Capítulo 3. O passado cobra

1143 Words
O sol já começava a descer por trás das colinas quando Frederic Pérez empurrou a porta de casa. O som seco das dobradiças fez as irmãs se sobressaltarem. Ele entrou cambaleando um pouco, o chapéu amarrotado nas mãos e o olhar perdido. — Papá... — Teresa foi a primeira a se aproximar, mas parou ao sentir o cheiro forte de álcool e o semblante abatido do pai. Frederic não respondeu de imediato. Passou por ela e deixou o casaco sobre a cadeira, o gesto pesado, cansado. — Só quero descansar — murmurou, sem olhar para ninguém. Clara trocou um olhar preocupado com Isabel, que ainda segurava um pano de prato nas mãos. O pai parecia... pior do que o normal. As olheiras profundas, o rosto pálido, e um tremor leve nas mãos denunciavam que algo o atormentava além da bebida. — O senhor almoçou hoje? — perguntou Isabel, tentando disfarçar a apreensão. Ele apenas fez um gesto vago, sentando-se à mesa. Ficou em silêncio por alguns segundos, encarando o nada. Depois, como se o peso fosse grande demais, apoiou o rosto nas mãos. Amélie, que havia acabado de voltar da padaria, observava a cena da porta. O coração apertou. Ela se aproximou devagar, as palavras presas na garganta. — Papá... o senhor está se sentindo bem? Frederic ergueu os olhos lentamente para a filha. Por um instante, havia ternura neles, mas logo cedeu lugar a um cansaço profundo. — Eu estou... — começou, mas a voz falhou. Engoliu seco e desviou o olhar. — Estou bem, Amélie. Não precisa se preocupar. Ela se ajoelhou ao lado da cadeira, segurando a mão dele. — O senhor não parece bem... aconteceu alguma coisa? Frederic puxou a mão com delicadeza, mas firmeza suficiente para encerrar a conversa. — Eu disse que estou bem. — E, depois de uma pausa: — Só preciso de silêncio. Teresa interveio, tentando amenizar. — Papá, por que não sobe para descansar um pouco? Eu preparo algo leve para o jantar. Ele assentiu, sem protestar. Levantou-se com esforço e subiu as escadas devagar, o corpo arqueado, o passo arrastado. O som das tábuas rangendo foi a última coisa antes do silêncio voltar à casa. Clara suspirou. — Ele está piorando, Teresa. Eu nunca o vi desse jeito. Teresa não respondeu. Ficou olhando para o andar de cima, pensativa. Amélie, sentada à mesa, olhava para o chão, a voz trêmula: — Foi por minha culpa. — Como assim? — perguntou Isabel, surpresa. — Eu falei do nome que ele murmurou... Cavalcante. Talvez ele tenha ouvido. Talvez tenha se lembrado. E agora... está desse jeito por minha causa. Clara se apressou em negar, indo até ela. — Não diga isso, minha querida. O que está acontecendo com papai não é culpa sua. Mas Amélie não se convenceu. — Eu devia ter ficado quieta. Ele parecia tão... assustado, ontem à noite. E agora... parece que carrega um peso que não quer dividir com ninguém. Teresa colocou a mão sobre o ombro da irmã, com uma voz baixa e firme: — O que o papai carrega é antigo, Amélie. Muito antes de você nascer. Nenhuma de nós pode mudar isso agora. Amélie ergueu os olhos marejados para a irmã, sem entender por completo as palavras, mas sentindo que nelas havia uma dor que todas compartilhavam e um segredo que crescia entre elas, tão pesado quanto o silêncio do pai. O sol ainda m*l despontava quando Frederic chegou à madeireira. O ar estava frio e o cheiro de serragem misturava-se ao de óleo e madeira cortada. Ele tentou se concentrar no trabalho, cortando e empilhando tábuas, mas a mente insistia em vagar. As mãos, outrora firmes, tremiam levemente ao segurar o machado. O capataz, um homem robusto chamado Eusebio, observava de longe, preocupado. — Está tudo bem, Pérez? — perguntou, ao vê-lo parar de repente, o olhar perdido. Frederic forçou um sorriso cansado. — Só uma dor de cabeça. Passei a noite m*l dormida. Eusebio assentiu, sem insistir, e voltou ao galpão. Frederic respirou fundo e continuou o trabalho, o som seco das lâminas batendo no ar. Foi então que o silêncio do pátio se quebrou com o som de cascos e o ranger de uma charrete. Dois homens bem vestidos se aproximaram, contrastando com a simplicidade do local. O que vinha à frente usava um sobretudo escuro e luvas de couro. Tinha um porte altivo, e o olhar frio como aço. Eusebio se adiantou, desconfiado. — Posso ajudar os senhores? O homem tirou o chapéu com educação ensaiada. — Estamos procurando por Frederic Pérez. O capataz olhou para ele, que estava a poucos metros, e respondeu: — Aquele ali. Frederic gelou. As mãos suaram, e o machado quase lhe escapou dos dedos. Quando os dois se aproximaram, ele reconheceu o emblema gravado na corrente de bolso do mais velho: um C entrelaçado a um brasão dourado. — Senhor Pérez — disse o homem, em tom cortês, mas sem esconder a ameaça na voz. — Permita-me apresentar-me. Sou Julián Cortés, representante da família Cavalcante. O nome caiu sobre Frederic como um soco. Ele disfarçou, limpando as mãos no avental de couro. — O que os senhores desejam? — Assuntos de natureza financeira — respondeu Cortés, tirando um envelope do bolso interno do sobretudo. — Nosso senhorio, Don Alonso Cavalcante, pede lembrança de uma dívida pendente. Frederic empalideceu. — Eu... já expliquei. Preciso de mais tempo. — Tempo, senhor Pérez, é algo que nem todos têm o luxo de pedir. — Cortés abriu o envelope e mostrou um documento selado com cera vermelha. — A dívida vence hoje. Don Alonso foi paciente por longos meses, mas sua paciência tem limite. O trabalhador ao redor começava a observar discretamente, o rumor se espalhando como pólvora. Frederic abaixou o tom da voz. — Diga a Don Alonso que... que eu arranjarei o dinheiro. Eu só preciso de alguns dias. — Dias — repetiu Cortés, em um tom quase debochado. — O senhor já pediu semanas, depois meses. A próxima vez que viermos, senhor Pérez, não será apenas para conversar. Ele guardou o envelope de volta e colocou o chapéu, olhando-o com aquele mesmo sorriso frio. — Tenha um bom dia. E lembre-se: os Cavalcante não gostam de ser esquecidos. Os dois homens subiram na charrete e partiram, deixando atrás de si o cheiro de fumaça e tensão. Frederic ficou parado por um instante, o corpo imóvel, o rosto rígido. Quando finalmente se moveu, encostou-se a uma pilha de tábuas e passou a mão pelo rosto, sentindo o suor frio escorrer. Don Eusebio se aproximou, cauteloso. — O que foi isso, Pérez? Frederic não respondeu. Apenas murmurou, com voz rouca: — O passado... finalmente veio cobrar. E enquanto o som da charrete se perdia pela estrada, Frederic percebeu que não poderia esconder por muito tempo. Nem das filhas, nem de ninguém.
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