: belos. O luar enviava feixes pelos vitrais da fortaleza — a única pouca luz que não deixava o lugar ser um completo breu. A fortaleza podia ser meu lar muito mais facilmente do que o próprio palácio. O sono me considerava um inimigo. Nunca tivemos afinidade, e por isso meus olhos estavam sempre abertos no momento em que o resto do mundo dormia. Então, eu treinava; duelava com um dos sacos de pancadas até reduzir todo seu enchimento a **; praticava com cada uma das armas até encontrar algo a mais que pudesse aprimorar. Espadas, adagas triplas, arcos, escudos, bestas, lanças, punhais... Eu jamais me considerara bom o suficiente, embora m***r um homem como eu beirasse o impossível. Meus batimentos cardíacos estavam acelerados em um nível quase preocupante. Minha boca deixava suspiros pesados escaparem. O cansaço me tomava. O sono finalmente agraciava-me com pequenas doses de sua bênção. Entretanto, parar não estava em meus planos. ❈ ❈ ❈ A voz soou abafada, distante: — Majestade! Minhas pálpebras pesavam, lutando para levantar. A sensação era de pregos afundados em cada uma delas. Apesar disso, com custo, consegui acordar. — Majestade! O embaçado tomava minha visão. Vi um borrão sem forma, de onde partia a voz que dirigia-se a mim. Levei as mãos ao rosto. Esfreguei os olhos. Os raios matinais queimaram minha visão. Minha pele estava coberta somente com a calça de linho e as tiras de couro nas mãos. Gaston estava diante de mim com uma expressão preocupada — creio que mais por minha possível aparência catastrófica do que pelo recado que teria para mim. Minhas costas protestavam, o que fez-me pensar que ter dormido outra vez no chão da fortificação não fora a melhor das ideias. Eu sequer lembrava do momento em que rendi-me ao sono. Levantei e alonguei meu corpo dolorido, as articulações implorando por piedade. — Bom dia, sir. — Bom dia, meu rei. Peço perdão por acordá-lo. Mas a situação não pôde esperar. Eu conhecia Gaston Auclair desde meu período de príncipe; desde que minha barba começara a crescer. Soldado de meu falecido pai, ele fora nomeado como conselheiro do rei. E decidi que permaneceria assim quando a coroa passara a me pertencer. Gaston não era jovem, mas também não era alguém que eu chamaria de velho. O cabelo loiro batia em seus ombros e sempre cobrira parte do rosto. Não havia certeza quanto sua idade, mas eu lhe atribuía pouco mais de cinquenta. E para um cinquentanário veterano de guerra e braço direito do velho rei Linus por anos, eu considerava Gaston uma pessoa sensata. Se ele dizia que a situação não podia esperar, era porque, de fato, não podia. Aparei um bocejo com as mãos. — O que aconteceu? — A tropa que foi mandada ao sul acaba de retornar... — Fez uma pausa. — As notícias não são exatamente agradáveis para um café da manhã. Cruzei os braços sobre o peito nu, interessado. — Conte-me. — É melhor ver com seus próprios olhos. Ainda com a visão meio turva, acompanhei seus passos até o portão de ferro. Gaston fez um gesto. A tropa de dez soldados adentrou. Com apenas NOVE deles. — Vossa majestade! — Os homens fizeram-me uma mesura. Analisei o rosto de cada um. — Onde está Bellamy? Eles entreolharam-se. O cheiro de suas hesitações pairava no ar, circulando de seus lábios apertados até mim, que levantei as sobrancelhas. — Preciso perguntar outra vez? Neville pigarreou. — Ele... ele está morto, majestade. Troquei um olhar com Gaston. Sem usar palavras, ele me sugeriu com a expressão que aguardasse o resto da história. — Morto... — incentivei Neville a continuar. — Eles saquearam uma cidadela — Gaston informou —, parece que vem acontecendo há um tempo. Umedeci os lábios, intrigado. — Ah, é mesmo? Podem me especificar este "tempo"? — Desde o reinado de seu pai, majestade. Que Deus o tenha — hesitou Neville —, nunca houve uma consequência assim... Estreitei os olhos. — Meu pai sabia disso? — Ele... ele não se importava. — Mas EU me importo. E a informação chegou a mim somente agora. Gaston me olhou. — Eu também não sabia. — Não é sua índole que está em julgamento aqui, sir. Encarei os nove homens enfileirados lado a lado, as mãos para trás e cabeças abaixadas. — Eu exijo uma explicação. Talbot resolveu se manifestar: — Foi uma camponesa. Por um segundo, fiquei em dúvida. Não sabia o que me incomodava mais: uma mulher ter audácia suficiente para causar-me tamanho prejuízo, ou Gaston parecer extremamente assustado com a informação. O homem parecia estar diante de um fantasma. — Uma camponesa?! — precisei confirmar antes de quaisquer conclusões —, que camponesa? — A mesma que me fez isto. — As mãos de Talbot deixaram a posição anterior, sendo expostas a frente do corpo. Ou ao menos, uma delas. Ele livrou-se de uma espécie de tala, revelando o pulso completamente mutilado. Se existira uma mão ali, o que restava dela agora fora unicamente a lembrança. Aprofundando a atenção nele, notei que a cor sumia de suas maçãs: estava pálido, não só as bochechas como principalmente a boca. Bolsas escuras residiam abaixo de seus olhos. E não precisei tocar nele para saber que devia estar frio. Se a morte possuísse uma face, certamente seria aquela. E por algum motivo, Gaston começava a adquirir a mesma aparência. — O que há com você? — indaguei ao conselheiro. — Perdão, majestade — pediu, e mirou nos soldados a frente —, por acaso essa camponesa teria cabelos de cor carmesim? Talbot confirmou a ele: — Vermelhos como o fogo do inferno. O homem estava claramente perturbado quando voltou a me fitar: — Tenho motivos para acreditar que a responsável por isso seja uma de minhas filhas, majestade. Sacudi a cabeça para os lados. — Há muitas ruivas no Reino Franco, sir. Gaston baixou os olhos, mas sem olhar para algo em específico; perdido. — Mas apenas uma com tamanha ousadia.
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