Capítulo 4. O que Frederic esconde ?

999 Words
O sol já se punha atrás das montanhas quando Frederic deixou a madeireira. O cheiro de serragem ainda impregnava suas roupas, mas agora misturava-se ao amargor do medo. O nome Cavalcante ecoava em sua mente como um sino distante, insistente, impossível de calar. Caminhou sem rumo pelas ruas estreitas de Valderosa, as pedras do chão úmidas pela garoa leve. As casas simples se alinhavam em silêncio, as luzes das janelas acesas como pequenos olhos observando-o passar. Ele conhecia bem o caminho. Não precisava pensar. Os pés o levavam por conta própria até a taverna de Mateo, ponto mais esquecido da vila onde os homens perdiam a vergonha, o juízo e as esperanças. Entrou sem dizer palavra. O dono apenas assentiu, como quem já sabia o pedido. Logo, uma garrafa foi colocada diante dele, junto com um copo manchado de uso. Frederic encheu-o até a borda e bebeu de um só gole. O líquido queimou a garganta, mas a dor física era menor que a outra aquela que ele carregava havia dezoito anos. A lembrança veio como uma punhalada. Lúcia. A voz dela ainda parecia sussurrar em sua mente, doce e distante. O riso leve, os cabelos escuros caindo sobre os ombros, o olhar que sempre o fazia acreditar que tudo daria certo. E, depois... o grito abafado, o choro das parteiras, o silêncio. Ele apertou o copo nas mãos, os olhos marejando. — Se eu pudesse voltar... — murmurou. — Teria dado a minha vida pela dela. Mas a vida não volta, e o passado não perdoa. Nem os mortos, nem os vivos. Outra taça. Depois outra. A taverna girava levemente, as vozes se tornavam murmúrios. E então ele ouviu o nome de novo — Cavalcante — vindo de uma mesa ao lado. Dois homens falavam em tom baixo: — Dizem que Don Alonso vai tomar as terras do norte. O homem não tem piedade. — Pois que se cuidem os endividados. Os Cavalcante nunca perdoam. Frederic virou o rosto, o coração disparando.O sangue subiu-lhe à cabeça vergonha, raiva, desespero. Levantou-se de repente, a cadeira caindo para trás. Mateo o olhou, preocupado. — Frederic, já chega por hoje. Mas ele não respondeu. Saiu cambaleando pela porta, a chuva fina molhando-lhe o rosto. As ruas já estavam vazias, e as luzes das lamparinas tremulavam sob o vento. Caminhou até a ponte de pedra que cortava o rio. Ali parou, olhando para as águas escuras correndo com força. — Eu tentei... — sussurrou. — Por elas... pela casa...por você Lúcia... Fechou os olhos, e por um instante pareceu que o peso o faria cair. Mas então, uma lembrança: o sorriso de Amélie, a voz suave chamando “papá”. Ele respirou fundo, cambaleou para trás e se afastou da beira. — Ainda não... não hoje. Virou-se e seguiu o caminho de volta para casa, o corpo pesado, a alma em pedaços. Lá longe, as luzes da casa dos Pérez ainda estavam acesas e, sem saber, suas filhas esperavam, aflitas, sem imaginar que o passado começava a cobrar sua dívida em silêncio. A porta da casa rangeu por volta das onze da noite. O vento frio entrou junto com Frederic, trazendo o cheiro forte de chuva, madeira úmida… e álcool. Amélie, que esperava sentada na sala com uma lamparina nas mãos, levantou-se de súbito.O coração acelerou ao ver o pai cambaleando, os passos pesados e a expressão perdida. — Papá! — correu até ele, segurando-o pelo braço antes que caísse. — O senhor está encharcado… e bebeu outra vez. Ele tentou sorrir, mas o rosto não obedecia. — Eu... só... — murmurou, a voz arrastada. — Só precisava esquecer um pouco, minha menina. Amélie o guiou até a poltrona, com esforço. — O senhor vai acabar se matando desse jeito. — Talvez fosse melhor assim... — murmurou ele, entre soluços abafados. Ela se ajoelhou diante dele, os olhos marejados. — Não diga isso, por favor. Frederic passou a mão pelos cabelos, cansado.O olhar dele, nublado pela bebida, pousou sobre o rosto da filha e, por um instante, pareceu vê-la com clareza. — Você... se parece tanto com ela... Amélie engoliu em seco. — Com a mamãe? Ele assentiu lentamente. — O mesmo olhar… o mesmo jeito de falar. Às vezes, quando te escuto... é como se Lucía estivesse viva outra vez. — A voz falhou. — E isso me mata, Amélie. Porque cada vez que lembro dela, lembro que foi por minha culpa que ela se foi. Amélie ficou imóvel. As palavras pesaram no ar, e ela sentiu o nó apertar-lhe a garganta. — Papá… não diga isso. A mamãe... ela morreu me dando à luz. Não foi culpa de ninguém. Frederic desviou o olhar, lágrimas silenciosas escorrendo por seu rosto envelhecido. — Foi culpa minha. Eu devia ter chamado o médico antes… devia ter feito algo. Mas não fiz. E perdi tudo. Ela segurou as mãos dele, firmes apesar do tremor. — O senhor não me perdeu. Eu estou aqui. Ele a olhou, e uma ternura amarga tomou seus olhos cansados. — É isso que me assusta, minha menina. Que eu acabe te perdendo também. Ela franziu o cenho, confusa. — Por que o senhor diz isso? Mas Frederic recuou, a mente já se turvando novamente pela bebida e pelo cansaço. — Esqueça… só me prometa que vai cuidar de suas irmãs. Amélie assentiu, mesmo sem compreender. — Eu prometo. — Boa menina… — Ele sussurrou, e logo o corpo relaxou, vencido pelo sono. Ela ficou ali por alguns instantes, observando o pai dormir. O rosto dele, à luz trêmula da lamparina, parecia o de um homem partido entre o passado e o presente. Com cuidado, tirou-lhe as botas, cobriu-o com uma manta e apagou as velas. Antes de subir para o quarto, sussurrou: — Um dia, papá… eu vou descobrir o que o senhor esconde. E juro que vou ajudar a consertar o que quer que seja. Lá fora, a chuva engrossava, tamborilando no telhado como um presságio distante.
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