O sol já começava a descer por trás das colinas quando Frederic Pérez empurrou a porta de casa. O som seco das dobradiças fez as irmãs se sobressaltarem. Ele entrou cambaleando um pouco, o chapéu amarrotado nas mãos e o olhar perdido.
— Papá... — Teresa foi a primeira a se aproximar, mas parou ao sentir o cheiro forte de álcool e o semblante abatido do pai.
Frederic não respondeu de imediato. Passou por ela e deixou o casaco sobre a cadeira, o gesto pesado, cansado.
— Só quero descansar — murmurou, sem olhar para ninguém.
Clara trocou um olhar preocupado com Isabel, que ainda segurava um pano de prato nas mãos. O pai parecia... pior do que o normal. As olheiras profundas, o rosto pálido, e um tremor leve nas mãos denunciavam que algo o atormentava além da bebida.
— O senhor almoçou hoje? — perguntou Isabel, tentando disfarçar a apreensão.
Ele apenas fez um gesto vago, sentando-se à mesa. Ficou em silêncio por alguns segundos, encarando o nada. Depois, como se o peso fosse grande demais, apoiou o rosto nas mãos.
Amélie, que havia acabado de voltar da padaria, observava a cena da porta.
O coração apertou. Ela se aproximou devagar, as palavras presas na garganta.
— Papá... o senhor está se sentindo bem?
Frederic ergueu os olhos lentamente para a filha. Por um instante, havia ternura neles, mas logo cedeu lugar a um cansaço profundo.
— Eu estou... — começou, mas a voz falhou. Engoliu seco e desviou o olhar. — Estou bem, Amélie. Não precisa se preocupar.
Ela se ajoelhou ao lado da cadeira, segurando a mão dele.
— O senhor não parece bem... aconteceu alguma coisa?
Frederic puxou a mão com delicadeza, mas firmeza suficiente para encerrar a conversa.
— Eu disse que estou bem. — E, depois de uma pausa: — Só preciso de silêncio.
Teresa interveio, tentando amenizar.
— Papá, por que não sobe para descansar um pouco? Eu preparo algo leve para o jantar.
Ele assentiu, sem protestar. Levantou-se com esforço e subiu as escadas devagar, o corpo arqueado, o passo arrastado. O som das tábuas rangendo foi a última coisa antes do silêncio voltar à casa.
Clara suspirou.
— Ele está piorando, Teresa. Eu nunca o vi desse jeito.
Teresa não respondeu. Ficou olhando para o andar de cima, pensativa.
Amélie, sentada à mesa, olhava para o chão, a voz trêmula:
— Foi por minha culpa.
— Como assim? — perguntou Isabel, surpresa.
— Eu falei do nome que ele murmurou... Cavalcante. Talvez ele tenha ouvido. Talvez tenha se lembrado. E agora... está desse jeito por minha causa.
Clara se apressou em negar, indo até ela.
— Não diga isso, minha querida. O que está acontecendo com papai não é culpa sua.
Mas Amélie não se convenceu.
— Eu devia ter ficado quieta. Ele parecia tão... assustado, ontem à noite. E agora... parece que carrega um peso que não quer dividir com ninguém.
Teresa colocou a mão sobre o ombro da irmã, com uma voz baixa e firme:
— O que o papai carrega é antigo, Amélie. Muito antes de você nascer. Nenhuma de nós pode mudar isso agora.
Amélie ergueu os olhos marejados para a irmã, sem entender por completo as palavras, mas sentindo que nelas havia uma dor que todas compartilhavam e um segredo que crescia entre elas, tão pesado quanto o silêncio do pai.
O sol ainda m*l despontava quando Frederic chegou à madeireira. O ar estava frio e o cheiro de serragem misturava-se ao de óleo e madeira cortada. Ele tentou se concentrar no trabalho, cortando e empilhando tábuas, mas a mente insistia em vagar.
As mãos, outrora firmes, tremiam levemente ao segurar o machado.
O capataz, um homem robusto chamado Eusebio, observava de longe, preocupado.
— Está tudo bem, Pérez? — perguntou, ao vê-lo parar de repente, o olhar perdido.
Frederic forçou um sorriso cansado.
— Só uma dor de cabeça. Passei a noite m*l dormida.
Eusebio assentiu, sem insistir, e voltou ao galpão.
Frederic respirou fundo e continuou o trabalho, o som seco das lâminas batendo no ar.
Foi então que o silêncio do pátio se quebrou com o som de cascos e o ranger de uma charrete. Dois homens bem vestidos se aproximaram, contrastando com a simplicidade do local. O que vinha à frente usava um sobretudo escuro e luvas de couro. Tinha um porte altivo, e o olhar frio como aço.
Eusebio se adiantou, desconfiado.
— Posso ajudar os senhores?
O homem tirou o chapéu com educação ensaiada.
— Estamos procurando por Frederic Pérez.
O capataz olhou para ele, que estava a poucos metros, e respondeu:
— Aquele ali.
Frederic gelou. As mãos suaram, e o machado quase lhe escapou dos dedos. Quando os dois se aproximaram, ele reconheceu o emblema gravado na corrente de bolso do mais velho: um C entrelaçado a um brasão dourado.
— Senhor Pérez — disse o homem, em tom cortês, mas sem esconder a ameaça na voz. — Permita-me apresentar-me. Sou Julián Cortés, representante da família Cavalcante.
O nome caiu sobre Frederic como um soco. Ele disfarçou, limpando as mãos no avental de couro.
— O que os senhores desejam?
— Assuntos de natureza financeira — respondeu Cortés, tirando um envelope do bolso interno do sobretudo. — Nosso senhorio, Don Alonso Cavalcante, pede lembrança de uma dívida pendente.
Frederic empalideceu.
— Eu... já expliquei. Preciso de mais tempo.
— Tempo, senhor Pérez, é algo que nem todos têm o luxo de pedir. — Cortés abriu o envelope e mostrou um documento selado com cera vermelha. — A dívida vence hoje. Don Alonso foi paciente por longos meses, mas sua paciência tem limite.
O trabalhador ao redor começava a observar discretamente, o rumor se espalhando como pólvora. Frederic abaixou o tom da voz.
— Diga a Don Alonso que... que eu arranjarei o dinheiro. Eu só preciso de alguns dias.
— Dias — repetiu Cortés, em um tom quase debochado. — O senhor já pediu semanas, depois meses. A próxima vez que viermos, senhor Pérez, não será apenas para conversar.
Ele guardou o envelope de volta e colocou o chapéu, olhando-o com aquele mesmo sorriso frio.
— Tenha um bom dia. E lembre-se: os Cavalcante não gostam de ser esquecidos.
Os dois homens subiram na charrete e partiram, deixando atrás de si o cheiro de fumaça e tensão.
Frederic ficou parado por um instante, o corpo imóvel, o rosto rígido. Quando finalmente se moveu, encostou-se a uma pilha de tábuas e passou a mão pelo rosto, sentindo o suor frio escorrer.
Don Eusebio se aproximou, cauteloso.
— O que foi isso, Pérez?
Frederic não respondeu. Apenas murmurou, com voz rouca:
— O passado... finalmente veio cobrar.
E enquanto o som da charrete se perdia pela estrada, Frederic percebeu que não poderia esconder por muito tempo. Nem das filhas, nem de ninguém.