No dia seguinte, o ar parecia pesado demais para uma manhã comum.
Do tipo que gruda na pele e avisa, antes de qualquer palavra dita, que algo escapou do controle.
Eu não precisava entrar no portão para saber.
Sabia pelos passos apressados, pelos olhares que atravessavam a grade, pelas conversas abafadas que paravam quando alguém se aproximava.
O boato tinha nascido.
E, como tudo que nasce no ambiente perfeito para o caos, ele cresceu rápido.
Maria me encontrou ainda na calçada, com o rosto tenso demais para esconder.
— Não abre o celular. — foi a primeira coisa que ela disse.
Meu estômago se fechou.
— Já começou? — perguntei.
— Começou ontem, Livi. Só ganhou forma hoje.
Entramos juntas pelo portão, e a sensação foi imediata:
olhares afiados, cochichos laterais, celulares semiprontos para registrar qualquer mínimo movimento meu.
Eu não precisava ouvir as palavras.
Os olhos já diziam tudo.
Mas eu ouvi.
— É ela.
— Não parece tanto, mas ouvi dizer que sim.
— Ontem. No carro dele.
— Ela? Sério?
— Claro. Ele nunca perde tempo.
Cada frase quebrava dentro de mim com precisão cirúrgica.
Não era sobre o fato.
Era sobre o significado que inventavam.
No corredor, grupos inteiros viravam a cabeça quando eu passava, como se estivessem assistindo a uma série da qual eu nunca pedi para ser protagonista.
Maria caminhava ao meu lado, mas podia sentir a tensão dela também.
Ela odiava injustiça.
E aquilo era uma injustiça sem nome.
Virei o olhar para o pátio.
Garotos encostados no muro riam baixo.
Duas meninas do terceiro cochichavam enquanto me observavam.
Um grupo do primeiro ano me olhava como se eu fosse uma lenda urbana viva.
Eu queria desaparecer.
Queria encolher, sumir dentro de mim mesma, virar uma sombra.
Mas não consegui.
Porque, no fundo, algo me dizia que fugir não mudaria nada.
Não daquela vez.
Quando virei para entrar na sala, ouvi alguém dizer:
— Deve ter sido ele que começou.
Essa frase ficou presa na minha mente como farpa.
Ele.
Theo.
*****
A sala estava igual a sempre.
Mas não para mim.
Assim que entrei, alguém murmurou, baixo demais para ser acidental:
— Olha ela.
Sentei na minha carteira, tentando ignorar o latejar no peito.
A respiração curta, o estômago revirado, o peso nas mãos.
Maria colocou a mochila no chão e se inclinou para falar comigo.
— Quer sair um pouco?
— Não.
Forcei a voz a parecer firme.
— Não vou dar esse gostinho pra ninguém.
Ela assentiu, respeitando.
O professor ainda não tinha chegado.
As conversas corriam soltas, mas era impossível não notar meu nome surgindo em fragmentos.
— Ontem, no carro dele…
— Falaram que eles ficaram.
— Achei que ele tinha outra.
— Ele sempre arranja uma.
— Não achei que ela fosse esse tipo.
Meu corpo inteiro se enrijeceu com essa última frase.
“Esse tipo.”
Um rótulo sem nome.
Um julgamento que não tinha nada a ver comigo — ou talvez tivesse, na cabeça deles.
Fechei as mãos, sentindo as unhas marcando a palma.
Mesmo assim, não levantei.
Não respondi.
Não dei o que queriam.
Mas por dentro…
Estava tudo ferido demais.
Foi então que vi.
Theo entrou na sala.
O efeito foi imediato.
O barulho diminuiu.
As cabeças viraram.
E, pela primeira vez, eu vi algo diferente no olhar dele.
Ele percebeu.
Percebeu os olhares.
Os cochichos.
O peso que caiu em mim.
E, ao contrário do que eu esperava, não sorriu.
Não fingiu.
Não ignorou.
Os passos dele foram firmes, mais lentos do que o normal, como se cada movimento viesse acompanhado de uma avaliação silenciosa da situação.
Quando passou ao meu lado, me encarou por meio segundo.
Um olhar curto.
Profundo.
Preocupado de um jeito que ele nunca deixou transparecer antes.
Eu desviei.
Não porque quis.
Mas porque não consegui sustentar.
Theo assentiu levemente — um gesto quase imperceptível, mas que dizia tudo.
Ele tinha entendido.
E eu sabia que aquilo não terminaria ali.
******
O intervalo começou antes de eu estar preparada.
Pessoas levantando, cadeiras arrastando, a sala se enchendo de passos.
Eu respirei fundo, prendendo o ar como se isso pudesse impedir o que viria.
Mas não impediu.
Assim que saí para o corredor, ouvi o som que eu mais temia: notificações seguidas.
A vibração contínua no bolso, insistente, quase agressiva.
Um alerta claro de que algo tinha acontecido.
Maria suspirou.
