A Jaula de Ouro

1369 Words
Aurora. Sai do quarto em busca de algo para comer. Depois de um banho, o homem que me acompanhou até o quarto disse que na cozinha dos funcionários havia comida e eu podia me servir. A casa é enorme, mas ele me explicou quais eram os meus acessos dentro dessa mansão. Andei por um corredor cumprido, olhando em volta e absorvendo as nuances desse ambiente. O cheiro que emanava desse lugar era forte. Luxo e poder dentro do mesmo lugar. Nunca estive em um lugar assim. Eu não estava com medo, embora houvesse receio dentro de mim. Uma porta diferente, da qual eu sabia que não acesso, me chamou a atenção. Talvez eu não devesse ultrapassar essa linha, mas não pensei direito no que estava fazendo. Abro a porta e para minha surpresa o encontro parada em frente ao balcão. Sua presença mesmo imponente não me faz recuar. Eu não conseguia acreditar que eu estava ali, no santuário dele. Naquele laboratório de sabores e aromas, onde o homem que me controlava parecia mais humano do que em qualquer outro lugar. Eu o observei. A forma como ele manipulava os ingredientes, com uma concentração que eu jamais vira em seus negócios, me fez questionar. — O que está fazendo? — Cozinhando — responde seco. Sigo o observando manipular os alimentos. E acho interessante a forma na qual ele corta o coentro. — Por que você faz isso? — perguntei, sentindo meu estômago roncar. Era uma pergunta que não cabia a mim fazer, mas a curiosidade foi mais forte que o meu medo. Ele parou de cortar e me olhou. Pela primeira vez, eu não vi o predador, mas um homem que buscava algo. — Controle — ele respondeu, a voz rouca. — No meu mundo, o caos é a única constante. Aqui, sou eu quem decide. Cada ingrediente, cada temperatura, cada resultado. É perfeito. Ele se virou, e eu senti o cheiro da picanha suína confitada. Era um cheiro rico, complexo, que me fez esquecer a rua, a fome, a tristeza. Eu não sabia o quanto podia avançar, mas meus pés não estavam dispostos a recuar. — Qual o seu nome? – pergunto curiosa. Seu olhar duro recai em mim, mas eu não vacilo. — Lorenzo — diz depois de alguns segundos em silencio. — Eu sou a aurora. — digo fingindo que ele se interessa por essa informação. Ele pegou um pequeno pedaço da picanha, colocou em um garfo e o estendeu para mim. Minha mão hesitou. Era uma oferta, mas também era um teste. Uma prova de confiança. Eu peguei o garfo, e ignorei a sensação estranha com o toque dos nossos dedos. Levei o garfo até a boca e sabor explodiu. Era a coisa mais deliciosa que eu já tinha provado. A carne era macia, e o tempero era uma sinfonia. Aquele sabor me fez entender o que ele quis dizer. Ele observou a minha reação, e um pequeno sorriso, quase imperceptível, surgiu em seu rosto. Não era um sorriso de vitória, mas de satisfação. O sorriso de um artista que teve seu trabalho apreciado. — O que achou? — É a melhor coisa que já comi na vida. Ele volta para as folhas que estão em cima do balcão e volta a me ignorar, mas não por muito tempo. — Vá descansar, Aurora — ele disse, a voz agora mais suave. — Se quiser, pode se alimentar na cozinha dos empregados. Ao encontrar comida pronta por lá. Mas saia da minha cozinha — sua ordem é clara — Você tem um longo caminho a percorrer. Em silencio apenas concordo e saio dali, deixando o peso de sua presença dentro daquela cozinha. Meu estomago ainda dói e por isso, procuro a cozinha da qual eu posso usar. Meia hora depois voltei para o meu quarto. Minha barriga já não doía mais, não de fome pelo menos. O gosto daquela picanha ainda seguia em minha boca e uma nova confusão no meu coração. Ele era o monstro, o criador da escuridão. Mas, na sua cozinha, ele era o artista, o criador de algo belo e delicioso. Aquele homem era feito de