6. A Verdade Que Faltava

1949 Words
Theo caminhava rápido, determinado, como se soubesse exatamente para onde precisava ir — e como se cada segundo fosse importante. Eu o acompanhava em silêncio, sentindo a tensão dele quase como um campo de energia ao redor. A escola fervilhava depois do comunicado. Os grupos se formavam pelos cantos, as vozes eram baixas, curiosas, desconfiadas. Mas ninguém tentava nos parar. Ninguém chamava nossos nomes. Era como se todos soubessem que aquilo não era mais assunto de corredor. Era maior. Theo me guiou para o bloco antigo, onde quase ninguém circulava naquela hora. O corredor era mais silencioso, com janelas amplas que deixavam o sol fraco da tarde entrar. — Aqui? — perguntei. — Não. — ele respondeu, sem desacelerar. — Mais pra frente. Passamos pela sala velha de artes, pelo depósito trancado, até que ele parou diante de uma porta de madeira escura — sem placa, sem identificação, quase esquecida ali. Ele respirou fundo antes de tocar na maçaneta. — O que é essa sala? — perguntei. — Um espaço que ninguém usa mais. — ele disse. — A escola deixou abandonado depois da reforma. Eu senti o coração acelerar. Não por medo — mas porque era nítido que aquele lugar significava algo pra ele. Theo abriu a porta devagar. Um cheiro de poeira leve saiu dali. A sala estava vazia, com caixas antigas encostadas nas paredes, algumas cadeiras empilhadas e um quadro branco gasto no fundo. A luz entrava pela janela, deixando o ambiente claro o bastante para que nada parecesse pesado. Theo entrou primeiro. Eu entrei depois. Ele fechou a porta atrás de nós. Nada trancado. Nada escondido. Só… privacidade. Ele ficou de frente para mim. O silêncio durou alguns segundos — aqueles que sempre antecedem uma verdade grande demais. — Foi aqui. — ele disse. Eu franzi o cenho. — Aqui… o quê? Theo olhou ao redor, como se revisse uma memória que não queria revisitar. — Aqui foi onde tudo começou com a Júlia. Meu peito apertou. — O primeiro boato? — perguntei. — Não. A primeira vez que ela me contou que alguém estava mexendo com ela por minha causa. Senti o estômago virar. — O irmão dela? Theo assentiu. — Ela não sabia no começo. Eu também não. Respirou fundo. — Mas foi aqui que ela me contou que alguém estava enviando mensagens pra ela… usando o meu nome. Eu senti o coração acelerar. Era exatamente o tipo de coisa que alguém faria para manipular. — Mensagens… como? — perguntei. Theo passou a mão pelo cabelo, como se precisasse de coragem. — Mensagens dizendo que eu gostava dela. Que eu tinha falado coisas sobre ela. Coisas que eu nunca disse. Meu peito apertou com força. — E ela acreditou? — Ela queria acreditar em mim. — ele respondeu, sincero. — Mas quando você vê algo escrito com seu nome… é difícil ignorar. Eu engoli seco. — Isso aconteceu mais de uma vez? — Várias. Ele olhou para o chão. — E toda vez que ela tentava me contar… parecia que alguém já tinha manipulado a situação antes. Theo levantou os olhos. — E agora tá acontecendo com você. A verdade atingiu de forma direta. Eu respirei fundo. — Theo… ele tá repetindo exatamente o que fez antes. — Sim. — ele disse. — Começa com uma mensagem. Depois vem o print. Depois vem a denúncia. Eu fechei a mão, tensa. — Mas por que ele faria isso de novo? — perguntei. Theo ficou em silêncio por alguns segundos longos. Então respondeu: — Porque ele acha que eu deixei a irmã dele sofrer sozinha. E agora quer que eu sinta o mesmo. A sala pareceu se contrair ao redor. — Theo… a Júlia sofreu tanto assim? — perguntei, minha voz mais