O dia seguinte amanheceu nublado, o vento frio do outono soprando pelas frestas das janelas da casa dos Pérez. O café estava servido, mas ninguém parecia ter muito apetite. Teresa lia um jornal velho, Clara costurava em silêncio, e Isabel observava os pardais no telhado pela janela.
Amélie descia as escadas devagar, o pensamento ainda preso à noite anterior. O pai dormia profundamente, ainda na poltrona, como se o peso do mundo o tivesse vencido.
Sentou-se à mesa e, depois de um breve silêncio, falou:
— Ontem à noite... eu fui ver o papai. Ele adormeceu antes de chegar ao quarto.
Teresa levantou os olhos do jornal, desconfiada.
— E?
— Ele estava murmurando
algo. Um nome.
Clara ergueu a cabeça da costura.
— Um nome?
— Sim... “Cavalcante.” — Amélie pronunciou com cuidado, como se o som da palavra pudesse quebrar algo dentro da sala.
O ar pareceu mudar. O jornal nas mãos de Teresa baixou lentamente. Isabel desviou o olhar pela janela. Clara deixou cair a agulha sobre a mesa.
— Vocês conhecem esse nome? — perguntou Amélie, a voz baixa. — Parecia importante... ou triste.
Teresa foi a primeira a se recompor.
— Você deve ter ouvido errado, Amélie. — Sorriu sem convicção. — Papai fala coisas sem sentido quando bebe.
— Não — insistiu ela. — Eu ouvi claramente. “Cavalcante.” Ele repetiu duas vezes.
Isabel apertou as mãos no colo, o rosto pálido. Clara pigarreou, tentando disfarçar.
— Deve ser coisa da cabeça dele, querida. Vamos esquecer isso, sim?
Mas Amélie percebeu o olhar trocado entre as três rápido, carregado de algo que ela nunca havia visto antes: medo.
Teresa levantou-se e recolheu as xícaras vazias.
— Temos trabalho a fazer. O Sr. Domínguez vai passar para buscar as roupas ainda hoje.
O assunto foi encerrado ali, ao menos por elas. Mas não dentro de Amélie.
Enquanto as irmãs retomavam suas tarefas, ela ficou parada, olhando para o nada, repetindo em pensamento aquele nome que agora soava como um eco distante:
Cavalcante.
Amélie saiu pouco depois do almoço, dizendo que iria até a padaria buscar farinha. As irmãs sabiam que era só uma desculpa para escapar um pouco da tensão que pairava sobre a casa. Assim que o som dos passos dela se perdeu pela estrada, Teresa fechou a porta da frente, olhou pela janela para se certificar de que a caçula já estava longe e voltou-se para Clara e Isabel.
— Ela ouviu mesmo, não há dúvida — disse em voz baixa, o tom firme, mas preocupado. — Cavalcante.
Clara passou a mão trêmula pelo avental, sentando-se à mesa.
— Eu sabia que esse nome ainda ia voltar para nos assombrar.
Isabel, pálida, sussurrou:
— Será que ele... contou a ela alguma coisa?
— Não — respondeu Teresa de pronto. — Nosso pai não fala disso. Nem quando está bêbado. Mas se ela ouviu esse nome, é porque está mais fundo na cabeça dele do que imaginávamos.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Lá fora, o vento batia nas janelas e fazia ranger as dobradiças.
— Os Cavalcante… — murmurou Clara. — Todos em Valderosa sabem quem são. Gente de muito dinheiro, influência e pouca compaixão. Dizem que emprestam dinheiro a juros impossíveis e que tomam terras quando alguém não paga.
— E o papai… — completou Isabel, hesitante. — Ele sempre teve trabalho. Vende bem na madeireira, mas o dinheiro… nunca sobra.
Teresa cruzou os braços, pensativa.
— Exatamente. Toda vez que ele recebe, desaparece uma quantia. Ele diz que é para pagar dívidas antigas, mas nunca explicou quais.
Clara olhou para as duas irmãs mais velhas com olhos arregalados.
— Vocês acham que ele… que o papai deve aos Cavalcante?
Teresa respirou fundo.
— Eu não acho, Clara. Eu tenho quase certeza.
Isabel levou a mão à boca, alarmada.
— Mas se for verdade, eles não vão deixar barato. Os Cavalcante não perdoam dívidas, ainda mais de um homem que já perdeu o nome na vila.
Teresa assentiu, séria.
— Por isso precisamos manter Amélie longe disso. Ela é muito jovem, muito inocente. Se começar a fazer perguntas, pode acabar se metendo onde não deve.
Clara apertou o tecido nas mãos, nervosa.
— E se já for tarde demais?
Teresa lançou um olhar duro à irmã.
— Então teremos de protegê-la, custe o que custar.
Lá fora, os sinos da igreja começaram a tocar, ecoando pela colina.
Isabel se aproximou da janela e observou Amélie descendo a rua, os cabelos castanhos escuros dançando ao vento.
— Ela vai descobrir, Teresa. Um dia, vai descobrir tudo.
Teresa fechou os olhos por um instante, o peso do segredo visível em seu rosto cansado.
— Espero que, quando esse dia chegar, ainda haja algo que possamos fazer para impedi-la.