O peso do nosso sobrenome

1393 Words
P.D.V de Kaiden. O refeitório fervilhava com vozes, risadas e o tilintar de bandejas. Eu estava com meu grupo habitual — os populares, como todos os outros insistiam em chamar — mas minha mente estava em outro lugar. Ou melhor... em uma só pessoa. Ela entrou como um raio de luz em meio à rotina monótona do meu dia. Kayla. Por um instante, o mundo ao redor se calou. Ela caminhava com aquele jeito quase inocente, olhando ao redor com curiosidade genuína. Seu cabelo brilhava sob a luz do teto, com aquele tom loiro acobreado tão raro, tão dela. Os olhos azuis límpidos varriam o ambiente, atentos, mas discretos. Tinha uma aura diferente. Única. Meu coração bateu mais rápido, e não pela primeira vez desde que a vi naquele dia no jardim, na foto enviada por engano. E agora, ali, em carne e osso, Kayla era ainda mais hipnotizante. Senti algo se retorcer dentro de mim. Um desejo bruto, primitivo, misturado com um instinto feroz de protegê-la. Cada olhar que outro garoto lançava em sua direção me incomodava como uma agulha fincada na pele. Uma vontade irracional de erguer cercas ao redor dela, de deixá-la invisível aos olhos alheios. Ela era minha irmã. Mas, ao mesmo tempo não era. Não do modo que eu sentia. Algo dentro de mim gritava que ela era mais. Que ela era minha — minha alma gêmea, minha conexão inexplicável. Eu sentia isso desde a primeira vez que ouvi seu nome. Como se o universo tivesse feito um acerto sutil, mas definitivo, no momento em que ela voltou para minha vida. Ela riu com a amiga nova, e eu sorri por reflexo. Mas logo meu maxilar se travou quando percebi um idiöta do terceiro ano olhando demais. Imbëcil. O olhar dele era baixo, como se quisesse despir o que não poderia sequer tocar. A simples ideia de outro homem desejando Kayla me fez desejar levantar e quebrar alguma coisa. Ou alguém. Fingi ouvir as garotas ao meu redor, mas já estava cansado delas. As mesmas risadas vazias. Os mesmos jogos baratos. Muitas delas se jogavam para mim, mas eu via por trás das máscaras. Eram corpos bonitos, vazios por dentro. Nenhuma mente afiada, nenhuma alma que se igualasse à dela. Kayla era diferente. Ela tinha o brilho de alguém que cria, que sente, que descobre. Havia nela uma inteligência que queimava como fogo sob a superfície calma. E isso me atraía mais do que eu poderia confessar — até mesmo para mim mesmo. Mas não posso demonstrar. Não posso nem deixar transparecer. Ela confia em mim. Me olha como seu porto seguro. E é isso que eu preciso ser. Mesmo que, por dentro, tudo em mim clame por mais. O sol começava a se esconder quando a vi se aproximando da entrada principal da escola. A mochila pendurada em um ombro, os cabelos presos de maneira despretensiosa, algumas mechas soltas dançavam ao vento. Meu peito apertou. Ela me viu e sorriu — aquele sorriso pequeno, verdadeiro, como se só de me ver, o dia dela melhorasse. Aquilo me atingiu de cheio, como um soco silencioso no estômago. Me forcei a não demonstrar nada além de tranquilidade, como um irmão mais velho cuidadoso. Mas por dentro, por dentro eu lutava contra um mar revolto. — Achei que tivesse se perdido — Falei tentando parecer normal, mas acabei parecendo meio cínico. — Tive aula o dia inteiro — ela falou com o peso do mundo, mas tentando parecer normal e tranquila. Continuei com voz baixa mas incisiva meu questionamento: — Então, ninguém te provocou? Te perturbou? Ou deu em cima de você? — Kaiden… — Ela pareceu surpresa. — Está tudo bem, de verdade, e a resposta é Não, não e não. Nessa ordem. Eu esfreguei a nuca, estava frustrado. Eu vi como olhavam para ela, principalmente os homens, professores, adultos, ela é menor de idade, uma menina ainda, MINHA menina. Que eu devo proteger, ensinar, ficar ao lado como seu guardião e seu companheiro. — Você não entende — disse, com a voz mais grave do que queria. — Aqui, você vai chamar atenção. E isso me incomoda. Porque