baixa do que pretendia. Ele respirou fundo — aquele tipo de respiração que prepara o corpo para uma lembrança difícil. — Ela foi ficando isolada. Primeiro, foram as fofocas. Depois, as mensagens falsas. Daí veio a pressão do irmão dela dizendo que eu era o culpado. Theo apertou os olhos por um instante. — E eu tentei ajudar. Juro que tentei. Mas quanto mais eu tentava… mais gente dizia que eu tava fazendo pior. Meu coração doeu por ele. — E o final? — perguntei, quase sem voz. Theo engoliu seco. E finalmente disse: — O final… foi quando ela acreditou que eu tinha machucado ela de propósito. Ela parou de falar comigo sem explicar nada. E depois saiu da escola da noite pro dia. Eu senti algo apertar dentro do peito — uma mistura de compaixão, surpresa, tristeza e medo. Porque, de repente, tudo fez sentido. Tudo se encaixava. Todos os padrões. Todas as repetições. Eu respirei fundo e disse: — Theo… você não quer que eu faça o mesmo que ela. Ele se aproximou um passo. Só um. Mas foi o bastante para sentir o peso do que ele carregava. — Não. A voz dele saiu baixa, firme, verdadeira. — Eu não quero perder você do jeito que perdi ela. Pelo erro de outra pessoa. Eu fiquei imóvel. Meu coração bateu rápido demais. Ele continuou, a voz trêmula: — Eu sabia que, se você descobrisse do jeito errado… podia acreditar no que ele quer que você acredite. E eu não ia suportar ver isso acontecer de novo. Fiquei em silêncio. Não porque não tinha resposta. Mas porque era muito. Era imenso. E, pela primeira vez desde o início, percebi: Theo não estava tentando se proteger. Ele estava tentando me proteger. Da história dele. Do passado dele. De alguém que ainda queria machucar. E, talvez… tentar reparar o que não conseguiu antes. Ele respirou fundo. — Agora você sabe o começo. Mas eu ainda não te contei o pior. Meu coração disparou. — O pior? — perguntei, quase num sussurro. Theo assentiu. — O que realmente fez a Júlia ir embora. Ele ia continuar. E era ali — exatamente ali — que começava a verdade que faltava. Theo ficou em silêncio depois de dizer: “Ainda não te contei o pior.” O tipo de frase que não deixa espaço para pensar em mais nada. A sala parecia menor. O ar parecia mais denso. E, pela primeira vez, Theo parecia realmente vulnerável — não por medo de mim, mas por medo da própria verdade. Ele caminhou até a janela, apoiou a mão no parapeito e respirou fundo, como se reorganizasse a memória antes de falar. — A Júlia… não foi embora só pelo que os boatos fizeram com ela, ela foi embora pelo que o irmão dela fez para “proteger” ela. Meu peito apertou imediatamente. — O irmão dela… manipulou ela? — perguntei. Theo balançou a cabeça devagar. — Ele manipulou tudo, a história, as mensagens, os prints e até o que ela acreditava sobre mim. Eu dei um passo à frente, sentindo a tensão crescente. — Theo… me explica, por favor. Ele virou de frente pra mim, finalmente. O olhar estava firme, mas havia dor ali — dor antiga, acumulada. — Quando a Júlia começou a sofrer com os boatos… ela procurou o irmão, já que la achou que ele podia ajudar, mas o que ele fez o contrário. — O contrário como? — perguntei. Theo respirou fundo, pela terceira vez. — Ele dizia pra ela que eu era o culpado. Que eu usava ela. que eu estava deixando ela m*l de propósito e que eu era igual “todos os outros”. — Mas você não fez nada disso. — Não fiz. — ele respondeu na hora, sem hesitar. — Nunca fiz. Eu sabia. Eu sentia isso. — Só que… quando você ouve a mesma coisa todo dia — Theo continuou, mais baixo — você acredita. E a Júlia