1. A Carona

1656 Words
O dia começou pesado, como se o ar tivesse decidido acordar antes de mim. O céu estava nublado, mas não o bastante para chover; só o bastante para anunciar que algo estava prestes a acontecer. Eu sempre soube ler silêncios. E aquele tinha cheiro de mudança. Arrumei o uniforme no espelho e respirei fundo antes de descer. Minha mãe falava no telefone com alguma tia distante, fingindo entusiasmo. Meu pai mexia no café como quem gira o próprio cansaço. Era tudo tão previsível que, às vezes, eu tinha a sensação de viver num looping infinito. Fui até a porta, pronta para fazer o trajeto de sempre até a escola. Andar me ajudava a colocar as emoções em ordem. Mesmo as que eu fingia não sentir. Dara, minha cachorra, me acompanhou pelo portão. A cauda balançava no ritmo de quem ainda acreditava que o mundo era simples. — Volto depois — murmurei, mesmo sabendo que ela não entendia, mas sempre escutava. A rua estava úmida da chuva da madrugada. O vento frio descia pelos fios de cabelo, e eu enfiava as mãos no bolso para fingir que isso me incomodava menos do que realmente incomodava. A escola apareceu no final da rua como sempre: grande demais, barulhenta demais, cheia de gente demais para alguém como eu. Não que eu fosse antissocial. Eu só não via sentido em desperdiçar energia com gente que não sabia ouvir. O portão já estava aberto e, como sempre, alunos se aglomeravam ali. Gente falando alto, rindo, reclamando da vida que ainda nem tinha começado de fato. E então ele chegou. O carro preto deslizou pela rua como se o asfalto tivesse sido colocado ali só para ele passar. Vidros escuros, pintura impecável, motor que ronronava de um jeito que chamava atenção mesmo de quem fingia não se importar. Theo Navarro estacionou no canto direito. E, como sempre, todos olharam. Ele saiu do carro com a tranquilidade irritante de quem sabe que é observado. Jaqueta jeans escura, mochila jogada no ombro, passos lentos. Não precisava fazer esforço. O mundo fazia barulho por ele. E, como sempre, eu desviei o olhar. Theo era o tipo de garoto que bagunçava o equilíbrio de qualquer lugar onde entrava. Eu não precisava disso. Eu tinha meu próprio caos para administrar. Passei por ele sem fazer contato visual, e foi assim que imaginei que o dia seguiria: previsível, repetitivo e silencioso. Mas o universo sempre teve um gosto estranho por ironia. A primeira aula foi como tantas outras. História. Professor falando sobre eras e impérios como se o mundo nunca tivesse mudado. Eu só pensava no trabalho que teria que entregar na próxima semana. Quando o sinal tocou, o corredor se encheu. Gente correndo. Gente rindo. Gente vivendo impulsivamente como se nada tivesse consequência. Eu estava indo para o pátio quando ouvi meu nome. — Lívia! — Maria me chamou. — O diretor quer falar com você. Agora. Meu estômago afundou. Diretor nunca chama alguém para dar boas notícias. Fui até a sala dele com o passo firme, tentando não demonstrar a inquietação que sentia. Ele me recebeu com um sorriso que parecia treinado. — O ônibus da linha cinco que você pega não vai passar hoje. Problema no ponto, parece. Você precisa de carona para voltar? — Eu vou andando. — É longe. — Eu gosto de andar. Ele respirou fundo. — Já providenciamos. Um responsável virá te deixar em casa. Pode ficar tranquila. — Não precisa — insisti. — Eu volto sozinha. — É uma ordem da escola. E, no mesmo instante, senti que minha calma estava com as horas contadas. *********** Era fim da tarde quando a secretária me chamou. O “responsável” tinha chegado. E, assim que virei o corredor do estacionamento, soube que minha vida tinha acabado de dobrar para uma rua sem saída. Theo estava encostado no próprio carro, braços cruzados, expressão neutra que não escondia nada — e, ao mesmo tempo, escondia tudo. Ele me olhou como se já soubesse que eu ia protestar. — Não fui eu que ofereci — disse antes que eu abrisse a boca. — O diretor pediu. Só aceitei. — Eu não preciso disso — respondi. — Não é sobre precisar. É sobre não ter escolha. A forma como ele falou me irritou mais do que eu gostaria de admitir. — Entra logo antes que chova — completou. Olhei para o céu. Não parecia que ia chover. Mas eu sabia que essa frase não era sobre o clima. Com um suspiro resignado, abri a porta. E foi assim — entre o tique do motor e a respiração contida — que a história começou. Não com um toque, nem com um olhar prolongado. Mas com um silêncio. Um silêncio que guardava algo que eu ainda não sabia traduzir. Algo que mudaria tudo. ******* Entrei no carro como quem entra num território desconhecido. O estofado tinha cheiro leve de menta e algo amadeirado, provavelmente o perfume dele misturado