Capítulo 29. Doce Amélie

766 Words
A manhã amanheceu fria e enevoada. Um silêncio incomum pairava sobre a mansão Cavalcante os criados andavam em passos contidos, evitando barulho, pois todos sabiam que o jovem senhor retornara ferido na noite anterior. Amélie acordou antes do nascer do sol.O sono fora leve e inquieto, e a lembrança do rosto de Estefano, pálido e sangrando, não a deixava em paz.Na cozinha, buscou ervas secas camomila, lavanda e folhas de hortelã e as misturou com cuidado, preparando um chá calmante. Depois, moendo pétalas e raízes, preparou também um creme simples com mel e óleo de e**a-de-são-joão, remédio que aprendera com a irmã mais velha, Teresa, para cicatrizar feridas. Quando todos ainda dormiam, ela subiu discretamente as escadas que levavam ao andar dos senhores.A cada degrau, sentia o coração acelerar. Sabia o risco que corria se Francesca a visse ali mas, apesar do medo, havia algo mais forte que o temor: a compaixão. Parou diante da porta do quarto de Estefano e bateu de leve. — Entre — veio a voz rouca, cansada. Ela entrou com passos hesitantes. O quarto estava em meia penumbra; as cortinas pesadas ainda fechadas.Estefano estava deitado, o braço com cortes, o rosto coberto por uma sombra de exaustão.Mesmo ferido, ele conservava certa elegância natural o porte de um homem acostumado a comandar, embora naquele momento a dor o tornasse humano. Amélie colocou a bandeja sobre a mesa de canto. — Trouxe um chá… e algo que pode ajudar nas feridas — disse, em voz baixa. Ele a observou, surpreso. — Você mesma preparou? Ela assentiu. — Sim, senhor. Aprendi com minha irmã. — Então estou em boas mãos. — Um sorriso leve se formou em seus lábios, mas logo desapareceu, substituído por um leve gemido de dor ao tentar se sentar. — Espere… — murmurou Amélie, apressando-se a apoiá-lo. — Não se mova tanto. Estefano permitiu que ela o ajudasse a se recostar contra os travesseiros.A proximidade fez o ar parecer mais denso. O perfume discreto das ervas em suas mãos misturava-se ao aroma do quarto, couro, madeira e fumaça de lenha. Amélie abriu o pequeno pote com o creme. — Vai arder um pouco — avisou, molhando o pano e tocando de leve a pele machucada. Ele cerrou os dentes, mas não se afastou. — Não tanto quanto esperava — murmurou, tentando disfarçar o desconforto. — Acho que já senti dores piores. — Dores do corpo passam — respondeu ela, distraída, concentrada no curativo. — As outras… nem sempre. Estefano a observou em silêncio, a voz dela soando mais triste do que ela mesma percebia.Cada palavra dela era simples, mas carregada de uma sabedoria amarga, daquelas que não se aprendem com livros. — Amélie — chamou ele, baixo. — Por que continua aqui? Ela parou por um instante, mas não o olhou. — Porque meu papá precisa que eu esteja. — Seu pai a entregou como pagamento — disse Estefano, amargo. — E eu deixei que ficasse. Não devia. Amélie suspirou, fechando o pote. — O senhor não me obrigou a nada. Eu aceitei. — E isso a torna menos prisioneira? — retrucou ele, olhando-a fixamente. Ela desviou o olhar, o coração apertado. — Não. Mas me torna útil. E, às vezes, isso é o suficiente. O silêncio se prolongou. Estefano levou o olhar até o teto, tentando conter o nó na garganta. — Se eu pudesse… — começou ele, mas parou. — Se eu pudesse, eu a tiraria daqui agora mesmo. Amélie levantou-se, ajeitando o avental. — Não diga isso, senhor. As paredes têm ouvidos. Ela pegou a xícara e entregou-lhe o chá. — Tome enquanto ainda está quente. Vai ajudar com a dor. Estefano segurou a xícara, mas em vez de beber, prendeu o olhar nela. — Você sempre fala como se já tivesse se conformado com o que lhe fizeram. Amélie sorriu com doçura melancólica. — Eu não me conformei. Só aprendi a sobreviver. E, antes que ele pudesse responder, fez uma leve reverência e seguiu para a porta. — Amélie. — Ele a chamou uma última vez. Ela se virou. — Obrigado… outra vez. Ela hesitou, depois respondeu: — Cuide-se, senhor. A força de um homem não está em suportar a dor, mas em saber quando precisa de ajuda. Então saiu, deixando o quarto em silêncio um silêncio que não era vazio, mas cheio de algo que os dois não ousavam nomear. Estefano olhou para o chá fumegante, depois para o pano com o qual ela o havia tratado, e sussurrou, mais para si do que para o mundo: Você é a única coisa pura neste lugar.
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