sei do que as pessoas são capazes. Dos sorrisos falsos. Das intenções escondidas. Houve um silêncio tenso entre nós. — Eu só quero estudar viver uma vida normal — ela fala calmamente me dando um pequeno sorriso. — Você não precisa se preocupar o tempo inteiro. Obviamente mantive meu tom firme, deixando claro minhas convicções: — Mas eu vou. Se alguém se aproximar de você com algo além de respeito, eles vão ter que se ver comigo. Ela baixou o olhar por um instante, como se algo dentro dela tivesse captado o que eu não disse. — Você é intenso às vezes — ela murmurou, abrindo a porta do carro. — Só com quem importa. Ficamos em silêncio por alguns segundos quando ela já estava ao meu lado no banco de trás. O carro arrancou. Então, sem pensar, minha mão buscou a dela. Um gesto fraterno, comum, para qualquer um olhando de fora. Mas por dentro, minha pele queimava em contato com a dela. E quando ela não recuou, quando seus dedos entrelaçaram com os meus com naturalidade. Eu soube. Estava perdido. Mas ainda assim, eu seria tudo o que ela precisasse. Irmão, guardião ou o que o destino ousasse me permitir ser. O carro seguia em silêncio, mas minha mente estava em ebulição. Kayla estava ali, sentada ao meu lado, tão perto e tão longe ao mesmo tempo. Era um tormento doce — vê-la, sentir sua presença, ouvir sua respiração leve — e ao mesmo tempo, saber que chamá-la de irmã era o que me impedia de chamá-la de algo muito mais profundo. Ela virou o rosto em minha direção, os olhos azuis límpidos refletindo um brilho de curiosidade. — Kaiden… — ela disse, com aquela voz suave que sempre me desarma — me fala mais sobre a nossa família, sobre os Prescott. Eu notei como esse nome pesa quando é mencionado. O modo como ela disse "nossa família" causou um aperto estranho no meu peito. Era reconfortante e crüel ao mesmo tempo. Eu respirei fundo e apertei de leve a mão dela, mais por impulso do que razão. Tocar nela acalmava algo em mim. Me ancorava. — O nome Prescott — comecei, tentando manter a voz firme — não é só um sobrenome. É um legado. Carregamos responsabilidades, conexões e expectativas. Somos conhecidos, respeitados — e temidos — em muitos círculos. Ela me ouviu em silêncio. Os olhos dela me buscavam como se tentassem decifrar quem eu era. — Nosso pai, Richard Prescott, é um titã no mundo corporativo. Nossa mãe, Eleanor, vem de uma linhagem aristocrática, sangue frio com coração quente. Ela equilibra tudo com classe. — E onde eu me encaixo nisso tudo? — ela perguntou, com um sussurro quase dolorido. — Se sou filha deles por que só agora? Engoli em seco. Queria dar respostas. Queria protegê-la da dor da dúvida. Mas eu também não sabia dos detalhes. Eu sabia o suficiente pra entender que alguém a afastou de nós e que agora, tê-la de volta me fazia sentir completo. — A verdade vai vir à tona — respondi. — Eles prometeram isso a você. A nós. Mas saiba você não foi esquecida. Nunca foi. Estávamos incompletos sem você, Kayla. Me viro um pouco, pra observá-la melhor. Como se os traços dela me lembrassem de algo que sempre sonhei. Cabelos dourados com um brilho cobre sob a luz, pele como porcelana, olhos que me encaravam como se lessem tudo que tento esconder. Meu coração bate acelerado só de estar perto. — Prescott parece só um nome bonito — ela comentou, sorrindo de leve. Eu sorri também, mas por dentro algo queimava. — Não é só bonito. É identidade. É legado. É destino. Poder. — Pausei. — E agora também é seu. Mas não era isso que eu queria dizer. Eu queria dizer que, por mais que esse sobrenome nos unisse como irmãos, meu coração gritava por algo além. Algo que nenhuma garota comum poderia despertar. Porque eu nunca toquei nenhuma. Nunca desejei nenhuma. Sempre soube que esperava alguém. E era ela. Minha alma reconhece a dela. Mas, tudo que posso fazer é apertar sua mão. E guardar meu segredo no silêncio do caminho de casa.
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