contradições, e eu estava presa em uma jaula que, de repente, se tornava mais complexa a cada momento. . . . A água quente do banho parecia queimar minha pele, tirando a sujeira e a desgraça que eu havia acumulado em anos de rua. Eu mergulhei na banheira de mármore, e por um momento, a sensação de limpeza foi tão avassaladora que me fez chorar. Depois, o roupão de seda parecia estranho e escorregadio contra meu corpo acostumado a trapos. Olhei para o espelho, mas não me reconheci. A garota que me encarava parecia uma impostora, vestida em luxo, mas com os mesmos olhos cautelosos e o mesmo medo antigo que a haviam mantido viva. Eu não era livre. Eu apenas havia trocado uma prisão de concreto por uma de mármore e ouro. Ele me deu um quarto enorme, roupas caras e comida deliciosa, mas não me deu respostas. Era como se eu fosse um objeto valioso em sua coleção, uma nova "posse" a ser estudada e guardada. Três dias haviam se passado. Ele não falava comigo. Apenas me observava de longe, como um cientista faria com um novo espécime. A frieza de sua atitude era assustadora, mas eu a estava lendo. Por trás da máscara de indiferença, que ele usava como uma segunda pele, havia um abismo de poder e um controle maníaco. A cena na cozinha, com ele cortando coentro com uma precisão cirúrgica, parecia um sonho distante. Eu me perguntava se havia alguma emoção genuína dentro dele. E se sim, o que a despertaria? O primeiro teste finalmente chegara. Ele me chamou ao seu escritório, e a porta de carvalho se fechou atrás de mim com um baque surdo. Não havia guardas, mas a presença de um homem grande, com uma barba rala e olhos vazios Sua postura e expressão eram um alerta, como quem me dizia para não tentar nada. Ele estava lá para selar um acordo. Lorenzo me entregou uma série de documentos e os colocou sobre a mesa. — Leia — ele disse, a voz sem emoção. — E me diga o que você acha. Eu fiz o que ele pediu, meu olhar percorrendo os papéis. Mas a verdade é que minha atenção não estava só nos papeis. Enquanto o sócio dele falava sobre os lucros e os números, eu não ouvia suas palavras, mas o que estava por trás delas. Sua respiração estava irregular. Ele coçava o pescoço a cada vez que a palavra "dinheiro" era mencionada. E seus olhos se desviavam para o lado, um tique sutil, que podia passar desapercebido por uma pessoa qualquer, mas não por mim. Aquele pequeno gesto me dizia que ele estava mentindo. Quando a reunião terminou, o sócio parabenizou Lorenzo pelo acordo, com um sorriso largo demais. Lorenzo se virou para mim, os olhos fixos nos meus. — E então? Há algo que eu precise saber? — ele perguntou. Eu hesitei. Uma parte de mim queria dizer que ele era o d***o, mas a minha sobrevivência estava em jogo. A verdade era minha única moeda de troca. — Seus números não batem — eu disse, minha voz firme. — Ele está escondendo algo. A respiração dele é instável, os olhos dele não param de se mover. Ele está mentindo. O sócio ficou branco como papel, o sorriso congelado em seu rosto. Lorenzo apenas me observou e eu, mantive meus olhos firmes, mostrando que eu estava falando a verdade, sem pestanejar. Ele dispensou o homem com um gesto da mão, guardas entraram, vestindo seus ternos escuros e levando com sigo o mentiroso. Não sei o que vão fazer com ele e sendo sincera não me interessava. Quando ficamos a sós, eu o vi. Uma expressão que não era de surpresa, mas de uma satisfação fria e calculista. Era a primeira vez que ele me via não como um objeto, uma posse, mas como uma ferramenta valiosa. E essa percepção, que deveria me assustar, me fez sentir uma ponta de poder. Eu era útil. E na jaula dourada de Lorenzo Valente, ser útil significava sobreviver.
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