A carruagem atravessava as ruas silenciosas da vila, e Estefano mantinha o olhar fixo na escuridão.
Não falava, não se movia apenas revivia o instante em que Amélie Pérez abrira a porta, a lamparina refletindo em seus olhos cor de mel.
Havia algo nela que o desarmava por completo, algo que desafiava o peso de seu nome, o poder herdado, as obrigações impostas.
Quando a carruagem parou diante da imponente mansão Cavalcante, dois criados correram para abrir os portões.
A casa dormia em silêncio, mas a luz acesa no escritório de Don Alonso Cavalcante denunciava que o patriarca ainda estava desperto.
Estefano respirou fundo antes de entrar.Sabia que seria esperado.
Empurrou a porta de carvalho e o encontrou sentado à mesa, cercado de papéis e contas, o rosto sério sob a luz amarelada das velas.
Alonso ergueu os olhos olhos frios, calculistas, de um homem que aprendera a comandar pelo medo.
— Voltaste tarde, — disse o pai, sem levantar-se. — A cobrança tomou tanto tempo assim?
Estefano tirou o chapéu e pousou-o sobre a mesa.
— O senhor Pérez não estava em casa.
— Não? — Alonso reclinou-se na cadeira. — Que conveniente.
— Falei com as filhas dele.
O patriarca arqueou uma sobrancelha, intrigado.
— As filhas? E o que te levaria a tratar com mulheres quando o devedor é o pai?
Estefano hesitou um instante.
Sabia que qualquer palavra dita em falso seria rapidamente percebida.
— Elas pareciam… apreensivas. O homem está desaparecido desde o cair da tarde, ao que parece.
Alonso soltou um leve som, entre o riso e o desprezo.
— Embriagado, como sempre. Pobres moças.
— Provavelmente, — admitiu Estefano. — Mas… há algo naquela casa, pai. Algo errado.
— Errado? — Alonso riu brevemente. — O único erro ali foi um homem simples acreditar que poderia negociar com os Cavalcante.
Ele se levantou devagar, caminhando até o bar e servindo uma dose generosa de conhaque.
O líquido dourado refletia o brilho das velas.
— E tu, meu filho… foste verificar se o investimento ainda pode render. — Ele o observou por sobre o copo. — Ou foste levado por alguma outra curiosidade?
Estefano sustentou o olhar do pai, firme.
— Não se trata de curiosidade.
— Então se trata de quê? — interrompeu Alonso, a voz carregada de autoridade.
O silêncio que se seguiu foi denso.
Estefano manteve-se imóvel, mas o leve apertar de suas mãos revelava tensão.
— Trata-se de..negócios— respondeu, enfim. — E acredito que ainda seja uma boa opção, caso o senhor Pérez não possa pagar.
Alonso deu um gole lento no conhaque.
— Uma aliança de paz… — repetiu, em tom pensativo. — Soa poético demais para tratar de dívida.
Deu alguns passos e parou diante do filho.
— A pobre moça é tão desejável assim ?
Estefano não respondeu.
Alonso sorriu de canto.
— A pequena Amélie Pérez.
O nome dela nos lábios do pai soou como uma provocação.
— É apenas uma ideia, — disse Estefano, tentando controlar o tom. — Unir os nomes encerraria a dívida e garantiria a fidelidade do senhor Pérez.
— E te garantiria o quê, meu filho? — O olhar dele se estreitou. — Uma esposa sem dote? Um nome manchado pela pobreza? Ou apenas o prazer de brincar com uma moça que não sabe nada do nosso mundo ?
Estefano endureceu a expressão.
— Não é uma brincadeira.
Alonso riu, um riso baixo.
— Ah, claro que não.
O silêncio respondeu por ele.
O patriarca pousou o copo sobre a mesa, o som seco quebrando o ar.
— Escuta-me bem, Estefano. Os Pérez são nada. E nós… somos o que sustenta esta cidade. Não confundas piedade com desejo. Mas se realmente for fazer isso, não hesite, antes que seja tarde.
Estefano se afastou um passo, a voz firme, ainda que o coração ardesse.
— Compreendo pai, e não pretendo hesitar.
Alonso o fitou longamente.
— Cuida de não esquecer quem és, — disse, por fim. — Um Cavalcante não se mistura à lama, a transforma em ouro.
Estefano manteve o olhar firme, mas por dentro o conflito o consumia.
A voz do pai ainda ecoava em sua mente junto com a lembrança dos olhos de Amélie, que pareciam cada vez mais impossíveis de apagar.