acreditou. Senti uma mistura de tristeza e raiva. — E o irmão? — perguntei. — Qual era o interesse dele nisso? Theo apertou os lábios, como se entrasse na parte mais difícil. — Ele sempre foi controlador. Ele não aceitava que ela tivesse amigos que ele não aprovava. E quando ela se aproximou de mim… ele surtou. O estômago deu um nó. — Ele tinha ciúmes dela? — perguntei, tentando entender. — De tudo. — Theo respondeu. — Da vida dela, e do que ela fazia quando ele não podia controlar. O silêncio ficou pesado. Eu me dei conta do quão tóxica aquela dinâmica era. Theo respirou fundo. — Quando os boatos começaram, ele usou isso pra fazer ela depender dele. E pra me transformar no inimigo perfeito. — O inimigo que ele precisava pra manter ela perto. — Isso. — Theo disse, com a voz séria. — A Júlia acreditou que eu era o problema… quando, na verdade, o problema sempre esteve dentro da própria casa. Meu peito apertou com força. — E o final, Theo? — perguntei. — O momento em que ela decidiu ir embora? Ele fechou os olhos por um instante. Quando abriu, havia uma tristeza profunda — como se ele estivesse revivendo o dia. — Ela me mandou uma mensagem. Só uma. Dizendo que não queria mais falar comigo… e que era melhor assim. — Só isso? Theo assentiu. — Nunca ouvi a voz dela de novo. No dia seguinte, ela não apareceu na escola. No outro também não. E, quando percebi, ela já tinha saído sem avisar ninguém. Eu engoli seco. — Você acha que foi decisão dela? Theo balançou a cabeça devagar. — Acho que foi uma decisão dele. Ele tirou ela daqui antes que eu pudesse conversar, antes que ela pudesse descobrir a verdade. Eu senti a pele arrepiar. Não por medo — mas por empatia. Por dor. Por imaginar o peso que aquilo deixou nos dois. Theo continuou: — A última coisa que eu soube… foi que ela começou a tratamento psicológico. E que não podia ter contato comigo de jeito nenhum. A respiração ficou presa na minha garganta. — Ele proibiu? — Ele “convenceu” ela. — Theo corrigiu — Distorceu tudo o que acontecia até ela acreditar que eu era a pior parte da vida dela. Eu fiquei em silêncio. Theo passou a mão nos cabelos, claramente abalado. — Agora você entende o motivo de eu estar com medo? O medo de que alguém faça você acreditar nas mesmas coisas. Meu peito apertou de novo. Eu me aproximei um passo. — Eu não sou a Júlia, Theo. — Eu sei. — ele disse. E sua voz tremeu pela primeira vez. — Mas ele acha que você é. E tá tentando repetir tudo com você. Um silêncio profundo preencheu o ar. Eu senti a verdade bater forte: Eu estava no centro da história que destruiu a Júlia… mas desta vez, eu tinha algo que ela não teve. A verdade sendo dita antes de ser tarde demais. Theo respirou fundo. — Agora você sabe o porquê do meu medo, o por que eu tentei te afastar no começo. Mas você… você ficou. Meu coração bateu mais forte. — Eu fico porque quero. — respondi — Não por boato. Não por pressão. Por escolha. Theo segurou o ar, como se aquela frase tivesse feito alguma coisa dentro dele desabar — não de dor, mas de alívio. Ele abriu a boca para responder… Mas alguém bateu na porta. Não forte. Não agressivo. Uma batida simples. Theo ficou rígido. Eu virei na direção do som. E a voz do professor ecoou do outro lado: — Lívia… você pode vir aqui um instante? É importante. Theo me olhou imediatamente. — Não vai sozinha. — ele disse, sério. Eu engoli o medo. Porque agora estava claro: Não era mais uma história antiga repetindo. Era uma nova começando — e eu estava no centro.
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