Três dias se passaram desde a noite em que Frederic voltara para casa cambaleando.
Desde então, ele pouco falava saía cedo, voltava tarde, evitava o olhar das filhas.
Mas, por dentro, o medo o consumia. A cada martelada na madeira, a cada batida do vento, ele ouvia um nome ecoar em sua mente: Cavalcante.
Na manhã do quarto dia, o céu estava pesado de nuvens, e o ar cheirava a chuva.Frederic trabalhava sozinho na parte dos fundos da madeireira, tentando ignorar a dor nas mãos e o peso do coração.
Foi então que o som dos cascos ecoou na estrada de terra.Os trabalhadores pararam o que faziam. Uma carruagem n***a, elegante, com o brasão dourado dos Cavalcante, aproximou-se lentamente, atraindo olhares curiosos e temerosos.
De dentro, desceu primeiro Julián Cortés, o mesmo cobrador que o havia visitado dias antes.
Mas, dessa vez, não estava sozinho.
Atrás dele, saltou um jovem de porte distinto, de não mais que vinte e seis anos.
Usava um sobretudo escuro, luvas de couro e um chapéu fino. O olhar profundo e frio varreu o ambiente com desinteresse, até pousar sobre Frederic.
— Senhor Pérez — disse Julián, com aquela mesma voz educada e cortante. — Espero que se lembre de mim.
Frederic endireitou o corpo, limpando as mãos no avental, o semblante pálido.
— Eu me lembro, sim.
— Que bom. — Julián sorriu, mas os olhos não sorriram. — Permita-me apresentar o senhor Estefano Cavalcante, filho de Don Alonso, nosso mestre e benfeitor.
O nome fez os murmúrios se espalharem entre os trabalhadores.Estefano inclinou levemente a cabeça, observando Frederic como quem avalia um número, não um homem.
— Meu pai pediu que eu o acompanhasse — disse ele, com voz grave e calma. — Gosta de resolver assuntos... pessoalmente.
Frederic engoliu em seco.
— Eu... já disse que vou pagar. Só preciso de tempo.
Estefano arqueou uma sobrancelha.
— O tempo, senhor Pérez, é o que mais custa caro. — Deu um passo à frente, o tom sem raiva, mas cheio de poder. — Meu pai tem dívidas maiores que a sua. Mas não gosta de promessas vazias.
Frederic cerrou os punhos.
— Eu não fujo de compromissos.
— Espero que não — respondeu Estefano, friamente. — Seria uma pena ter de lembrar-lhe de forma mais... direta.
O ar ficou denso. O som das serras ao fundo cessou completamente.E foi nesse instante que uma voz suave ecoou pela porta da madeireira:
— Papá!
Todos se viraram.
Amélie estava parada à entrada, o vestido simples de algodão azul ligeiramente molhado pela garoa, os cabelos castanhos curtos presos atrás da orelha, os olhos cor de mel cheios de preocupação.
— Papá, o senhor esqueceu o casaco... — disse, ofegante, segurando a peça dobrada nos braços.
Frederic empalideceu ainda mais.
— Amélie, vá para casa!
Mas era tarde.
O olhar de Estefano já havia se voltado para ela.Por um instante, o tempo pareceu parar.
O jovem Cavalcante, acostumado a ser obedecido, admirado e temido, não esperava ser surpreendido por algo tão simples um rosto, uma presença, uma delicadeza que contrastava com o cinza da manhã.
Os olhos dele percorreram o rosto da moça com discrição, detendo-se nos detalhes que o instinto capturava: o brilho tímido no olhar, a serenidade no meio da confusão, a forma como ela apertava o casaco contra o peito, nervosa, mas firme, o tom doce de sua voz, quase cantado a seus ouvidos.
Julián percebeu a distração e pigarreou.
— Senhor Estefano…?
Ele desviou o olhar, recompondo-se, mas o tom já havia mudado mais brando, quase curioso.
— Esta é sua filha, senhor Pérez?
Frederic hesitou.
— É... sim. Minha caçula. Amélie.
Estefano inclinou a cabeça, com um meio sorriso.
— Um belo nome.
Amélie, sem entender o motivo da tensão, fez uma leve reverência, educada.
— Muito prazer, senhor.
— O prazer é todo meu. — A resposta saiu num tom baixo, quase inaudível, mas carregada de algo que nem ele mesmo soube definir.
O silêncio que se seguiu foi interrompido por Julián.
— Senhor Pérez, traga a quantia até o fim da semana. O prazo final foi concedido por gentileza de Don Alonso.
Estefano deu um último olhar para Amélie antes de se virar.
— Cuide para não dar motivos a novos encontros… desagradáveis. — Mas a forma como disse encontros soou diferente como se, pela primeira vez, não tivesse certeza se realmente não queria reencontrá-la.
A carruagem partiu, desaparecendo pela estrada.
Frederic ficou parado, o corpo trêmulo.Amélie se aproximou, aflita.
— Papá… quem eram esses homens?
Ele passou a mão pelo rosto, abatido.
— Gente com quem eu devia ter deixado de lidar há muito tempo.
E saiu andando, deixando-a parada no meio da madeireira, com o coração acelerado de preocupação.