— Vai piorar antes de melhorar.
Eu tirei o celular do bolso, hesitando.
Por um segundo, considerei desligar o aparelho, guardar na mochila, fingir que nada existia.
Mas não consegui.
Assim que desbloqueei a tela, a realidade explodiu.
Stories marcando meu nome.
Prints da minha foto de perfil.
Zoom no carro de Theo estacionado.
Um vídeo curto mostrando nós dois no estacionamento da escola — do dia anterior — captado por alguém que eu nem sabia que estava perto.
A legenda?
De gosto duvidoso.
“Novo casal? Ou só mais uma?”
Meu estômago revirou.
Maria pegou meu celular sem pedir permissão.
— Desgraçados — murmurou.
Deslizando pelos stories, encontrei mais:
“Até ela caiu.”
“Navarro nunca perde tempo.”
“Pena, eu achava ela tão tranquila.”
“Aparentemente não.”
Alguns tinham emojis rindo.
Outros colocavam música de fundo, como se minha vida fosse entretenimento.
O pior ainda veio depois.
Um post anônimo no perfil de fofocas da escola:
“Carona ontem. Sorrisos. Agora entendemos tudo.”
#previsível
Eu não tinha sorrido.
Mas isso não importava.
Nunca importa.
Senti o corpo inteiro ficar frio.
A respiração curta, o coração apertado demais.
As pessoas passavam por mim olhando o celular, olhando para mim, olhando para Theo ao fundo do corredor.
Porque ele estava lá.
E viu tudo.
Theo estava parado perto da saída para o pátio, braços cruzados, expressão séria.
Não sério de irritado.
Sério de alguém que pensa rápido demais e não gosta do que está pensando.
Nossos olhares se encontraram por um segundo.
Só um.
Mas foi o suficiente para algo dentro de mim se partir.
Ele começou a andar em nossa direção.
Maria se colocou meio passo à frente de mim, protetora.
— Vai ser agora — ela murmurou.
Theo parou a poucos passos.
O corredor inteiro parecia preso em uma suspensão estranha, como se todos esperassem uma cena de romance barato.
Mas não foi isso que aconteceu.
— Me mostra. — ele disse, olhando diretamente para mim.
— O quê? — perguntei, ainda tentando manter a compostura.
— O que estão postando.
Havia algo na voz dele que me fez obedecer sem pensar.
Entreguei o celular sem discutir.
Theo olhou.
Cada story.
Cada comentário.
Cada vídeo.
O maxilar dele se tensionou.
Os dedos apertaram o celular com força.
Um grupo de meninas atrás soltou um riso abafado.
Ele devolveu o celular.
Com calma.
Serena demais.
Perigosa demais.
— Quem postou isso? — perguntou.
— Não sei. — respondi.
Mas ele sabia que era verdade só em parte.
Todos sabíamos quem eram os tipos de gente que fariam aquilo.
Theo olhou ao redor.
Um giro lento, calculado.
E em cada rosto que encontrou, havia alguém que desviava o olhar na mesma hora.
Até que ele encarou o grupo de meninos que provocou ontem.
Os mesmos.
Rindo.
Apontando.
Foi aí que o ar ficou denso.
Theo deu um passo na direção deles.
— Theo — chamei, instintivamente.
Ele parou.
Virou o rosto para mim.
Os olhos dele estavam escuros, intensos, carregados de algo que eu não sabia nomear.
Não raiva.
Não exatamente.
Era mais profundo.
Mais silencioso.
— Eu não vou deixar isso continuar. — ele disse.
— Não é seu problema. — respondi.
— É sim. — sua voz estava firme. — Porque envolve você.
Antes que eu pudesse protestar, um celular tocou o som de uma notificação no grupo do terceiro ano.
Mais um story com meu nome.
Mais uma distorção.
Mais uma versão sobre mim que não era minha.
Theo viu também.
Eu percebi pelo jeito que os ombros dele enrijeceram.
— Alguém vai falar comigo agora. — ele disse, passando a mão pelos cabelos.
Maria segurou meu braço.
— Isso não vai terminar bem. — sussurrou.
Talvez ela estivesse certa.
Mas o que eu senti naquele momento — aquele peso no peito, aquela mistura de vergonha, raiva e medo — não era sobre certo ou errado.
Era sobre perder o controle da própria história.
E ver alguém tentando retomar esse controle por mim…
Doeu mais do que ajudou.
Theo deu mais um passo.
E outro.
Mas antes de chegar ao grupo que ria, o sinal tocou.
Alto.
Cortante.
Como se tivesse sido planejado para segurar a explosão.
Os alunos começaram a se mover.
Uns correndo.
Outros dispersando.
Theo ficou parado, respirando fundo, como se lutasse contra o impulso de atravessar a escola inteira em linha reta até encontrar quem precisava.
Ele olhou para mim novamente.
Um olhar que eu nunca tinha visto nele antes.
— Isso não acaba hoje. — disse.
E foi embora.