ao interior limpo demais do veículo. Fechei a porta devagar, tentando não parecer tão deslocada quanto me sentia. Theo deu a volta, abriu a porta do motorista e entrou, ajustando o banco sem pressa. Cada movimento dele parecia calculado. Ou confortável demais para ser pensado. — Coloca o cinto. — disse, sem me olhar. — Eu sei. — Não pareceu saber. Revirei os olhos e puxei o cinto, estalando o encaixe mais alto do que pretendia. Ele sorriu de canto — não de deboche, mas como se tivesse entendido exatamente o que eu estava fazendo: tentando parecer inabalável. O motor ligou com um ronco leve. O som preencheu o silêncio entre nós, misturado à minha respiração presa. Theo dirigiu sem pressa, como se tivesse todo o tempo do mundo, e isso só me deixava mais inquieta. A rua estava quase vazia. O céu começava a ganhar um tom alaranjado, aquele momento do dia em que a cidade parece respirar fundo antes da noite chegar. — O diretor falou muito? — ele perguntou de repente. — Não. Só disse que você ia me levar. — respondi sem emoção. — E você não discutiu? — Eu discuti. Theo riu, sem tirar os olhos da estrada. — Claro que discutiu. — E por que “claro”? Ele virou apenas o suficiente para me encarar por meio segundo. — Porque você tem cara de quem não aceita que decidam por você. Aquilo me atingiu de um jeito estranho. Como se ele tivesse arrancado uma camada que eu nem sabia que mostrava. Pisquei, desviando o olhar para a janela. — Me chamando de teimosa? — perguntei. — De sincera. — respondeu. Fiquei em silêncio. Não porque não tinha resposta — mas porque não esperava essa. Eu esperava ironia. Sarcasmo. A máscara típica dele. Mas naquela frase, havia só… verdade. O carro seguiu pela avenida principal. As pessoas passavam rápido, vitrines acesas, o som distante de buzinas. Mas lá dentro, o mundo parecia mais lento. Theo mexeu no volume do rádio, deixando a música quase imperceptível. Um som indie melancólico, batida suave. Combinação perfeita para qualquer interpretação que meu cérebro tentasse fazer daquela situação. — Você sempre anda sozinha? — ele perguntou. — Sim. — Por escolha? — Por paz. Ele sorriu, mas dessa vez o sorriso caiu rápido, como se algo tivesse puxado sua tranquilidade. — Paz é rara. — murmurou. Olhei para ele. Não era uma frase jogada. Tinha peso. Tinha história. Mas antes que eu pudesse perguntar o que ele queria dizer, ele virou à esquerda sem aviso. — Minha casa é pro outro lado. — falei, tensa. — Eu sei. — respondeu. — Mas esse caminho é mais rápido. Tem menos trânsito. Assenti, mesmo desconfiada. Theo tinha esse problema: tudo nele parecia meio verdade e meia provocação. E eu não tinha habilidade social suficiente para descobrir quando ele estava falando sério. De repente, a chuva começou. Não forte — só algumas gotas teimosas batendo no vidro. O barulho trouxe uma sensação estranha: familiar e desconfortável. Theo aumentou um pouco o limpador. — Parece que você chamou a chuva. — disse. — Não tenho esse poder. — Tem cara de quem teria. Ri baixo, surpresa comigo mesma. Ele também percebeu. E o jeito como o canto da boca dele subiu me fez perder o ar por um instante curto demais para admitir. Viramos na última rua antes da minha. O silêncio havia se transformado em outra coisa — menos denso, menos hostil. Mas ainda carregava uma tensão invisível. Theo estacionou devagar em frente ao meu portão. O motor ainda ligado, o rádio num volume baixo o bastante para não atrapalhar o som da chuva fina. — Foi m*l pelo incômodo. — falei, tentando encerrar aquilo de forma educada. — Não foi incômodo. — respondeu. — E você não precisa agradecer. Olhei pra ele, confusa. — Eu não agradeci. Ele soltou um riso curto, satisfeito. — Eu sei. Por um segundo, tive a sensação de que essa conversa precisava terminar ali — antes que ficasse profunda demais. Antes que eu me permitisse entender qualquer coisa sobre ele. — Tá — murmurei, abrindo a porta. — Até amanhã. — Lívia? Parei. — Oi? Ele me olhava com atenção demais, mas sem arrogância. Sem aquele ar de “eu sei de tudo” que ele costumava carregar. — Você não precisa ter medo de mim. Senti o coração errar o ritmo. Não porque parecia ameaça — mas porque parecia verdade demais. Engoli seco. — Eu não tenho medo. — Tem sim. — disse, suave. — Mas não precisa. Não respondi. Não consegui. Saí do carro antes que ele pudesse ver qualquer coisa no meu rosto que eu mesma ainda não sabia explicar. A chuva aumentou. Só um pouco, só o suficiente para ser ouvida. E enquanto eu atravessava o portão, ouvi o motor do carro se afastando. Devagar, como se ele estivesse esperando que eu olhasse para trás. Eu não olhei. Mas quis.
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