4. O Projeto

1445 Words
A quadra antiga continuou silenciosa depois que Theo saiu. Era como se a ausência dele tivesse deixado um buraco no ar — um espaço que antes estava cheio de algo que eu não sabia nomear. Fiquei ali por alguns minutos, parada, ouvindo apenas o barulho distante do corredor e o eco da porta metálica que separou nós dois no momento exato em que ele finalmente falaria a verdade. Ele disse que voltaria. E eu queria acreditar. Mas uma parte minha — a parte machucada, a parte que aprendeu a desconfiar cedo demais — se perguntava se aquilo ia mesmo acontecer. Respirei fundo e saí da quadra devagar, tentando ignorar o nó na garganta. No corredor, as vozes comuns da escola voltaram a existir. Mas eu não escutava nada com clareza. Minha mente ainda estava presa no olhar dele, na frase dele, na promessa dele. “Quando eu contar… nada vai ser igual.” Por que alguém fala isso para outra pessoa se não estiver guardando algo grande demais? Algo perigoso demais. Ou profundo demais. Cheguei na porta da sala ainda tentando controlar a respiração. Maria me viu de longe e correu até mim. — Livi! O que houve? Por que demorou? Ele falou? O que ele disse? Olhei para ela, mas as palavras não saíram de imediato. — Ele… quase falou — consegui responder. — Mas chamaram ele antes. — Chamaram pra quê? — Coordenadora. Maria suspirou. — Ótimo. Agora isso vai virar outra confusão. Assenti, mesmo sem saber o que viria. Entramos na sala, e só então percebi que o professor já estava escrevendo no quadro. Eu quase não registrei. Até ouvir: — Turma, atenção. A Feira de Ciências começa em duas semanas. Hoje vocês vão formar duplas obrigatórias para o projeto. Sem troca. Sem exceção. Meu estômago gelou. Maria me cutucou, animada: — Ótimo. A gente vai ficar juntas. Como sempre. O professor virou a página da prancheta e leu: — Lívia e… Pausa longa. — Theo Navarro. Meu coração parou. Maria arregalou os olhos. — Mentira. Todos na sala olharam ao mesmo tempo. Eu senti o peso de cada olhar, como flechas silenciosas atravessando minha calma frágil. — Professor — comecei — acho que houve— — Sem troca. — ele repetiu, firme. — Duplas sorteadas por lista. É regra da banca avaliadora este ano. Maria tocou meu braço, em choque. — Você tá brincando, né? Mas não era brincadeira. E então aconteceu algo ainda pior: Theo entrou na sala. Era impossível não perceber. A energia mudou. As conversas cessaram. Os olhares seguiram ele como faróis. Ele estava tenso. Rígido. Com o maxilar marcado pela força que fazia para manter a expressão controlada. Quando o professor anunciou a dupla dele, a sala virou um campo de murmúrios. — Não acredito. — Vai dar r**m. — Logo eles? — Isso vai explodir. Theo ergueu o olhar e encontrou o meu. Não tentou esconder nada. Não máscara. Não charme. Não indiferença. Havia só… verdade. Algo pesado. Algo que me reconhecia. E eu soube, sem precisar de uma palavra: ele tinha entendido. Entendido que estaríamos juntos. Obrigatoriamente. E que isso mudava tudo. O professor continuou: — Os trabalhos começam amanhã. Se reúnam para decidir o tema ainda hoje, ao final da aula. Ninguém se mexeu. A sala inteira estava ocupada demais assistindo a nós dois. Theo desviou o olhar por um instante, respirou fundo e caminhou até a carteira dele. Maria se inclinou para mim, sussurrando: — Livi, você sabe o que isso significa? Eu sabia. Sabia muito bem. Significava que eu e Theo ficaríamos juntos. Todos os dias. Por semanas. No mesmo espaço. No mesmo projeto. Com a verdade dele pendurada entre nós como um raio prestes a cair. Eu fechei os olhos por um instante, tentando controlar o caos interno. Quando abri, Theo ainda me observava. Não com dúvida. Não com receio. Com algo mais firme. Mais decidido. Algo que parecia dizer: “Agora você precisa ouvir.” E, naquele instante, eu entendi uma coisa que não tinha entendido antes: O destino não estava esperando que eu escolhesse. Ele estava empurrando. Me colocando exatamente onde eu precisava estar. Mesmo que eu ainda não soubesse o porquê. ****** A aula continuou, mas minha mente não acompanhava. Cada palavra do professor