A manhã amanheceu fria e enevoada. Um silêncio incomum pairava sobre a mansão Cavalcante os criados andavam em passos contidos, evitando barulho, pois todos sabiam que o jovem senhor retornara ferido na noite anterior.
Amélie acordou antes do nascer do sol.O sono fora leve e inquieto, e a lembrança do rosto de Estefano, pálido e sangrando, não a deixava em paz.Na cozinha, buscou ervas secas camomila, lavanda e folhas de hortelã e as misturou com cuidado, preparando um chá calmante. Depois, moendo pétalas e raízes, preparou também um creme simples com mel e óleo de e**a-de-são-joão, remédio que aprendera com a irmã mais velha, Teresa, para cicatrizar feridas.
Quando todos ainda dormiam, ela subiu discretamente as escadas que levavam ao andar dos senhores.A cada degrau, sentia o coração acelerar.
Sabia o risco que corria se Francesca a visse ali mas, apesar do medo, havia algo mais forte que o temor: a compaixão.
Parou diante da porta do quarto de Estefano e bateu de leve.
— Entre — veio a voz rouca, cansada.
Ela entrou com passos hesitantes. O quarto estava em meia penumbra; as cortinas pesadas ainda fechadas.Estefano estava deitado, o braço com cortes, o rosto coberto por uma sombra de exaustão.Mesmo ferido, ele conservava certa elegância natural o porte de um homem acostumado a comandar, embora naquele momento a dor o tornasse humano.
Amélie colocou a bandeja sobre a mesa de canto.
— Trouxe um chá… e algo que pode ajudar nas feridas — disse, em voz baixa.
Ele a observou, surpreso.
— Você mesma preparou?
Ela assentiu.
— Sim, senhor. Aprendi com minha irmã.
— Então estou em boas mãos. — Um sorriso leve se formou em seus lábios, mas logo desapareceu, substituído por um leve gemido de dor ao tentar se sentar.
— Espere… — murmurou Amélie, apressando-se a apoiá-lo. — Não se mova tanto.
Estefano permitiu que ela o ajudasse a se recostar contra os travesseiros.A proximidade fez o ar parecer mais denso.
O perfume discreto das ervas em suas mãos misturava-se ao aroma do quarto, couro, madeira e fumaça de lenha.
Amélie abriu o pequeno pote com o creme.
— Vai arder um pouco — avisou, molhando o pano e tocando de leve a pele machucada.
Ele cerrou os dentes, mas não se afastou.
— Não tanto quanto esperava — murmurou, tentando disfarçar o desconforto. — Acho que já senti dores piores.
— Dores do corpo passam — respondeu ela, distraída, concentrada no curativo. — As outras… nem sempre.
Estefano a observou em silêncio, a voz dela soando mais triste do que ela mesma percebia.Cada palavra dela era simples, mas carregada de uma sabedoria amarga, daquelas que não se aprendem com livros.
— Amélie — chamou ele, baixo. — Por que continua aqui?
Ela parou por um instante, mas não o olhou.
— Porque meu papá precisa que eu esteja.
— Seu pai a entregou como pagamento — disse Estefano, amargo. — E eu deixei que ficasse. Não devia.
Amélie suspirou, fechando o pote.
— O senhor não me obrigou a nada. Eu aceitei.
— E isso a torna menos prisioneira? — retrucou ele, olhando-a fixamente.
Ela desviou o olhar, o coração apertado.
— Não. Mas me torna útil. E, às vezes, isso é o suficiente.
O silêncio se prolongou.
Estefano levou o olhar até o teto, tentando conter o nó na garganta.
— Se eu pudesse… — começou ele, mas parou. — Se eu pudesse, eu a tiraria daqui agora mesmo.
Amélie levantou-se, ajeitando o avental.
— Não diga isso, senhor. As paredes têm ouvidos.
Ela pegou a xícara e entregou-lhe o chá.
— Tome enquanto ainda está quente. Vai ajudar com a dor.
Estefano segurou a xícara, mas em vez de beber, prendeu o olhar nela.
— Você sempre fala como se já tivesse se conformado com o que lhe fizeram.
Amélie sorriu com doçura melancólica.
— Eu não me conformei. Só aprendi a sobreviver.
E, antes que ele pudesse responder, fez uma leve reverência e seguiu para a porta.
— Amélie. — Ele a chamou uma última vez.
Ela se virou.
— Obrigado… outra vez.
Ela hesitou, depois respondeu:
— Cuide-se, senhor. A força de um homem não está em suportar a dor, mas em saber quando precisa de ajuda.
Então saiu, deixando o quarto em silêncio um silêncio que não era vazio, mas cheio de algo que os dois não ousavam nomear.
Estefano olhou para o chá fumegante, depois para o pano com o qual ela o havia tratado, e sussurrou, mais para si do que para o mundo:
Você é a única coisa pura neste lugar.