passava por mim como vento — eu ouvia, mas não absorvia. Tudo que importava era a presença dele na sala, silenciosa e carregada. Theo não tentou falar comigo. Não me chamou, não fez nenhum gesto. Mas ele também não desviou. Toda vez que levantava o olhar, encontrava o dele já fixo em mim. Não era insistente. Não era invasivo. Era como se ele estivesse esperando o momento certo — e o momento certo nunca chegasse. Maria apertou meu braço pelo menos três vezes, tentando me trazer de volta para a realidade. — Você tá muito branca — disse ela. — Quer ir beber água? — Eu tô bem. Era mentira. Mas eu não sabia como explicar o turbilhão que se formava dentro de mim. Theo tinha quase contado. Tinha chegado até a borda. E agora, por obra do destino (ou castigo), nós dois estávamos presos no mesmo projeto — com o peso da revelação pendurado sobre nossas cabeças como lâmina fina. O sinal do fim da aula soou. A sala explodiu em movimento. Pessoas se levantando, arrastando cadeiras, comentando alto demais sobre as duplas sorteadas. Eu levantei devagar, planejando seguir direto para o pátio antes que Theo se aproximasse — não porque eu não queria falar com ele, mas porque eu não sabia como reagir se ele tentasse. Mas o plano nem chegou a nascer. — Lívia. — a voz dele veio atrás de mim, baixa, firme o suficiente para fazer meu corpo inteiro reagir. Virei antes mesmo de pensar. Theo estava perto. Não tão perto quanto na quadra antiga — mas o suficiente para eu sentir a presença dele como um espaço específico no ar. — A gente precisa conversar sobre o projeto — ele disse. Mentira educada. Nós dois sabíamos. — Eu sei — respondi. Ele passou a mão pelo cabelo, inquieto. — Mas também… sobre o resto. Meu coração disparou. Olhei em volta. A sala estava meio vazia, mas não o bastante. Algumas pessoas ainda observavam. Outras sussurravam, sem nem tentar disfarçar. Eu dei meio passo para trás. — Não aqui. Theo entendeu. Assentiu. — Então… depois da escola? — Tenho aula de reforço. — Eu espero. A frase dele me atingiu como impacto emocional. Não era insistência. Não era cobrança. Era promessa. Ele complementou: — Não vou te pressionar, mas preciso terminar o que comecei hoje. Minha respiração falhou por um segundo. Eu queria terminar aquilo também. Por outro motivo. Porque a resposta pendurada no meio da conversa estava me deixando inquieta demais. Mas antes que eu pudesse responder, alguém entrou entre nós — literalmente. — Theo, vem cá — um dos meninos do time chamou. — A coordenadora quer você lá na diretoria. De novo. Theo fechou os olhos por um instante, como se estivesse segurando a raiva ou o cansaço. — Agora? — ele perguntou, com a voz mais áspera que o normal. — Agora. — confirmou o garoto. Theo abriu os olhos. Me encarou. E naquele olhar havia duas coisas: • Frustração • Medo de que eu fosse embora antes de ele voltar Ele fez o que nunca fazia: hesitou. — Eu volto — disse, firme. — Não some. — Eu não vou sumir. — respondi antes que pudesse pensar no significado da frase. O canto da boca dele se ergueu num quase-sorriso triste. E então ele saiu, atravessando a sala e desaparecendo pelo corredor. Maria se aproximou imediatamente. — Tá vendo? — ela cruzou os braços. — Isso já saiu do controle. — Eu sei. — Você vai falar com ele depois? Eu olhei para a porta onde ele tinha sumido e meu peito apertou. — Sim. Maria respirou fundo, como se aquela resposta confirmasse exatamente o que ela temia. Enquanto guardávamos o material, ouvi duas meninas atrás de nós: — Ele foi atrás dela de novo. — Claro. Agora tem motivo pra andar com ela. — Aposto que a diretora chamou por causa deles. Meus ombros se tensionaram. Maria virou imediatamente. — Cala a boca. — disse ela, seca. As meninas reviraram os olhos e se afastaram. Eu só fiquei ali, parada, com a sensação de que era observada de todos os ângulos. Não era novidade. Mas agora era diferente. Não era só boato. Não era só fofoca. Era como se todos sentissem: Tem algo acontecendo. E isso vai estourar. E, no fundo, eu sabia. Vai mesmo. E o centro disso tudo era nós dois.
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